Fé e Vida na unidade da Igreja


A Igreja, ainda mesmo sobre a terra, não vive uma vida humana terrena mas uma vida de Graça que é Divina. Deste modo, não apenas em cada um dos seus membros, mas como um todo, proclama-se Santa solenemente. A sua manifestação visível está contida nos Sacramentos; mas a sua vida interior está nos Dons do Espírito Santo, na Fé, na Esperança e no Amor. Oprimida e perseguida por inimigos exteriores, por vezes agitada e dilacerada interiormente pelas pecaminosas paixões dos seus filhos, sempre foi e será preservada sem vacilações ou mudanças enquanto os Sacramentos e a santidade espiritual forem preservados. Nunca está desfigurada ou necessitada de reformas. Ela não vive sob uma lei de escravidão, mas sob uma lei de liberdade. Não reconhece nenhuma autoridade sobre ela, exceto a sua própria, nem nenhum outro tribunal, somente o tribunal da Fé (por razões que não compreende), e exprime o seu Amor, a sua Fé e a sua Esperança nos seus pregadores e ritos, que lhe foram sugeridos pelo Espírito de Verdade e pela Graça de Cristo. Assim, os seus próprios ritos, mesmo que não sejam imutáveis (porque foram compostos com Espírito de liberdade e podem ser mudados de acordo com o julgamento da Igreja) nunca podem, em caso algum, conter qualquer (nem mesmo a mais pequena mistura) erro ou falsa doutrina. E os ritos da Igreja, enquanto não forem mudados, são da obrigação dos membros da Igreja porque na sua observância está a alegria da santa unidade.

A unidade exterior é a unidade manifestada na comunhão dos Sacramentos enquanto que a unidade interior é a unidade do Espírito. Muitos se salvaram (alguns dos mártires, por exemplo) sem terem participado de nenhum dos Sacramentos da Igreja (nem mesmo do Batismo), mas ninguém é salvo sem ter participado da santidade interior da Igreja, da sua Fé, Esperança e Amor, porque não são as obras que salvam mas a Fé. E a Fé, isto é, a Fé verdadeira e viva não é dúplice, mas única. Portanto, os que dizem que a Fé sozinha não salva e que as obras são também necessárias e aqueles que dizem que a Fé salva sem obras, sofrem de uma lacuna na compreensão desta matéria: porque se não há Obras, então a Fé está como morta e, se ela está morta é, além disso, falsa; porque na Fé verdadeira existe Cristo, a Verdade e a Vida. Se não é verdadeira então é falsa, isto é, um mero conhecimento exterior. Mas pode essa falsa fé salvar o homem? Se ela é verdadeira, então é também uma Fé viva, isto é, uma Fé operante. E se essa Fé já produz obras, que outras serão ainda necessárias?

O Apóstolo divinamente inspirado dizia: "Mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras" (Tiago, 2-18). Ele reconhece porventura duas fés? Não, mas condena uma ostentação insensata. "Tu crês que há um Deus; fazes bem, mas também os demônios o crêem, e estremecem." Reconhece ele, porventura, que existe fé nos demônios? Não, mas detecta a falsidade de uma qualidade que até os demônios possuem. "O corpo," diz ele, "sem o espírito está morto, assim também, a fé, sem as obras é morta." Está ele a comparar a Fé com o corpo e as obras com o Espírito? Não, porque essa comparação seria falsa, mas o significado das suas palavras é claro: assim como um corpo sem o espírito não pode ser chamado com propriedade uma pessoa, mas um cadáver; assim também a fé que não produz obras não pode ser considerada verdadeira, mas falsa, isto é, um conhecimento exterior, infrutífero e até alcançável pelo demônio. Aquilo que está escrito com simplicidade deve também ser lido com simplicidade. Aqueles que interpretaram o Apóstolo Tiago de modo a provar a existência de uma fé morta e de uma fé viva e, portanto, a existência de duas fés, não compreenderam as suas palavras porque ele não testemunha isso, mas sim o contrário. De igual modo quando o Grande Apóstolo dos Gentios disse "para que serve a fé sem o amor, mesmo que essa fé remova montanhas?" (Cf. I Cor 13:2), ele não admite a possibilidade da existência dessa fé sem amor, mas assumindo essa possibilidade prova que seria inútil. A Sagrada Escritura não pode ser interpretada com conhecimento mundano, o qual colide com as palavras, mas sim com sabedoria divina e simplicidade espiritual. 0 Apóstolo, ao definir a fé, disse: "é a evidência das coisas não vistas e o fundamento das que se esperam" (Tg 2:18, N. dos T.), não simplesmente das coisas que aguardamos ou das que estão para vir. Se nós temos esperança também desejamos e se desejamos também amamos, porque é impossível desejar o que não se ama. Ou será que os demônios também têm esperança? No entanto existe apenas uma fé, e quando perguntamos: "A verdadeira fé pode salvar sem obras?" fazemos uma pergunta disparatada, ou pelo contrário, não fazemos pergunta nenhuma. Porque a Fé verdadeira é a Fé viva que produz obras, é a Fé em Cristo e Cristo na Fé.

Aqueles que se enganaram seguindo uma fé morta, isto é, uma fé falsa, ou um simples conhecimento exterior, em vez de uma Fé verdadeira, foram tão longe no seu erro que sem se aperceberem fizeram dela um oitavo falso sacramento. A Igreja tem Fé, mas é uma Fé viva, porque Ela também é santa. Mas se se presume que algum homem ou algum Bispo tem necessariamente fé, o que se poderia dizer? Que tem santidade? Não, porque pode cometer crimes ou imoralidades. Mas essa fé habita nele mesmo que seja pecador. Então a fé que habita nele é um oitavo sacramento, visto que qualquer Sacramento é a ação da Igreja no indivíduo mesmo que ele seja indigno. Mas através desse sacramento que espécie de fé habita nele? Uma fé viva? Não, porque é um pecador, mas uma fé morta, isto é, um conhecimento exterior acessível até aos demônios. E é isto um oitavo sacramento? Desta maneira um afastamento da verdade traz consigo a sua própria punição (Tg 2:19, N. dos T.).

Devemos compreender que nem a fé, nem a esperança e nem o amor salvam por si próprios, (salvar-nos-á a fé na razão, ou a esperança no mundo, ou o amor pela carne?). Mas é o objeto da Fé que salva. Se um homem crê em Cristo ele é salvo pela sua Fé em Cristo, se acredita na Igreja, é salvo pela Igreja. Se acredita nos Sacramentos de Cristo, é salvo por eles, porque Cristo Nosso Senhor está na Igreja e nos Sacramentos. A Igreja do Antigo Testamento era salva pela Fé num Redentor que viria. Abraão foi salvo pelo mesmo Cristo que nós. Ele possuía Cristo em esperança, enquanto que nós 0 possuímos em júbilo. Portanto, aquele que deseja o Batismo é batizado em esperança, enquanto que aquele que recebeu o Batismo o possui em júbilo. Ambos são salvos por uma Fé idêntica no Batismo. Mas alguém pode dizer: "se a Fé no Batismo salva, qual é a utilidade de ser realmente batizado?." Se não recebe o Batismo por que é que o desejou? E evidente que a fé que faz desejar o Batismo deve ser completada pelo próprio Batismo, que será o seu júbilo. Assim, também a casa de Cornélio recebeu o Espírito Santo antes de receber o Batismo, enquanto que o eunuco foi insuflado com o mesmo Espírito imediatamente depois do Batismo (Atos 10:44-47; 8:38; Cf. 2:38). Porque Deus pode glorificar o Sacramento do Batismo tanto antes como depois da sua administração. Assim, a diferença entre "opus operans" e "opus operatum" desaparece. Sabemos de muitos que não batizavam as suas crianças, de muitos que não lhes permitiam a comunhão dos Santos Mistérios e de outros que não os crismavam. Mas a Santa Igreja compreende as coisas de outra maneira batizando crianças, confirmando-as e admitindo-as à Comunhão. Ela determinou estas coisas não por condenar as crianças não batizadas, cujos anjos sempre contemplam a face de Deus (Mat. 18:10), mas de acordo com o Espírito de Amor que vive no seu seio, de maneira que os primeiros pensamentos de uma criança chegada à idade do entendimento sejam não apenas um desejo, mas também uma felicidade pelos Sacramentos que já tem recebido. E pode alguém conhecer a alegria de uma criança que, segundo tudo indica, não chegou ainda ao entendimento? Não exultou, porventura, de alegria, por Cristo o profeta ainda não nascido? (Lucas 1:41)? Privaram as crianças do Batismo, da Confirmação e da Comunhão os que herdaram a cega razão do paganismo fanático e não compreenderam a majestade dos Sacramentos de Deus, exigindo razões e costumes para tudo e, tendo submetido a doutrina da Igreja a explicações escolásticas, nem sequer desejam rezar, a não ser que vejam na oração algum objetivo direto ou alguma vantagem. Mas a nossa lei não é de escravidão ou de trabalho mercenário, trabalhando pelo salário, mas uma lei de adoção de filhos e de Amor que é livre.

Nós sabemos que quando um de nós cai, cai sozinho. Mas ninguém é salvo sozinho. Aquele que é salvo, o é na Igreja, como membro dela, e em unidade com todos os seus outros membros. Se alguém crê, então está em comunhão de Fé; se ama, está em comunhão de Amor; se reza está em comunhão de Oração. Por conseguinte, ninguém pode fundamentar a sua esperança nas suas próprias orações, e quando alguém reza pede à Igreja no seu conjunto que interceda, não porque tenha dúvidas da intercessão de Cristo, o único Advogado, mas na certeza de que toda a Igreja reza sempre por todos os seus membros. Todos os anjos rezam por nós, os Apóstolos, os Mártires e os Patriarcas e, acima de todos eles, a Mãe de Nosso Senhor, e esta santa unidade é a verdadeira vida da Igreja. Mas se a Igreja, visível e invisível, reza sem cessar, porque é que lhe havemos de pedir que reze? Não pedimos nós misericórdia a Cristo Deus, apesar da Sua misericórdia antecipar as nossas orações? A única razão pela qual nós pedimos à Igreja que reze é porque sabemos que Ela dá a assistência da sua intercessão mesmo àqueles que a não pedem. E para aqueles que a pedem Ela concede-a numa medida muito maior do que aquela que foi pedida, porque Nela está a plenitude do Espírito de Deus. Assim, nós glorificamos todos aqueles que Deus glorificou e glorifica, porque como haveríamos de dizer que Cristo está vivo dentro de nós se não nos assemelharmos a Cristo? Portanto, nós glorificamos os Santos, os Anjos, os Profetas e acima de todos a Puríssima Mãe de Nosso Senhor Jesus, não reconhecendo que Ela tenha sido concebida sem pecado ou que tenha sido perfeita (porque somente Cristo é sem pecado e perfeito), mas recordando que a primazia, para lá de todo o entendimento humano, que Ela tem acima de todas as criaturas de Deus, testemunhada pelo anjo e por Isabel e, acima de todos, pelo próprio Salvador quando apontou João, o Seu grande Apóstolo e profeta dos mistérios, para desempenhar os deveres de filho e para A servir.

Na medida em que cada um de nós requer orações de todos, assim cada um deve dirigir as suas orações em benefício de todos (os vivos e os mortos, e mesmo aqueles que ainda não nasceram). Ao rezar, nós o fazemos com toda a Igreja, para que o mundo possa atingir o conhecimento de Deus. Nós rezamos não somente pela geração presente, mas também por aqueles que no futuro Deus quiser chamar à vida. Nós rezamos pelos vivos para que a Graça de Deus desça sobre eles e pelos mortos, para que se tornem merecedores da visão da face de Deus. Nós não conhecemos nenhum estado intermediário para as almas que ainda não foram recebidas no Reino de Deus nem condenadas ao tormento, porque dum estado como esse não recebemos qualquer ensinamento nem dos Apóstolos nem de Cristo. Não reconhecemos o Purgatório, isto é, a purificação das almas pelo sofrimento através do qual possam ser redimidas pelas suas próprias obras ou pelas de outrem. Porque a Igreja não sabe nada acerca da salvação por meios exteriores, nem através de sofrimentos, sejam eles quais forem, exceto os de Cristo, nem por negócio com Deus, como no caso do homem que quer comprar a sua salvação através de boas obras.

Todo este paganismo permanece com os herdeiros da sabedoria pagã, com aqueles que se orgulham da posição, nome ou domínio territorial e que instituíram um oitavo sacramento de fé morta. Mas nós rezamos em espírito de amor, sabendo que ninguém será salvo de outro modo que não seja pelas orações de toda a Igreja, na qual Cristo vive, sabendo e acreditando que enquanto não chegarem os fins dos tempos todos os membros da Igreja, tanto os vivos como os que já partiram, estão incessantemente a ser aperfeiçoados pelas orações recíprocas. Os Santos que Deus glorificou estão muito acima de nós, mas acima de todos está a Santa Igreja que contém no seu interior todos os Santos e reza por todos, como se pode constatar na Liturgia divinamente inspirada. Na Sua oração a nossa oração é também ouvida, ainda que sejamos indignos de ser chamados filhos da Igreja. Se enquanto veneramos e glorificamos os Santos rezamos para que Deus os glorifique, não ficamos sujeitos ao peso do orgulho, porque a nós que recebemos autorização para chamar a Deus "PAI NOSSO" foi-nos concedido igualmente rezar: "Santificado seja o Teu Nome, venha a nós o Teu Reino, seja feita a Tua Vontade." E se nos é permitido pedir que Deus glorifique o Seu Nome e cumpra a Sua Vontade, quem nos proibirá de Lhe rezarmos para que glorifique os Seus Santos e que dê repouso aos Seus eleitos? Porque por aqueles que na verdade não pertencem ao número dos eleitos nós não rezamos, assim como Cristo não rezou por todo o mundo mas por aqueles que o Pai Lhe confiou (João 17). Ninguém diga: "Que oração devo repartir pelos vivos e pelos que já partiram, quando as minhas orações são insuficientes até para mim próprio?." Porque se não se é capaz de rezar, de que servirá faze-lo nem que seja só por si próprio? Mas em verdade o Espírito de amor reza em nós. De igual modo ninguém diga: "Qual é o benefício da minha oração por outro, quando ele reza por si próprio e Cristo intercede por ele?." Quando um homem reza, é o Espírito de amor que reza dentro dele. Que ninguém digas: "impossível modificar o julgamento de Deus," porque as tuas orações estão incluídas nos planos de Deus e Ele previu isso. Se és um membro da Igreja, as tuas orações são necessárias para todos os seus membros. Se a mão disser que não necessita do sangue do resto do corpo e, por sua vez, não lhe der o seu sangue, ela definhará. Assim, qualquer membro é também necessário à Igreja, enquanto permanecer no seu seio e, se se afastar da comunhão com Ela, sucumbe e deixa de ser um membro da Igreja. A Igreja reza por todos e nós rezamos conjuntamente também por todos, mas a nossa oração deve ser verdadeira, uma autêntica expressão de amor e não um mero formalismo de palavras. Não conseguindo amar todos os homens, nós rezamos por aqueles que amamos e a nossa oração não é hipócrita. E rezamos a Deus para que possamos amar e rezar por todos sem hipocrisia. O sangue da Igreja é a oração recíproca, e o seu alento – a glorificação de Deus. Nós rezamos em Espírito de amor, não por interesse: em espírito de liberdade filial, não segundo a lei do mercenário que exige o seu pagamento. Todo aquele que pergunta: "Qual é a utilidade da oração?," reconhece-se em servidão. A verdadeira Oração é o verdadeiro Amor.

O Amor e a Unidade estão acima de tudo, mas Amor exprime-se de muitas maneiras: por obras, pela oração e por cânticos espirituais. A Igreja dá a sua benção a todas estas expressões do Amor. Se alguém não for capaz de exprimir o seu amor por Deus através de palavras, mas através de uma representação visível, isto é, uma imagem (ícone), a Igreja condena-o? Não, mas Ela condenará aquele que o condenar, porque está a condenar o Amor de outrém. Sabemos que sem o uso de uma imagem o homem também pode ser salvo e tem sido salvo, e se o amor de alguém não requerer nenhuma imagem então será salvo sem ela. Mas se o amor de um irmão requerer uma imagem, então quem condenar o amor desse irmão condena-se a si próprio. Se um cristão não se atreve a ouvir sem um sentimento de reverência uma oração ou um cântico espiritual composto por um seu irmão, como é que se atreve a olhar sem reverência para uma imagem que o amor desse irmão, e não as suas qualidades artísticas produziram? 0 Senhor, que conhece os segredos do coração, mais do que uma vez glorificou uma oração ou um Salmo. Alguém 0 poderá proibir de glorificar uma imagem ou as sepulturas dos santos? Qualquer pode dizer: "O Antigo Testamento proibiu as representações de Deus," mas esse que julga entender melhor do que a Santa Igreja as palavras que Ela própria escreveu (isto é, as Escrituras) não percebe que não foi a representação de Deus que o Antigo Testamento proibiu (porque permitiu também o Querubim, a serpente de bronze e a escrita do Nome de Deus), mas sim que o homem fizesse para si próprio um Deus à semelhança de qualquer objeto da terra ou do céu, visível ou mesmo imaginário?

Se alguém pinta uma imagem para se lembrar do Deus invisível e inconcebível, não está a fazer para si um ídolo. Se imagina Deus por si próprio e pensa que Ele é como lhe apresenta a sua imaginação, então fabrica para si próprio um ídolo — é este o significado da proibição do Antigo Testamento. Mas uma imagem – ícone — (isto é, o Nome de Deus pintado a cores), ou uma representação dos Seus Santos, feita por amor, não é proibida pelo Espírito de Verdade. Que ninguém diga: "Os cristãos estão a caminho da idolatria," porque o Espírito de Cristo que preserva a Igreja é mais sábio do que a ciência calculista do homem. Um homem pode, na realidade, ser salvo sem imagens; no entanto não deve rejeitar as imagens.

A Igreja aceita qualquer rito que exprima uma aspiração espiritual em relação a Deus, assim como aceita orações e imagens (ícones), mas reconhece acima de todos os ritos a Sagrada Liturgia, pela qual se exprime toda a amplitude da Doutrina e Espírito da Igreja, e isto não apenas por sinais convencionais ou símbolos de qualquer espécie, mas pela palavra de vida e verdade inspirada de cima. Somente conhece a Igreja aquele que compreende a Liturgia. Acima de tudo isto está a unidade da Santidade e do Amor.

- Alexei Khomiakov, A Igreja é Una

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