1. Qual é a crítica ortodoxa à teoria da substituição penal?
A crítica central de teólogos ortodoxos à substituição penal, especialmente em suas versões populares, é que ela opera sob uma premissa legalista que distorce o caráter de Deus e a natureza da salvação. A substituição penal apresenta Deus Pai como uma divindade cuja justiça é primariamente retributiva e irada, exigindo uma punição de magnitude infinita para ser satisfeita. Essa "ira" é então "despejada" sobre Seu Filho, que se torna o objeto do castigo divino. Para os ortodoxos, isso cria problemas teológicos graves:
Problema Trinitário: Pode levar a uma separação funcional na Trindade, onde o Pai está em oposição ao Filho, punindo-O. Isso contradiz a unidade da vontade e ação divinas, pois, como afirma Jesus, "Eu e o Pai somos um" (João 10:30). A cruz é a ação unificada da Trindade para salvar, não um conflito interno.
Problema com o Caráter de Deus: Retrata Deus de uma forma que se assemelha mais a uma divindade pagã que precisa ser apaziguada por um sacrifício violento do que ao Pai revelado por Cristo, que é "amor" (1 João 4:8) e age por misericórdia.
Problema com a Justiça: Reduz a justiça bíblica (a fidelidade pactual e restauradora de Deus) a um mero mecanismo de punição retributiva, um conceito mais forense do que relacional.
2. Se a formulação penal é rejeitada, como devemos entender a multifacetada obra de Cristo na cruz?
A visão patrística clássica nunca se limitou a um único modelo, mas via a redenção como um diamante de muitas facetas. Ela integra principalmente três modelos bíblicos:
Christus Victor (Cristo Vitorioso): Esta é uma visão muito comum na Igreja primitiva. Cristo, na cruz e ressurreição, trava uma batalha cósmica contra os poderes do mal: o pecado, a morte e o Diabo. Ele não é uma vítima passiva da ira do Pai, mas um guerreiro e rei vitorioso. Ele triunfa sobre esses inimigos, "despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz" (Colossenses 2:15). Ele entra no domínio da morte para destruí-la a partir de dentro, libertando a humanidade de seu cativeiro (Hebreus 2:14-15).
Recapitulação: Cristo, como o Novo Adão, resume e reverte a história de desobediência da humanidade. Ele vive a vida de perfeita obediência que Adão falhou em viver, culminando em seu ato final de obediência na cruz. Assim, "como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos" (Romanos 5:19).
Sacrifício de Expiação: A morte de Cristo é um sacrifício, mas não no sentido de aplacar um Deus irado. É a oferta perfeita de amor e obediência ao Pai, que purifica e consagra a humanidade. Cristo é tanto o Sacerdote quanto a Vítima perfeita, que "pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!" (Hebreus 9:14).
3. Qual é o papel absolutamente central da Encarnação na doutrina ortodoxa da redenção?
A redenção não começa na Sexta-feira Santa; ela começa na Anunciação. A Encarnação – o ato do Verbo se fazer carne (João 1:14) – é o fundamento de toda a obra redentora. Ao unir a natureza divina à natureza humana em Sua Pessoa, o Filho de Deus inicia o processo de cura e divinização da humanidade. A lógica é: "o que não é assumido não é curado". Cristo teve que se tornar plenamente humano, "semelhante a seus irmãos em tudo" (Hebreus 2:17), para poder curar nossa humanidade a partir de dentro. Sua vida, morte e ressurreição são um movimento salvífico único e inseparável. A cruz não é um evento isolado, mas o clímax da vida encarnada do Verbo, onde a natureza humana unida a Ele derrota a morte e a corrupção.
4. O que significa, mais detalhadamente, a teoria da "Recapitulação"?
A Recapitulação (do grego anakephalaiōsis, que significa "sumarizar" ou "colocar sob uma nova cabeça") é a doutrina de que Cristo, como o Novo Adão, viveu cada estágio da vida humana em perfeita comunhão com o Pai, santificando-os. Ele refaz o caminho da humanidade, mas em obediência.
Onde Adão, vindo da terra virgem, desobedeceu, Cristo, nascido da Virgem Maria, obedeceu.
Onde Adão encontrou a tentação em um jardim e caiu, Cristo enfrentou a tentação no deserto e venceu (Mateus 4:1-11).
A desobediência de Adão junto a uma árvore (do conhecimento) é desfeita pela obediência de Cristo em uma árvore (a cruz). Esta visão está profundamente enraizada na tipologia Adão-Cristo de Paulo (Romanos 5:12-21; 1 Coríntios 15:45). O objetivo final de Deus, segundo Efésios 1:10, é "de fazer convergir [recapitular] em Cristo todas as coisas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra".
5. Como teólogos ortodoxos, então, interpretam passagens difíceis como Cristo se tornando "maldição por nós" (Gálatas 3:13) ou Deus "o fez pecado por nós" (2 Coríntios 5:21)?
A interpretação dessas passagens é um ponto nevrálgico, pois elas são frequentemente vistas como a principal evidência bíblica para a substituição penal. Teólogos ortodoxos argumentam que essa leitura, embora pareça direta, ignora o contexto mais amplo e importa para o texto uma teoria legalista que não é inerente a ele. Sua abordagem é ontológica e representativa.
Análise de Gálatas 3:13: "Cristo nos resgatou da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro."
O Contexto é a "Maldição da Lei": O primeiro ponto crucial é que Paulo não está falando de uma "maldição" genérica ou da ira de Deus em abstrato. Ele especifica que é a "maldição da Lei". O argumento de Paulo em Gálatas é que a salvação não vem pela observância da Lei mosaica, pois todos que tentam ser justificados por ela estão debaixo de sua maldição, já que ninguém consegue cumpri-la perfeitamente ("Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las", Gálatas 3:10). O problema que a cruz resolve, neste contexto, é a tirania do sistema da Lei.
A Citação de Deuteronômio 21:23: Paulo cita Deuteronômio, que diz que um homem executado e pendurado em um madeiro é "maldito de Deus". No seu contexto original, isso não significava que a pessoa era o objeto da fúria retributiva de Deus. Significava que ela era ritualmente impura, publicamente desonrada e excomungada da comunidade da aliança de Israel. Ser "maldito" era ser posto para fora do acampamento, em um estado de vergonha e alienação.
A Interpretação Ontológica e Vitoriosa: Juntando os pontos, devemos entender que Cristo, ao ser crucificado, entra voluntariamente nesse estado de máxima vergonha, alienação e impureza ritual definido pela própria Lei. Ele não se torna moralmente amaldiçoado pelo Pai, mas assume a consequência última que a Lei impunha aos transgressores. Ele vai até o fim do caminho da maldição legal. Por quê? Para esgotar o poder da Lei de condenar. Ao assumir em Si a pena máxima da Lei (morte e execração) e triunfar sobre ela na Ressurreição, Ele quebra o poder da maldição de uma vez por todas. Ele não é a vítima da ira de Deus, mas o guerreiro que entra no território da maldição para desarmá-la por dentro, libertando assim tanto judeus (que estavam sob a Lei) quanto gentios (que estavam alienados) para uma nova forma de aliança baseada na fé.
Análise de 2 Coríntios 5:21: "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus."
O Problema da "Ficção Legal": A interpretação penal tradicional sugere que Deus imputou a culpa dos nossos pecados a Cristo e o tratou legalmente como se Ele fosse um pecador. Na visão ortodoxa, isso é teologicamente problemático, pois faria com que Deus, que é a própria Verdade, operasse com base em uma ficção (tratar um inocente como culpado) e cometesse uma injustiça (punir o inocente).
"Pecado" como "Oferta pelo Pecado": Uma interpretação patrística comum é que a palavra grega para pecado, hamartia, na Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento, usada por Paulo), é frequentemente usada para traduzir a palavra hebraica para "oferta pelo pecado". Em Levítico, por exemplo, o mesmo animal é chamado de "pecado". Assim, a passagem poderia ser lida como: "Deus fez daquele que não tinha pecado uma oferta pelo pecado por nós". Isso alinha a cruz com o sistema sacrificial do Templo, que era sobre purificação e restauração da comunhão, não sobre punição penal.
A Interpretação da Solidariedade Radical: Indo ainda mais fundo, mesmo que se entenda "pecado" como pecado, não se refere a uma transferência legal de culpa, mas a uma identificação ontológica e solidária. Na Encarnação, Cristo uniu a Si a nossa natureza humana caída e mortal. Ele "se tornou" o que nós somos — parte de uma raça sujeita ao pecado e à morte, embora Ele mesmo permanecesse pessoalmente sem pecado. Ele se colocou como o representante e a cabeça da humanidade pecadora. Ele mergulhou na nossa condição de alienação. Portanto, quando Deus "o fez pecado", significa que Deus permitiu que Seu Filho, em Sua missão encarnada, se identificasse tão completamente com a nossa condição de pecadores que Ele carregou sobre Si as consequências dessa condição — a morte. A troca, então, não é de registros legais, mas de condições existenciais: Ele assume nossa condição de mortalidade e alienação para que nós, unidos a Ele, possamos participar de Sua condição de retidão e vida divina. É uma troca real e transformadora, não forense e externa.
6. Qual o verdadeiro papel da justiça de Deus na expiação, segundo essa visão?
Na teologia da substituição penal, a justiça de Deus (iustitia Dei) é frequentemente concebida como um princípio quase matemático de retribuição. É uma lei cósmica impessoal que afirma que todo pecado deve ser punido. A justiça é um atributo que vincula Deus, forçando-O a punir o pecado para "equilibrar as balanças". Neste modelo, a cruz é o lugar onde esta exigência retributiva é finalmente satisfeita pela punição do Substituto.
A perspectiva ortodoxa insiste que essa visão é uma importação da jurisprudência romana, não da teologia hebraica. No Antigo Testamento, a palavra para justiça, tzedakah, é um termo fundamentalmente relacional. Ela não se refere a um padrão abstrato, mas ao cumprimento fiel das obrigações de uma aliança:
Um rei justo não era apenas aquele que punia os malfeitores, mas primariamente aquele que resgatava os pobres e oprimidos, mantendo a integridade da comunidade (Salmo 72:1-4).
A justiça de Deus, portanto, não é Sua fúria punitiva, mas Sua fidelidade salvífica às Suas promessas da aliança. Nos Salmos e nos Profetas, a "justiça de Deus" e a "salvação de Deus" são frequentemente usadas como sinônimos (Salmo 98:2, Isaías 51:5). A justiça de Deus é o Seu ato de intervir na história para libertar Seu povo e "consertar as coisas" (make things right).
Paulo, como um judeu do primeiro século, herda este conceito. Quando ele fala da "justiça de Deus" (em grego, dikaiosynē theou), especialmente em Romanos, ele não está se referindo a um atributo moral de Deus que precisa ser apaziguado. Ele se refere à própria ação de Deus na história, Sua fidelidade à aliança com Abraão para abençoar o mundo inteiro. A justiça de Deus é o poder de Deus em ação para cumprir Suas promessas de salvação, agora revelado de forma definitiva em Jesus Cristo.
Isso significa reinterpretar passagens difíceis como Romanos 3:25-26. Paulo diz que Deus apresentou Cristo como um hilasterion (traduzido como "propiciação" ou "expiação", referindo-se à "tampa da misericórdia" da Arca da Aliança) para demonstrar Sua justiça. Como? Não ao punir Cristo, mas ao lidar decisivamente com o pecado que Ele parecia ter "ignorado" no passado. Deus prova que Ele é "justo" (fiel à Sua promessa de erradicar o mal) e Aquele que "justifica" (restaura, cura, faz justo) quem tem fé. A demonstração de Sua justiça foi o ato de resgate, não o ato de punição.
Portanto, o verdadeiro papel da justiça de Deus na expiação não é o de um obstáculo ao perdão que precisava ser superado por um pagamento violento. Pelo contrário, a justiça de Deus é a própria força motriz da expiação. É o compromisso inabalável de Deus com Sua criação, Sua fidelidade às Suas promessas e Seu poder ativo para derrotar o mal. Na cruz, a justiça de Deus não é satisfeita; ela é desencadeada sobre o mundo de uma forma paradoxal — não através da força esmagadora, mas através do amor sacrificial, absorvente e vitorioso do Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. A justiça de Deus é, em sua essência, a Sua graça salvadora em ação.
7. E a ira de Deus contra o pecado? Onde ela se encaixa se não foi derramada sobre Cristo?
Esta é uma das questões mais importantes para a teologia ortodoxa, e sua resposta requer uma redefinição do conceito bíblico de "ira de Deus", afastando-o de projeções humanas de raiva e vingança.
O Fundamento: A Impassibilidade Divina: O ponto de partida é o ensinamento clássico da impassibilidade divina. Deus, em Sua perfeição, não está sujeito a paixões ou mudanças emocionais como os seres humanos. Ele não "fica com raiva" e depois "se acalma". Seu estado é de amor e santidade perfeitos e imutáveis. Portanto, quando a Bíblia fala da "ira" ou "fúria" de Deus, ela está usando uma linguagem antropomórfica. Descreve como a santa e imutável oposição de Deus ao mal é experimentada pela criação que se rebela contra Ele.
A Ira como Consequência Intrínseca do Pecado: seguindo a linha de Paulo em Romanos 1, a ira não deve ser entendida como uma força que Deus ativamente inflige, mas como o processo de desintegração que ocorre quando as criaturas se afastam da fonte da Vida e da Ordem (Deus). A frase-chave em Romanos 1 é "Deus os entregou" (paradidomi em grego), que se repete três vezes (v. 24, 26, 28). A ira de Deus é revelada não em um raio que cai do céu, mas em Deus permitindo que a humanidade experimente as consequências naturais e inevitáveis de sua idolatria e pecado. A ira é a colheita do que semeamos. É o caos, a alienação, a corrupção e, finalmente, a morte, que são os resultados intrínsecos de se desconectar do Criador. É o universo moral funcionando como foi projetado: o afastamento do Bem leva ao mal e à destruição.
A Cruz: Deus Absorvendo a Ira, Não a Infligindo: Neste modelo, a cruz não é o lugar onde Deus Pai derrama Sua ira sobre Deus Filho. Isso seria, para a visão ortodoxa, uma violência intra-trinitária incoerente. Em vez disso, a cruz é o lugar onde Deus, na Pessoa do Filho, entra no meio da condição humana que está sob a "ira" (ou seja, no meio do processo de desintegração, alienação e morte) para absorvê-la e exauri-la.
O famoso clamor de Cristo, "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Mateus 27:46), não é a expressão de Cristo sendo punido pelo Pai. É a expressão de Cristo entrando no ponto mais profundo da experiência humana de alienação causada pelo pecado. Ele experimenta, em nossa representação, a consequência máxima do nosso afastamento de Deus.
Ele "bebe o cálice" (Mateus 26:39), mas o cálice não contém a "fúria do Pai". Ele contém o sofrimento, a dor e a morte que são o resultado do pecado do mundo. Ele bebe o veneno do pecado e da morte para que, em Seu corpo divino e incorruptível, o veneno perca seu poder.
Em suma, a cruz não é o ato de satisfazer a ira de Deus. É o ato de curar a condição humana que está sob a ira. É a intervenção amorosa de Deus que, em Cristo, assume as consequências do nosso pecado para nos libertar delas. A justiça de Deus não é satisfeita pela punição de um inocente, mas pela Sua ação fiel e amorosa de resgatar Sua criação do poder autodestrutivo do pecado e da morte. A cruz revela o amor de Deus confrontando e vencendo a realidade da "ira" (as consequências do pecado), não a ira de Deus encontrando um alvo.
8. Como a importante passagem de Isaías 53 é interpretada na tradição ortodoxa?
A questão fundamental na interpretação de Isaías 53 é afastar a leitura do capítulo de um drama legal-forense para um drama ontológico e terapêutico.
Na leitura penal (com a qual a visão ortodoxa discorda): O Servo Sofredor é um vigário penal. Deus Pai é o juiz irado, a humanidade é a ré culpada, e o Servo é o substituto inocente sobre quem a punição e a ira do juiz são legalmente transferidas e executadas. As palavras-chave são punição, castigo, ira, pagamento.
Na leitura ortodoxa (patrística): O Servo Sofredor é um representante solidário e terapêutico. Deus Pai é o médico divino, a humanidade está doente e cativa do pecado e da morte, e o Servo é o próprio médico que entra na nossa condição de doença para curá-la por dentro. Ele não é punido pelo Pai; ele sofre as consequências do nosso pecado (infligidas pela humanidade e pelos poderes das trevas) para absorvê-las e destruí-las. As palavras-chave são solidariedade, cura, absorção, vitória.
Com essa chave em mente, vamos analisar os versículos cruciais.
Versículo 4: "Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido."
Numa leitura penal, "enfermidades" e "dores" são vistas como metáforas para a punição que nossos pecados mereciam. "Ferido de Deus" é interpretado literalmente: Deus o estava ferindo ativamente.
A doutrina ortodoxa aponta que o Novo Testamento interpreta este versículo de forma explicitamente terapêutica, não penal. Em Mateus 8:16-17, Jesus cura os doentes e expulsa os demônios, e Mateus diz que isso cumpriu a profecia de Isaías 53:4. Ou seja, o "tomar sobre si" e "levar" não se refere a um pagamento legal na cruz, mas à totalidade do ministério encarnado de Cristo, no qual ele entra em contato direto com a miséria e a doença humanas para erradicá-las. A frase "ferido de Deus" reflete a perspectiva equivocada dos espectadores ("nós o reputávamos por..."), que, como os amigos de Jó, interpretaram mal o sofrimento do justo, achando que era um castigo divino, quando na verdade era uma obra de salvação.
Versículo 5: "Mas ele foi transpassado por causa das nossas transgressões e moído por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados."
Este é talvez o versículo mais contestado. A palavra hebraica para "castigo" é musar. Na leitura penal, ela é traduzida exclusivamente como "punição retributiva". A interpretação patrística, no entanto, destaca que musar tem um campo semântico muito mais amplo, significando primariamente "disciplina", "correção" ou "instrução". O sofrimento do Servo não é a ira de Deus sendo satisfeita, mas a "disciplina" ou o processo corretivo que Deus usa para trazer a "paz" (shalom – que significa plenitude, cura, restauração, e não apenas ausência de conflito).
"Pelas suas pisaduras fomos sarados": A teologia ortodoxa enfatiza que a conclusão do versículo usa a metáfora médica da cura ("sarados" - hebraico rapha), não a metáfora legal do perdão forense. O sofrimento do Servo tem um efeito terapêutico sobre nós. Somos curados por meio de suas feridas. Isso se encaixa perfeitamente na visão de Cristo como o Médico Divino.
Versículo 6: "Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas... mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos."
Versículo 10: "Contudo, foi da vontade do SENHOR esmagá-lo, fazendo-o enfermar. Quando a sua alma se puser como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a boa vontade do SENHOR prosperará na sua mão."
"Foi da vontade do SENHOR esmagá-lo": Segundo a doutrina ortodoxa, isso deve ser entendido no sentido da vontade soberana e permissiva de Deus, não de Sua vontade ativa e desejosa. Ou seja, Deus, em Seu plano redentor, permitiu que o Servo passasse por esse sofrimento (infligido pelas mãos dos homens – Atos 2:23) porque sabia que esse era o caminho para a vitória sobre a morte e para a salvação de muitos. Não significa que o Pai sentiu prazer em esmagar o Filho. É digno de nota que esse versículo é traduzido de forma bastante diferente na Septuaginta, mas aqui estou analisando a versão hebraica.
Versículo 11: "Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si."
"Justificará a muitos": A visão ortodoxa entende "justificar" aqui não no sentido forense de "declarar justo", mas no sentido mais antigo e bíblico de "fazer justo", "curar", "restaurar". O Servo, através de seu sofrimento e conhecimento, efetivamente nos torna justos ao nos unir a Si mesmo e nos curar de nossa condição pecaminosa.
"Levará sobre si as iniquidades": Novamente, o tema do carregamento. Cristo leva o peso e as consequências de nossos pecados para nos libertar deles, como um homem forte que entra em uma casa em chamas para resgatar seus habitantes, carregando-os para fora. Ele não é queimado pelo dono da casa; ele enfrenta o fogo que nós começamos para nos salvar.
Para a tradição ortodoxa, portanto, Isaías 53 não é a descrição de uma transação legal cósmica onde um Pai irado pune Seu Filho. É a profecia comovente do amor radical de Deus. O Servo de Deus, Jesus Cristo, por solidariedade à humanidade caída, entra voluntariamente no vórtice do sofrimento, da violência e da morte que o pecado humano gerou. Ele absorve em seu próprio ser as consequências da nossa rebelião. O sofrimento que ele padece não é uma punição vinda do Pai, mas o mal do mundo se esgotando contra ele. Ao passar por essa provação e ser vindicado por Deus na Ressurreição, ele emerge como o vitorioso (Christus Victor), tendo curado a natureza humana, derrotado a morte e aberto um caminho para que nós sejamos "sarados" e "justificados" (feitos justos) através da união com ele.
9. Qual a importância insubstituível da Ressurreição na doutrina ortodoxa?
Em muitos esquemas de substituição penal, a Ressurreição pode parecer um "pós-escrito" legal – a prova de que o pagamento foi aceito. Na visão ortodoxa, a Ressurreição é o ato central da vitória. É a culminação do Christus Victor. A cruz foi a batalha; a Ressurreição é a vitória declarada. Se "Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados" (1 Coríntios 15:17). A Ressurreição é a prova de que a morte foi vencida, o poder de Satanás foi quebrado e a nova criação foi inaugurada. É através da Ressurreição que Cristo pode nos comunicar Sua vida nova e divinizada, permitindo que andemos "em novidade de vida" (Romanos 6:4).
10. Qual é, então, o objetivo final ou o telos da redenção?
O objetivo final não é meramente um perdão legal que nos permite "entrar no céu". É algo muito mais profundo e transformador: a Theosis (deificação ou divinização). Este é o ensinamento patrístico, resumido na famosa frase de Santo Atanásio: "Deus se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus". Isso não significa que nos tornamos ontologicamente divinos, mas que somos chamados a nos tornar, por graça, aquilo que Cristo é por natureza. Somos chamados a ser "participantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). A redenção de Cristo cura nossa natureza para que possamos ser elevados a uma união íntima e transformadora com a vida da Santíssima Trindade. Todo o processo redentor – Encarnação, vida, morte e ressurreição – visa esta comunhão gloriosa.
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