Seis exemplos de resistência ao Bispo de Roma na história da Igreja



1) Bispos da Ásia na controvérsia da Páscoa com Victor I.

No século II, o papa Victor I ordenou, sob pena de excomunhão, que a Páscoa fosse celebrada na mesma data, proibindo uma prática diferente dos bispos da Ásia. Jerônimo narra que S. Polícrates "escreveu uma carta sinodal contra Victor bispo de Roma na qual ele diz que segue a autoridade do apóstolo João e dos antigos". A carta de Polícrates dizia:
"Não temerei aqueles que nos ameaçam, pois meus predecessores disseram que 'é melhor obedecer a Deus do que aos homens'".  
Ao que Jerônimo acrescenta: 
"Cito isso para mostrar através de um pequeno exemplo o gênio e a autoridade do homem" (De Viria Illustribus, 45).
Claramente, Jerônimo aprovava o comportamento de S. Polícrates. Eusébio de Cesaréia também narra o episódio:
Victor, que presidia a igreja em Roma, (...) tentou cortar da unidade comum as paróquias [dioceses] de toda a Ásia, com as igrejas que concordavam com elas, como heterodoxas; e ele escreveu cartas e declarou todos os irmãos ali totalmente excomungados. Mas isso não agradou a todos os bispos. E rogaram-lhe que considerasse as coisas da paz, da unidade e do amor ao próximo. Há ainda as palavras deles, repreendendo fortemente Victor (História Eclesiástica, V, 24).

O assunto só foi resolvido no Concílio de Niceia, que uniformizou a prática.

2) S. Cipriano, S. Firmiliano e outros bispos na controvérsia do batismo com Estevão I.

No século III, o papa Estevão I deu a ordem para que ninguém fosse re-batizado, após ter recebido o batismo das mãos de hereges e cismáticos. Cipriano reuniu um concílio de bispos em Cartago, onde todos concordaram em não aceitar as ordens do papa:
Pois nenhum [de nós] se estabeleceu [para ser] bispo [dos bispos], ou tentou com pavor tirânico forçar seus colegas à obediência a ele, já que todo bispo tem, para a licença da liberdade e do poder, sua próprio vontade, e como ele não pode ser julgado por outro, também não pode julgar outro. Mas aguardamos o julgamento de nosso Senhor universal, nosso Senhor Jesus Cristo, que unicamente e somente tem o poder, tanto de nos fazer avançar no governo de sua Igreja, quanto de julgar nossas ações [nessa posição].
S. Firmiliano, bispo de Cesaréia, escreveu em apoio a Cipriano e declarando o papa Estevão excomungado:
Pois é você mesmo [Estevão] que você cortou. Não se engane, pois é realmente o cismático aquele que se fez apóstata da comunhão da unidade eclesiástica. Pois enquanto você pensa que todos podem ser excomungados por você, você se excomungou sozinho de todos.
É verdade que, posteriormente, a questão foi uniformizada nos concílios ecumênicos contra o rebatismo. Mas Sto. Agostinho explica assim a oposição de Cipriano a Estevão:
Pois naquela época, antes que o consentimento de toda a Igreja tivesse declarado com autoridade, por decreto de um concílio plenário, qual prática deveria ser seguida nesta questão, parecia-lhe [a Cipriano], em comum com cerca de oitenta de seus colegas bispos da igrejas da África, que todo homem que foi batizado fora da comunhão da Igreja Católica deveria, ao ingressar na Igreja, ser batizado de novo (Sobre o batismo, I).
Em outras palavras, Agostinho não condenava Cipriano por ter resistido ao papa Estevão, visto que a prática correta ainda não havia sido "declarada com autoridade" por um Concílio ecumênico. As implicações disso são óbvias.
 
3) S. Basílio e S. Melécio sobre o legítimo ocupante da cátedra de Antioquia.

No século IV, houve uma controvérsia sobre quem seria o legítimo bispo de Antioquia. O papa Dâmaso assumiu a defesa de Paulino e ordenou que ele fosse reconhecido como o legítimo bispo. S. Basílio reagiu enfaticamente contra, pois defendia a legitimidade de S. Melécio (cuja aceitação era tão ampla que ele acabou presidindo o Concílio de Constantinopla I, mesmo não estando em comunhão com Roma).

S. Basílio escreveu sobre o assunto:
Parabenizo aqueles que receberam a carta de Roma. E, apesar de este ser um testemunho grande em seu favor, apenas espero que seja verdadeiro e confirmado por fatos. Mas jamais serei capaz de persuadir-me por esse motivo a ignorar Melécio [de Antioquia], ou a esquecer a igreja que está sob ele, ou a tratar as questões que originaram a controvérsia como coisa pequena e de pouca importância para a verdadeira religião. Nunca consentirei em ceder meramente porque alguém está eufórico em receber uma carta de homens. Ainda que [a carta] tivesse caído do céu, se não concorda com a doutrina correta da fé, não posso olhar para ele como alguém em comunhão com os santos (Carta 214).
S. Melécio morreu fora da comunhão com Roma, mas foi unanimemente reconhecido como santo no Oriente. A respeito dele S. João Crisóstomo deixou-nos uma famosa homilia, louvando-o.

4) A Igreja Africana na proibição de apelos a Roma.

Tudo começa no século V com um padre chamado Apiarius, que foi acusado por seus paroquianos em Tabraca (Tabarka na Tunísia moderna) de “crimes muito grandes”. O Concílio de Cartago ordenou uma investigação e o considerou culpado, depondo-o do sacerdócio. Nessa época, Cartago e a parte ocidental do norte da África estavam nominalmente “sob” a Igreja de Roma, embora isso estivesse longe de ser um assunto claro e resolvido. Apiarius e seu amigo, o bispo Faustinus - que originalmente havia sido designado pelo Concílio de Cartago como investigador do caso, mas se tornou advogado e defensor de Apiarius - viajaram para Roma e apelaram ao Papa, que pretendia anular a decisão sobre Apiarius, restabelecendo-o no sacerdócio. A dupla voltou de Roma, e Apiarius veio ao Concílio e “se opôs veementemente a toda a assembléia, infligindo-nos muitas injúrias, sob o pretexto de afirmar os privilégios da Igreja Romana e desejando que ele fosse recebido em comunhão por nós”.

“Mas isso não permitimos de forma alguma”, escreveu o Concílio.

O Concílio respeitosamente, mas com firmeza, disse ao Papa para não ouvir apelos de quem fosse deposto ou excomungado pelo Sínodo da África. Entre outros argumentos, disse o Concílio, “quem se achar lesado por qualquer sentença pode apelar para o concílio de sua Província, ou mesmo para um Concílio Geral [i.e. da África] a menos que se imagine que Deus possa inspirar um único indivíduo com justiça e recusá-la a uma multidão inumerável de bispos reunidos em Concílio”.

O mais interessante de tudo é que Roma fundamentou seu poder de decidir apelos de sacerdotes na África em cânones do Concílio de Sardica (que haviam sido erroneamente confundidos com cânones do Concílio de Nicéia). O Concílio de Cartago, diante disso, aguardou o recebimento de cópias autênticas dos cânones nicenos por parte dos orientais e, após ficar comprovado que não havia tais cânones (pois não eram nicenos), os africanos simplesmente informaram Roma de que não aceitariam sua autoridade de decidir apelos vindos da África.

Assim o assunto foi resolvido definitivamente.

Um trecho interessante da carta do Concílio ao Papa:
Que Vossa Santidade envie alguém de sua parte [para anular nossa decisão] não encontramos ordenado por nenhum Concílio dos Padres. Porque em relação ao que você nos enviou pelo mesmo nosso irmão bispo Faustino, como contido no Concílio de Nicéia, não podemos encontrar nada semelhante nas cópias mais autênticas desse Concílio, que recebemos do santo Cirilo, nosso Irmão, Bispo da Igreja Alexandrina, e do venerável Ático, Prelado de Constantinopla, e que anteriormente enviamos por Inocêncio, o presbítero, e Marcelo, o subdiácono, por meio de quem os recebemos, a Bonifácio, o Bispo, seu predecessor de venerável memória. Além disso, quem quiser que você delegue a alguém de seu clero para executar suas ordens, não aceite, para que não pareça que estamos introduzindo o orgulho do domínio secular na Igreja de Cristo, que exibe a todos que desejam ver Deus a luz da simplicidade e o dia da humildade.
5) Os bispos do concílio de Calcedônia sobre o Cânon 28.

A partir do século V, começou a haver uma clara divergência na forma como Ocidente e Oriente enxergavam a primazia de Roma. Para constatarmos essa divergência, basta citar o cânon 28 do Concílio de Calcedônia, escrito pelos orientais, com o seguinte teor:
"Seguindo em tudo as decisões dos santos Padres, e reconhecendo o cânon, que acabou de ser lido, dos Cento e Cinquenta Bispos amados-de-Deus (que se reuniram na cidade imperial de Constantinopla, que é a Nova Roma, em época do Imperador Teodósio de feliz memória), também promulgamos e decretamos as mesmas coisas a respeito dos privilégios da Santíssima Igreja de Constantinopla, que é a Nova Roma. Pois os Padres justamente concederam privilégios ao trono da velha Roma, PORQUE ERA A CIDADE IMPERIAL. E os cento e cinquenta bispos mais religiosos [isto é, no segundo concílio ecumênico], movidos pela mesma consideração, deram PRIVILÉGIOS IGUAIS ( ἴσα πρεσβεῖα ) ao santíssimo trono da Nova Roma, julgando com justiça que a cidade que é honrada com a Soberania e o Senado, e goza de privilégios iguais com a antiga Roma imperial, deveria em questões eclesiásticas também ser engrandecida como ela é..."
Os orientais achavam normal dar "iguais privilégios" à Nova Roma (como Constantinopla era chamada), porque entendiam que a primazia entre as Igrejas derivava mais de questões temporais e históricas ("os Padres concederam privilégios ao trono da Velha Roma, porque era a cidade imperial") do que de uma disposição imutável.

Naquela época, Roma não aceitou esse cânon e ordenou expressamente sua anulação. Protestou, pois queria que fosse mantida a ordem original de precedência: Roma, Alexandria e Antioquia. É irônico que essas duas últimas tenham tão pouca importância para o catolicismo atual.

Mas o fato é que a ordenação permaneceu inalterada para os orientais, mesmo com as ordens de Roma. Prova disso é que, em 692, um Concílio em Constantinopla (conhecido como de Trullo ou o Quinissexto, que suplementou o Quinto e o Sexto concílios ecumênicos) estabeleceu no cânon 36:
Renovando os decretos dos 150 Padres reunidos na cidade imperial e protegida por Deus, e os dos 630 que se reuniram em Calcedônia; decretamos que a Sé de Constantinopla terá privilégios iguais aos da Sé da Antiga Roma, e será altamente considerada em assuntos eclesiásticos como é, e será a segunda depois dela. Depois de Constantinopla será classificada a Sé de Alexandria, depois a de Antioquia e depois a Sé de Jerusalém.
Ainda mais tarde, o Sétimo Concílio Ecumênico (de Niceia II) selou com sua autoridade os cânones do Concílio de Trullo (vide Cânon 1).

Na verdade, porque a resistência à expressa ordem de Roma ocorreu em três Concílios ecumênicos (Calcedônia, Trullo e Niceia II), este poderia contar como três exemplos distintos.

6) A cláusula filioque na Igreja franca.

O historiador John Julius Norwich relata em Absolute Monarchs, a History of the Papacy como o Papa Leão III (750-816) proibiu a adição do filioque no Credo, embora essa decisão tenha sido ignorada e desobedecida pelo imperador Carlos Magno e a Igreja franca:
Ele [Carlos Magno] já havia feito uma intervenção moderadamente desastrosa no debate iconoclasta; em 810 ele se envolveu mais uma vez em questões teológicas, desta vez sobre outro velho cavalo de guerra, a cláusula filioque. O Credo original determinado pelos Concílios de Nicéia e Constantinopla sustentava que o Espírito Santo “procede do Pai”; a isso, a partir do século VI, a Igreja Ocidental acrescentou a palavra filioque, “e do Filho”. Na época de Carlos, essa adição foi geralmente adotada em todo o império franco e, em 809, foi formalmente endossada pelo Concílio de Aachen, sua própria capital. Dois anos antes, os monges francos no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, o introduziram em seus serviços, despertando uma oposição furiosa da comunidade oriental do vizinho Mosteiro de São Saba, após o que encaminharam a questão ao papa para uma decisão definitiva.

Leão [III] estava em um dilema. Como um ocidental devoto, ele estava perfeitamente feliz com a palavra ofensiva [isto é, com o ensino de que o Espírito "procede do Pai e do Filho" de algum modo], para a qual havia boa autoridade bíblica. Por outro lado, ele estava preparado para admitir que a Igreja Ocidental não tinha o direito de adulterar um Credo que havia sido redigido por um Concílio Ecumênico, e as relações com Constantinopla já eram bastante difíceis sem desencadear outro conflito. Sua solução foi uma tentativa de fazer as duas coisas: aprovar a doutrina enquanto suprimia a própria palavra – o que ele fez, não por meio de qualquer edito inflamatório, mas por ter o texto do Credo em sua forma original – ou seja, sem o filioque — gravada em grego e latim em duas placas de prata que foram fixadas nos túmulos de São Pedro e São Paulo. Seu endosso da unidade das duas igrejas em sua autoria conjunta do antigo Credo dificilmente poderia ter sido mais claro.

Carlos Magno, no entanto, estava previsivelmente furioso. Ele crescera com o filioque; se o Oriente se recusou a aceitá-lo, o Oriente estava errado. E quem se importava com o Oriente, afinal? Ele era o imperador agora; o papa deve pregar suas cores firmemente no mastro ocidental e deixar os hereges em Constantinopla por conta própria. Quando Leão [III] ordenou que ele removesse a palavra de suas liturgias, ele não fez nada e não respondeu; e quando, em 813, ele decidiu fazer de seu filho Luís co-imperador, ele claramente deixou de convidar o papa para realizar a cerimônia.
Outro historiador, Henry Chadwick, narra assim a resposta de Leão III em East and West, the Making of a Rift in the Church:
(...) Leão III evidentemente considerou as trocas neste debate como sendo assuntos de grande importância pública para a comunidade em geral. Em protesto contra os francos, talvez para tranquilizar os numerosos gregos em Roma, ele fez com que fossem erguidos em ambos os lados do memorial de São Pedro dois escudos de prata inscritos com o Credo de Constantinopla (381) em grego e latim, em ambos os casos sem Filioque. (Os escudos estavam lá 300 anos depois para Abelardo ver e comentar.) O Sacramentário Gelasiano do século VIII mostra que a forma de Credo usada em Roma no catecismo durante o século VIII não tinha filioque, de modo que Leão [III] estava afirmando a tradição romana existente, mesmo que tenha havido apenas uma declaração consciente de dissidência de Aachen. Que em Aachen houvesse qualquer intenção séria de seguir o desejo do Papa Leão de que o filioque fosse abandonado é muito improvável. Dois séculos depois, o filioque havia se tornado tão universal em todo o Ocidente latino que, aparentemente, até Roma acabou por ceder no ponto de uso litúrgico sob pressão dos Ottos saxões.
O registro da conferência entre os delegados de Aachen e o Papa Leão III é especialmente interessante pelo modo como o Papa via a autoridade do Credo. A seguir estão algumas passagens da conferência desses delegados com o Papa Leão, conforme relatado por Smaragdus, Abade de São Miguel em Lorena (Tom. Vii. Cone. Col. 1194.):
Delegados [francos]: Os mesmos criadores do Credo não teriam se saído bem se, acrescentando apenas quatro sílabas, eles tivessem tornado claro para todas as idades seguintes um mistério de fé tão necessário? 
Papa: Como não me atrevo a dizer que não teriam feito bem se o tivessem feito, porque, sem dúvida, teriam feito com ele como com o resto que omitiram ou colocaram, sabendo o que fizeram, e sendo iluminados não pela sabedoria humana, mas divina, então nem ouso dizer que eles entenderam este ponto menos do que nós: pelo contrário, eu digo que eles consideraram por que o deixaram de fora, e por que, uma vez deixado de fora, eles proibiram isso ou qualquer outra coisa a ser adicionada posteriormente. Considerai o que pensais de vós mesmos; pois, quanto a mim, não digo apenas que não me colocarei acima (daqueles santos Padres), mas Deus me livre de que eu me iguale a eles.

Ironicamente, este é o único exemplo no qual os defensores da supremacia papal CONCORDARAM com a desobediência, inclusive por serem herdeiros daqueles que a praticaram em primeiro lugar. 

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