Uma visão cristã sobre seguridade social

Um dos frutos da aliança atual entre conservadores e libertários é a rejeição do chamado Estado social, ou seja, da rede de seguridade social que tem caracterizado os Estado modernos. Alega-se frequentemente que não é papel do Estado ajudar os mais pobres (via impostos), pois isto equivale, dizem, a roubar dos ricos para distribuir aos pobres. Na ética libertária, seria uma violação do direito à propriedade e, além disso, uma estrada para o socialismo.


Por isso é comum as pessoas pensarem que ser "de direita" implica negar que o Estado distribua benefícios sociais como saúde, previdência e assistência social. Ou, pelo menos, tentar restringir esses benefícios ao mínimo possível. Para alguns, significa que o Estado está tirando daqueles que "se esforçaram" e distribuindo aos que não merecem. E qualquer redistribuição de riquezas seria ideia "da esquerda".

Tais concepções revelam tremenda ignorância da história.

Em primeiro lugar, foram conservadores, como o chanceler alemão Otto von Bismarck, que estabeleceram os primeiros programas de seguro social. Eles o fizeram porque as massas de pobres representavam uma instabilidade social para a Nação e um celeiro para movimentos radicais (como o comunismo). No pós-guerra, Winston Churchill - um dos ícones do conservadorismo - estava entre os fundadores da moderna rede de seguridade social na Inglaterra.

Naquela época, era a esquerda socialista que desconfiava de tais medidas. Em sua obra Social Democracy and Welfare Capitalism, Alexander Hicks escreve:
Embora as reformas de seguro social fossem meramente toleradas nos primeiros manifestos socialistas, passagens dessas reformas aparecem como marcos dos apelos conservadores e liberais aos eleitores da classe operária e das respostas às ameaças socialistas, pelo menos na Alemanha e no Reino Unido.
Muitos marxistas pensavam que tais medidas visavam "mascarar" o problema inerente ao capitalismo que, afinal de contas, jamais poderia ser humanizado. Em discurso à Liga Comunista de Londres, em 1850, Karl Marx declarava:
(...) a pequena-burguesia democrática deseja melhores salários e segurança para os trabalhadores, e espera alcançá-lo por uma extensão do emprego estatal e por medidas de seguridade social [welfare measures]; em resumo, eles esperam subornar os trabalhadores com uma maior ou menor forma disfarçada de esmolas e assim quebrar sua força revolucionária tornando sua situação temporariamente mais tolerável.
Karl Marx entendia que o grande capital cumpria uma "função revolucionária" na história, como ele declara em seu Manifesto, e que seria precisamente o capitalismo selvagem que levaria, pelo aumento das tensões de classes, à explosão revolucionária do comunismo.

Em outras palavras: aquilo que conservadores conceberam como instrumento de "conciliação de classes" (e que por isso mesmo era visto com desconfiança pela esquerda revolucionária), agora é transformado por esquerdistas em instrumento da "luta de classes". Por essa razão, os conservadores devem reverter a situação e mostrar o verdadeiro sentido desses institutos.

Outro exemplo importante do século XIX foi o Papa Leão XIII, que, em 1891, conclamou o Estado a agir em favor dos mais desfavorecidos (na famosa encíclica Rerum Novarum, que teve importante papel histórico):
A classe rica faz das suas riquezas uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a protecção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.
Se voltarmos um pouco mais na história, vemos que o Estado sempre cumpriu funções que podemos chamar de "seguridade social", em um sentido amplo, especialmente de assistência social para os mais desfavorecidos. Eusébio de Cesaréia escreve que o imperador Constantino contribuiu com fundos para as igrejas a serem usados exclusivamente em suas obras filantrópicas para "os pobres, os órfãos e as mulheres destituídas" (De Vita Constantini, IV:28). D. J. Constantelos narra, em Byzantine Philantropy and Social Welfare, como Estado e Igreja mantinham conjuntamente uma rede de hospitais, abrigos para órfãos e outras instituições voltadas à assistência social:
Desde a dedicação de sua capital em 330 até seu colapso em 1453, o Estado Bizantino foi caracterizado por muitas manifestações de políticas filantrópicas. Através de leis especiais e da iniciativa dos imperadores, hospitais foram criados; orfanatos onde os órfãos eram não apenas alimentados, mas também educados, foram construídos; institutos especiais para leprosos foram construídos; e casas que providenciavam comida e abrigo para viajantes.
Quando o Estado começou a desligar-se da Igreja, na história moderna, aquelas funções que eram realizadas tradicionalmente pela Igreja (embora muitas vezes com fundos do Estado, ou seja, via impostos), começaram a ser assumidas diretamente pelo Estado. Assim surgiram, na Inglaterra do século XVI, as chamadas Poor Laws, as leis voltadas à assistência social. E tais leis não foram repudiadas nem mesmo pelos "pais" do liberalismo clássico, como Adam Smith e John Locke. Na realidade, as Poor Laws representam, de forma ainda incipiente, o que mais tarde seria o moderno sistema de seguridade social.

Diga-se de passagem que, ao contrário do que muita gente pensa, os Estados Unidos também possuem uma rede de seguridade social - de que são exemplos programas como o Social Security, o Medicare e o Supplemental Nutrition Assistance Program, etc.

Até mesmo os liberais atuais como Milton Friedman e Friedrich Hayek disseram-se favoráveis a um sistema de renda mínima para os mais pobres ou outro tipo de seguridade social. Por exemplo, Hayek diz, no volume 2 de Direito, Legislação e Liberdade:
Não há razão para que, numa sociedade livre, o governo não garanta a todos proteção contra sérias privações sob a forma de uma renda mínima garantida, ou um nível abaixo do qual ninguém precise descer. Participar desse seguro contra o extremo infortúnio pode ser do interesse de todos; ou pode-se considerar que todos têm o claro dever moral de assistir, no âmbito da comunidade organizada, os que não podem se manter. Na medida em que uma tal renda mínima uniforme é oferecida, à margem do mercado, a todos que, por qualquer razão, são incapazes de obter no mercado uma manutenção adequada, isso não implica necessariamente uma restrição da liberdade, ou conflito com o estado de direito.
Em todos esses casos - desde o Império Bizantino, passando pela Inglaterra do século XVI, até chegar aos Estados contemporâneos -, o princípio é o mesmo. Pode ser sintetizado nas palavras acima de Hayek: todos tem o claro dever moral de assistir, no âmbito da comunidade organizada, os que não podem se manter. Evidentemente, isso é bem diferente de legislações exageradas que desestimulam o trabalho e o esforço. Trata-se aqui de ajudar aos que, genuinamente, "não podem se manter".

Diogo Freitas do Amaral, em sua História do pensamento político ocidental, resume de maneira muito clara esse pensamento:
É claro que, na Idade Média e até à Revolução Francesa, a proteção social dos mais pobres e desamparados competia, por tradição, à Igreja e não ao Estado, embora os reis e as rainhas fizessem largas doações com fins de assistência social. (...) Em nossa opinião, sempre existiu na história uma ou outra forma de Estado Social, pelo menos desde os tempos em que os generais vitoriosos, eleitos cônsules em Roma, distribuíam terras do Estado aos soldados que a desmobilização tornava famintos. Entre nós, quando D. João II, em 1492, cria e fica a financiar o Hospital de Todos-os-Santos em Lisboa; quando a Rainha D. Leonor, sua viúva, funda e financia as Misericórdias com o dinheiro da Coroa; ou quando D. Maria I, em 1780, cria e sustenta a Casa Pia de Lisboa - não estavam todos a concretizar, avant la lettre, um primeiro modelo, embora incipiente, de Estado Social sustentado por dinheiros públicos? E o mesmo não deve dizer-se da criação dos liceus, em 1836, por Passos Manuel? Ou da criação da Repartição da Saúde Pública, na orgânica do Governo, em 1844? Ou dos asilos de mendicidade, no Porto, em 1846? Ou quando a 1ª República criou, a partir de nada, um sistema de seguros sociais obrigatórios (doença, invalidez e velhice), em 1919? (...) O princípio de que o Estado tem, e deve continuar a ter, funções de proteção social dos mais pobres ou dos mais desfavorecidos não deve ser, em nossa opinião, abandonado, porque faz parte da essência do conceito de Estado como comunidade: em todas as comunidades, desde a família até a comunidade internacional, os que podem tem a obrigação de ajudar os que precisam.
Diante dessa realidade, um conservador não tem desculpas para rejeitar esse princípio em favor de uma ética libertária e individualista. Chega-se ao cúmulo de afirmar que qualquer ação voltada à assistência social, à saúde pública ou à previdência, equivaleria a "roubar dos ricos que pagam impostos", portanto seria algo ilegítimo. O problema por trás desse raciocínio é o individualismo extremado.

Por isso, acredito que os conservadores devem rejeitar a ética louca de Ayn Rand, Ludwig von Mises e outros autores individualistas ou libertários. É uma questão de coerência com os princípios da ordem moral cristã.

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