Qual é o verdadeiro 4º Concílio de Constantinopla?

 
Se buscarmos as listas dos Concílios ecumênicos, verificaremos que ortodoxos e católicos diferem sobre qual deve ser contado como o 8º Concílio ecumênico - também conhecido como o 4º Concílio de Constantinopla. Para os católicos, foi o sínodo realizado em 869-870. Para os ortodoxos, foi o que se realizou aproximadamente dez anos depois, em 879-880. Quem está certo?

O historiador católico Francis Dvornik abordou a questão em sua obra The Ecumenical Councils (1979). Ele explica que o sínodo de 869-870 (reconhecido pelos católicos) teve uma participação baixa e condenou o patriarca São Fócio:
A primeira sessão do Concílio [em 869-870], que se autodenominou Oitavo Ecumênico, contou com a presença de apenas doze prelados (5 de outubro de 869) e na última sessão, a décima (28 de fevereiro de 870), não mais de 102 prelados estiveram presentes. Por insistência do imperador, Fócio teve a oportunidade de se defender. Embora tenha proclamado corajosamente sua inocência e negado aos legados o direito de julgá-lo, foi excomungado com muitos de seus adeptos.

Como a grande maioria do clero permaneceu fiel a Fócio, Inácio encontrou grandes dificuldades na administração de seu patriarcado. Além disso, ele entrou em mais conflito com o Papa João VIII porque defendeu seus direitos na Bulgária, cujo governante Boris havia desertado de Roma (...).

Posteriormente, Inácio e Fócio se reconciliaram, ocorrendo o retorno deste último ao patriarcado. Essa reunião foi celebrada no concílio de 879-880 (reconhecido pelos ortodoxos):

Quando Fócio foi chamado de volta do exílio pelo imperador, Inácio se reconciliou com ele e pediu a Roma que enviasse legados para um novo concílio, que confirmaria a pacificação da Igreja bizantina. Os legados chegaram a Constantinopla somente após a morte de Inácio (23 de outubro de 877), e encontraram Fócio no trono patriarcal. O papa lhes enviou novas instruções, que continham o reconhecimento da elevação de Fócio, sob a condição de que ele pedisse perdão por seu comportamento anterior. 
Mas Fócio convenceu os legados de que havia sido eleito canonicamente e que merecia uma reabilitação incondicional. Portanto, as cartas papais foram lidas no concílio em uma nova versão, que omitiu a condição do papa (...).

Nesse sínodo, diz o Pe. Dvornik, o concílio anterior de 869-870 "foi cancelado". Após o retorno dos legados papais ao Papa João VIII, este aceitou a recusa de Fócio em pedir perdão por faltas anteriores. Conforme narra o historiador católico em Photian Schism, History and Legend (1958):

Depois de receber os legados no verão de 880, João VIII estudou cuidadosamente seus relatórios, os Atos do Concílio e as cartas do Imperador e do Patriarca. A resposta a essas cartas, datada de 13 de agosto do mesmo ano [M.G.H. Ep. vii, pp. 227, 228.], mostra com bastante clareza como o Papa reagiu aos acontecimentos em Constantinopla.
A carta de João VIII, em resposta a Fócio, diz:

Além disso, você insinuou em sua carta que, por sua sugestão, apenas aqueles que fizeram o mal devem pedir misericórdia. Também concordamos caridosamente que devemos lidar assim com aqueles que dizem que não conhecem a Deus. No entanto, não queremos exagerar o que foi feito, para que não tenhamos que julgar de acordo com os méritos. Portanto, deixe tais desculpas serem abandonadas, para que não caiam sob a condenação: ‘Vocês é que que se justificam diante dos homens, mas Deus conhece seus corações; pois o que é grande aos olhos dos homens é abominável aos olhos de Deus'.

Portanto, que a sua maravilhosa prudência, que se diz conhecer a humildade, não se ofenda por lhe ter sido pedido para suplicar a Igreja de Deus por misericórdia, mas antes humilhe-se para que seja exaltado e para que aprenda a dar fraternalmente afeição para quem mostrou misericórdia a você; e se tentar aumentar sua devoção e lealdade à Santa Igreja Romana e à nossa pessoa insignificante, nós também o abraçamos como um irmão e o temos como o amigo mais próximo.

Também aprovamos o que foi feito misericordiosamente em Constantinopla pelo decreto sinodal de sua reintegração e se por acaso no mesmo sínodo nossos legados agiram contra as instruções apostólicas, nem aprovamos sua ação nem atribuímos qualquer valor a ela.

Dvornik narra que João VIII percebeu que sua condição para a reintegração de Fócio (ou seja, que ele pedisse perdão) não foi aceita e até foi removida de seus documentos, mas ainda assim o papa não quis denunciar o fato e o aceitou como tal. Ele confirma que o papa "leu todos os Atos", e expressou seu reconhecimento ("aprovamos o que foi feito misericordiosamente em Constantinopla").

Com relação à última frase, de certo modo enigmática ("se por acaso... nossos legados agiram contra as instruções apostólicas, nem aprovamos sua ação nem atribuímos qualquer valor a ela"), Dvornik a interpreta como uma "cláusula cautelar" acerca de seu próprio primado. Não significa que o papa esteja negando o que foi dito ao longo de todo o documento, ou seja, que ele aprovou as decisões do sínodo tal como chegaram a ele. 

Assim se realizou a reunificação das igrejas e o fim do chamado (no ocidente) "cisma de Fócio". Posteriormente, S. Fócio se mostrou sempre grato ao papa, chamando-o de "meu João" (Mistagogia do Espírito Santo, 89). Anos depois, ele teve que renunciar a pedido do imperador Leão VI, mas morreu em comunhão com Roma em 891.

Isso era tão bem estabelecido que o canonista ocidental Ivo de Chartres registrou:

Que o sínodo de Constantinopla contra Fócio não deve ser aceito. João VIII disse ao Patriarca Fócio: Anulamos e revogamos absolutamente o sínodo contra Fócio realizado em Constantinopla tanto por outras razões como porque o Papa Adriano não o sancionou. (‘Constantinopolitanum synodum eam quae contra Photium est non esse recipiendam. Joannes VIII patriarchae Photio.’—‘Illam quae contra Photium facta est Constantinopoli synodum irritam facimus et omnino delevimus, tam propter alia, tam quoniam Adrianus papa non subscripsit in ea.’) [Decr, IV, 76].

J. N. D. Kelly, um estudioso patrístico anglicano, também reconheceu que Roma aceitou os decretos do Concílio de 879-880:

(...) o Concílio [879-80], reconhecido no Oriente como o Oitavo Concílio Geral... reafirmou o Credo de Constantinopla (381), e proibiu quaisquer acréscimos a ele; os romanos podiam concordar porque não havia discussão sobre a doutrina da dupla processão do Espírito Santo, e o Credo usado em Roma ainda não incluía o filioque. João [VIII] foi estadista o suficiente para ratificar suas decisões com o pós-escrito salvador de que ele rejeitou tudo o que seus legados poderiam ter concordado contra suas instruções (Oxford Dictionary of Popes, pg. 111).

Como, então, ocorreu a mudança na Igreja Ocidental, de modo que o concílio cancelado de 869-870 fosse enfim contado como o "oitavo concílio ecumênico"? Dvornik explica, em The Ecumenical Councils (capítulo I, 11), que isso ocorreu durante a Reforma Gregoriana (século XI):

Por uma coincidência interessante, aconteceu que os Atos dos Concílios do século IX, até então esquecidos no Ocidente, foram descobertos durante o reinado de Gregório VII, e sua interpretação começou a exercer uma profunda influência sobre os canonistas e teólogos ocidentais. A fim de encontrar evidências documentais mais convincentes para sua definição de primado papal, Gregório abriu os arquivos pontifícios para os canonistas encarregados da compilação de novas coleções de direito canônico. O que os canonistas mais precisavam era de uma decisão conciliar que pudesse ser usada contra a interferência de leigos na nomeação de bispos. Eles descobriram tal cânone (o vigésimo segundo) no concílio inaciano de 869-70, que se autodenominava ecumênico. Negligenciando o fato de que este concílio havia sido cancelado por outro - cujas Atas também foram mantidas nos arquivos pontifícios -, eles estabeleceram o concílio de 869-70 como um dos mais importantes Concílios Gerais. Este concílio foi designado pelos canonistas em suas coleções como o Oitavo Ecumênico. Mas anteriormente, como fica claro pelas declarações dos Papas Marino II e Leão IX, de São Pedro Damião e do Cardeal Humberto, os romanos, como os gregos, contavam apenas sete Concílios Ecumênicos.

Juntamente com os Atos, os canonistas descobriram as cartas de Nicolau I relacionadas ao caso Fócio. Impressionados pela atitude corajosa do papa contra o imperador Miguel III e pela excomunhão de um patriarca, a partir desses documentos construíram uma base firme para a defesa de todas as reivindicações estabelecidas no Dictatus Papae. Alguns chegaram ao ponto de concluir deles que Nicolau I havia excomungado um imperador, Miguel III – o que era falso – e viram nisso uma justificativa para a excomunhão de Gregório e a deposição do imperador Henrique IV.

Desse modo, o que ocorreu foi uma falsificação da história. A partir de então os canonistas católicos passariam a dizer - como se lê em Adrian Fortescue na Enciclopédia Católica de 1911 - que quando Fócio "enviou os Atos [do concílio] ao papa para sua confirmação... [o papa] João, naturalmente, novamente o excomungou". Mas isso contradiz os documentos da época, como mostram até historiadores católicos como o Pe. Dvornik,

O verdadeiro "oitavo concílio ecumênico" - se o contarmos assim em vez de reconhecer apenas sete ecumênicos - só pode ser o sínodo de 879-880, pois foi este que obteve reconhecimento na época tanto pelas Igrejas orientais quanto pelo Ocidente através do Papa João VIII.

Mas, afinal de contas, o que foi decidido no 4º concílio de Constantinopla (879-880) e confirmado pelo Papa?

Três questões principais:

1) Primeiro, foi confirmada a ecumenicidade do 2º concílio de Niceia, que condenou o iconoclasmo e defendeu a veneração dos ícones;

2) Confirmou a legitimidade de S. Fócio como patriarca de Constantinopla, nesse sentido anulando o que fora decidido contra ele em 869-870 (o sínodo hoje reconhecido como ecumênico pelos católicos);

3) Por último, este concílio anatematizou qualquer alteração no Credo Niceno-Constantinopolitano, condenando qualquer "adição ou remoção" e o uso de "frases inventadas", numa referência implícita, porém clara, à inserção do filioque no Credo. Não é surpreendente que o Papa aceitasse esse anátema, uma vez que, na época, Roma não utilizava o filioque no Credo e tinha proibido aos francos (como testemunhou o Papa Leão III, um dos predecessores de João VIII) sua adição.

Leia mais: The 8th Ecumenical Council (Pe. George Dragas).

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