I
De acordo com o protestantismo, a Igreja não precisa existir como uma organização única, dotada de unidade visível. Ela está onde "o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho" (Conf. Augburgo, n. 7). Diante das divergências de crença e prática entre as várias denominações protestantes, apela-se ao conceito de um núcleo essencial da fé, ou seja, a Igreja estaria dispersa entre todas as denominações que confessam os artigos fundamentais.
Entretanto, não existe consenso sobre quais artigos de fé seriam fundamentais ou secundários. O protestante se vê entre duas possibilidades, igualmente insatisfatórias: por um lado, reduzir a unidade da Igreja a um número pequeno de crenças - somente o Credo Apostólico, para alguns, ou simplesmente a confissão de que "Jesus é Senhor" -, como uma espécie de "menor denominador comum"; por outro lado, exigir a confissão de todos os artigos de determinada denominação (a presbiteriana ou a luterana, por exemplo), para que alguém ou alguma comunidade seja considerada parte da Igreja de Cristo.
A primeira proposta é tendente ao liberalismo e à mediocridade. Ela permite que quase todo tipo de erro seja legitimado na Igreja, como parte do ensino desta ou daquela denominação. A segunda proposta implica em negar que o protestantismo, tomado em seu conjunto, possa ser a Igreja de Cristo. Significa dizer que só aquela denominação específica é a Igreja verdadeira - uma alegação impossível, já que o protestante nega a infalibilidade de qualquer credo ou confissão (essa é a essência da sola scriptura).
Como decorrência da falibilidade de todos os credos e confissões, sempre é possível rever e mudar as interpretações. Cada nova geração e cada cristão individualmente deve verificar ponto a ponto dos ensinamentos de sua denominação, aceitando-os ou rejeitando-os de acordo com sua interpretação do texto sagrado. Por isso surgiram tantas denominações novas.
II
Em contraste, quando a Bíblia diz que devemos “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4,3), a unidade da Igreja é descrita nos seguintes termos:
Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos vós (Ef 4,4-6).
Sobre os ministérios como dons de Cristo na Igreja, São Paulo nos diz:
Ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; (...) para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina (Ef 4,11-14).
Em outra passagem, falando da participação dos crentes na culto: “Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão” (1 Cor 10,17).
Em outras palavras, a Igreja é uma só, pela participação comum (comunhão) em certas realidades: Deus, Jesus Cristo, a graça, a doutrina, os sacramentos. Alguns desses elementos são invisíveis (por exemplo, a graça), mas outros são visíveis (a profissão de fé, os ministérios, os sacramentos).
É inconcebível pensar que várias comunidades, adorando diferentes “senhores”, com “fés” diferentes, “pães” (eucaristias) diferentes, e pastores diferentes (isto é, não reconhecendo mutuamente os pastores e doutores umas das outras), poderiam formar uma só Igreja. Não seria “um só corpo”, mas sim um aglomerado, uma mera soma de todas as denominações. Por isso, a unidade é uma das marcas da Igreja no Credo Niceno.
No protestantismo não existe participação nos mesmos sacramentos. O batismo infantil de muitas denominações (presbiterianos, metodistas, luteranos) é rejeitado por outras (batistas, pentecostais) como enganoso, ilícito ou até herético. Logo, não há "um só batismo". Da mesma forma, a eucaristia que muitos celebram como o verdadeiro corpo de Cristo (luteranos e alguns anglicanos), é vista por outros grupos (batistas, presbiterianos) como erro, superstição e até idolatria. Por isso, um lado não aceita participar de modo algum na mesma "ceia do Senhor" com o outro lado.
Também não existe uma só doutrina. É claro que não estou falando da mera existência de controvérsias doutrinárias. O problema é que, no protestantismo, as diferenças doutrinárias dão lugar a separações definitivas: cada lado passa a reunir-se exclusivamente com aqueles que concorda. Depois de um tempo, alguns passam a pensar que aqueles diferenças doutrinárias “não tem importância”, já que parece impossível resolvê-las - mas isso também pode ser perigoso e levar ao indiferentismo. Isso porque não existe uma autoridade capaz de resolver definitivamente uma controvérsia, pondo fim às disputas, nem uma tradição considerada guiada pelo Espírito Santo que se deva seguir.
O resultado da grande diversidade doutrinária do protestantismo é minar a confiança e segurança que o cristão deve ter com a doutrina. Se algumas denominações ordenam "pastoras" e outras não; algumas batizam para perdão de pecados e outras só como "simbolismo"; algumas creem receber o verdadeiro corpo de Cristo e outras apenas pão e vinho; algumas imaginam que a salvação não pode jamais ser perdida e outras ensinam o contrário; algumas ensinam que Cristo morreu por todos e outras que ele morreu somente pelos eleitos; algumas celebram "línguas estranhas e profecias" e outras denunciam isso; e assim por diante, qual a confiança o cristão terá diante desse mar de contradições?
Mas repito: o problema não é que simplesmente haja discordâncias, mas que essas discordâncias sejam insolúveis e divisoras. O que para uns é sagrado, para outros é idolatria e superstição. Nem os Padres da Igreja e o cristianismo histórico escapam das mais graves acusações, a depender de qual denominação protestante consultamos.
III
Outra questão relevante é a sucessão dos ministros. A maioria dos protestantes não entende a importância de uma legítima sucessão no ministério eclesiástico. A questão envolvida aqui é a seguinte: de onde os ministros protestantes receberam a missão para ensinar? Quem estabeleceu as igrejas protestantes?
Em primeiro lugar, devemos distinguir entre dois tipos de missão: a extraordinária (ou direta) e a ordinária (ou mediata). Os apóstolos de Cristo tinham uma missão extraordinária, diretamente de Deus (Gal 1,12). Já os pastores (bispos e presbíteros) recebem essa missão por intermédio da Igreja que os chama e ordena:
Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei... (Tt 1,5)E este parecer contentou a toda a multidão, e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nicanor, e Timão, e Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia; e os apresentaram ante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos (At 6,5-6)A ninguém imponhas precipitadamente as mãos, nem participes dos pecados alheios; conserva-te a ti mesmo puro (1 Tm 5,22).Por cujo motivo te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti pela imposição das minhas mãos (2 Tm 1,6).
Não é evidente que estamos diante de um padrão aqui? Os pastores e ministros da Igreja não autoproclamavam-se como tais. Eles tinham de ser comissionados pela Igreja, ordenados (mediante a imposição de mãos) por outros que já exerciam o ministério. Isso fica claro quando os apóstolos desautorizavam pregadores autoproclamados:
Portanto ouvimos que alguns dentre nós, aos quais nada mandamos, vos têm perturbado com palavras, confundindo as vossas almas (Atos 15,24).
Algumas traduções aqui trazem "aos quais não demos comissão" ou "sem nossa autorização".
Por isso também os primeiros Padres da Igreja enfatizaram o mesmo padrão. Clemente de Roma proclama, por exemplo, que Cristo "foi enviado por Deus, e os apóstolos por Cristo". Então os apóstolos, "pregando pelos campos e cidades... apontaram as primícias [de seus trabalhos], tendo primeiramente os provado pelo Espírito, para serem bispos e diáconos daqueles que iriam posteriormente crer... E depois [os apóstolos] deram instruções, para que, quando estes adormecessem, outros homens aprovados deveriam sucedê-los no ministério".
Irineu de Lyon também diz: "Eis por que se devem escutar os presbíteros que estão na Igreja, e que são os sucessores dos apóstolos, como o demonstramos, e que com a sucessão no episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai". E ainda: "Quanto a todos os outros que se separam da sucessão principal e em qualquer lugar que se reúnam, devem ser vistos com desconfiança, como hereges e de má fé, como cismáticos cheios de orgulho e de suficiência", pois "o caráter distintivo do Corpo de Cristo... consiste na sucessão dos bispos aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar ela esteja".
Cipriano de Cartago assevera que "não pode ser reconhecido como bispo, quem, sucedendo a ninguém, e desprezando a tradição evangélica e apostólica, surgiu por si mesmo". Pois aquele "que não foi ordenado na Igreja não pode nem ter nem manter a Igreja de qualquer forma".
De acordo com Hipólito de Roma, os bispos são "seus [dos apóstolos] sucessores, e participantes nessa graça, sumo-sacerdócio, e ofício de ensinar, bem como reputados guardiões da Igreja". E de acordo com Eusébio de Cesaréia, "os primazes, os juízes e os conselheiros dessa bela cidade [da Igreja] receberam sua missão dos apóstolos e discípulos do Salvador, e desde sua sucessão, crescendo como que de uma boa semente, os líderes da Igreja de Cristo que agora florescem".
Estes são apenas alguns exemplos. Não basta que as denominações protestantes, hoje em dia, observem isso e evitem "pastores autoproclamados" em suas próprias denominações. Isso não é suficiente, pois é preciso que essa sucessão seja ininterrupta até os apóstolos. De outro modo, nós mesmos nos encontraremos numa comunidade que surgiu sem o devido chamado e comissão da Igreja.
Não se trata de uma sucessão de ministros apenas. Como diz John Karmiris, essa sucessão ininterrupta inclui o culto de adoração a Deus (na eucaristia), os sacramentos, a doutrina apostólica e todo o povo:
É necessário acrescentar que a sucessão apostólica não está limitada apenas à linha histórica ininterrupta dos bispos ou à sucessão do ensinamento apostólica (successio doctrinae), mas também compreende a sucessão apostólica do serviço santificante e sua dignidade, bem como a contínua e ininterrupta linha de gerações de cristãos de todas as épocas, e a sucessão apostólica de toda a Igreja. A Igreja, depois da morte dos apóstolos, era a portadora principal e geral da apostolicidade e do serviço apostólico, considerando que o Espírito de Pentecostes foi participado não somente aos doze apóstolos, mas a todo o povo de Deus da nova aliança e à Igreja inteira através de multidão de dons sucessivamente transmitidos.
Ora, o protestantismo já nasceu em rompimento com a Igreja até então existente, negando a legitimidade desta e de seus ministros, doutrina, sacramentos, etc. Isso significa que o próprio protestantismo não tem onde sustentar sua missão. Quem a teria comunicado?
Note bem que o problema não está apenas em saber se é necessário que os bispos comuniquem essa missão ou se ela poderia ser comunicada por simples presbíteros ou pelo povo. Ainda que seja comunicada pelo povo, é necessário que haja um povo fiel que seja capaz de comunicá-la aos pastores. Esse povo cristão verdadeiro deve, portanto, existir antes dos pastores que sejam comissionados por ele. Por isso Francisco de Sales resume o dilema:
Ora, é necessário que ou eles tenham errado, ou que errada seja a Igreja que os ordenou; por consequência, ou esta Igreja era falsa, ou aqueles que receberam a missão dela abusaram deste privilégio. Se tomarmos como argumento a hipótese de que a Igreja era falsa, a missão que eles tinham era absolutamente falsa, pois de uma Igreja falsa, como eles imputam à nossa, não pode sair verdadeira missão. Se falsa é a Igreja que os ordenou, onde está a missão que dizem ter? De uma Igreja falsa não se pode extrair uma missão legítima (...).Por outro lado, se a Igreja na qual eles foram instruídos e ordenados era a verdadeira, eles são terminantemente culpáveis de heresia por terem saído e pregado contra sua Fé; se não era uma Igreja verdadeira, ela não tinha poder algum para ordená-los.
No caso dos reformadores protestantes - como Lutero, Zwínglio e Calvino -, a conclusão que segue é que a Igreja não os enviou. Pois, segundo eles mesmos afirmam, o povo cristão existente logo antes de suas pregações não seria verdadeiramente cristão, tampouco seus bispos e presbíteros (os quais são denominados "falso sacerdócio" pelos reformadores). Nenhum deles - nem o povo, nem os bispos -, portanto, poderia ter comunicado aos reformadores a sua missão.
Resta então a alegação de uma missão extraordinária, isto é, diretamente de Deus. De fato, Lutero chegou a fazer alegações nesse sentido, apresentando-se como uma espécie de profeta. Mas, neste caso, faltam os milagres e sinais que necessariamente acompanham a missão extraordinária (2 Cor 12,12).
O problema da sucessão apostólica (e consequentemente da missão dos ministros) pode parecer meramente teórico, mas está longe disso. O fruto da nova concepção protestante é que passou a ser possível uma multiplicação infinita de denominações e pastores autoproclamados. Se a denominação anterior protestar contra a atividade "não autorizada", a resposta será sempre a mesma: "estamos seguindo a Bíblia".
IV
Agostinho de Hipona enfatizou a importância da comunhão com a única Igreja verdadeira, como uma sociedade visível de fiéis:
Qualquer que concorde com a Escritura Sagrada sobre a cabeça, mas não esteja em comunhão com a unidade da Igreja, não está na Igreja, uma vez que separa-se do testemunho de Cristo a respeito de seu corpo, que é a Igreja (Agostinho de Hipona, século IV, em Sobre a unidade da Igreja, IV, 7).O consentimento dos povos e nações mantém-me na Igreja, assim como sua autoridade, inaugurada por milagres, nutrida pela esperança, ampliada pelo amor, instituída pela idade. Assim a sucessão de bispos que mantém a partir da sede própria do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor, depois de sua ressurreição, deu-lhe o cargo de apascentar suas ovelhas, até o episcopado presente (Agostinho de Hipona, século IV, em Contra a epístola fundamental dos maniqueus, IV).
Mas como reconhecer essa Igreja? A resposta está nas notas da Igreja verdadeira no Credo Niceno: unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade.
Daí segue que reconhecer a Igreja de Cristo é dever do cristão que deseja realmente perseverar na unidade. O professor Robert Koons ensina:
A posição da sola scriptura coloca um fardo impossível sobre cada crente: para reconhecer as verdadeiras congregações, o crente individual deve avaliar a confissão da congregação para verificar sua ausência de erro. Para realizar essa tarefa o crente deve não apenas crer nas doutrinas essenciais da fé, mas também saber exatamente quais doutrinas são essenciais e quais são matéria de legítima diferença de opinião. Isso parece inconsistente com a variedade de talentos, dons e vocações: não se pode esperar que todo crente seja um teólogo. A teoria da sola scriptura condena a maioria dos crentes a uma exclusão de facto da verdadeira Igreja, em virtude de sua inabilidade de distinguir a verdade do erro em todas as questões disputadas.A posição católica, em contraste, coloca um fardo razoável no leigo: ele deve simplesmente reconhecer quais congregações estão em comunhão com aquela Igreja global que está em maior continuidade historicamente com a Igreja dos Apóstolos, isto é, com a Igreja que possui a alegação mais segura de ser a Igreja Católica (universal). Em outras palavras, o crente deve dominar apenas uma, relativamente pequena, parte das doutrinas: aquelas relativas à identidade da verdadeira Igreja; não, como o protestantismo requer, um conhecimento exaustivo de todas as matérias disputas da teologia. Isso efetivamente limita a escolha do crente em duas: a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental.Para ser justo, existe um tipo de responsabilidade individual que é inescapável. O leigo católico, não menos que o protestante, deve usar seu próprio julgamento para reconhecer qual Igreja é a Igreja visível em sua plenitude. Esse fardo não pode ser dado a outro. Entretanto, há uma diferença palpável e historicamente real entre as duas concepções da Igreja. Para os protestantes, o crente individual possui apenas um critério: ele deve comparar os ensinamentos de cada grupo de congregações com o ensinamento da Bíblia em cada ponto de doutrina, ou, pelo menos, em cada ponto essencial. No entanto, trocar a segurança em cada ponto de doutrina pela segurança em cada ponto essencial é, na prática, de pouca ajuda, já que existe quase tanta discordância sobre quais matérias são essenciais quanto sobre as doutrinas em si. (Luteranos confessionais, por exemplo, insistem que a verdadeira igreja deve adotar a posição correta com respeito a cada doutrina proposta, se ela é ou não ensinada ou implicada na Escritura. Outras denominações insistem que uma lista bem menor de doutrinas, talvez somente aquelas do Credo Niceno, deve ser tida como essencial.) Em contraste, segundo a visão católica, o crente individual pode reconhecer a Igreja verdadeira, não apenas examinando suas doutrinas uma por uma, mas também investigando sua conexão histórica (por uma transmissão social ou física) com os Apóstolos. Em alguns casos isso também pode ser um processo difícil (por exemplo, quando houve houve dois ou mesmo três "papas" competindo durante o período de Avinhão), mas, pela maior parte, isso provou-se ser praticamente factível, enquanto o princípio protestante falhou completamente no teste da história.
É praticamente impossível que o cristão comum estude todas as questões doutrinárias para, por sua própria investigação, determinar o que é heresia, o que é ortodoxia, o que é indiferente. Mas se temos a obrigação de aceitar a Igreja que o próprio Cristo estabeleceu, então a resposta será muito mais simples. E esta é, realmente, a resposta que os cristãos abraçaram ao longo dos séculos. É a única capaz de assegurar a unidade fundada na humildade.
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