Uma visão ortodoxa sobre a regulação dos nascimentos (Pe. John W. Morris)


O controle de natalidade - ou, mais propriamente, controle de concepção - é um assunto bastante controverso. O termo controle de concepção é mais correto porque todos teólogos ortodoxos e católicos condenam qualquer ação para impedir o nascimento de um bebê ainda não nascido, ou aborto. Entretanto, o controle da concepção, que envolve impedir que o esperma masculino fertilize o óvulo feminino, é outra questão. Em 1968, o Papa Paulo VI emitiu a encíclica Humanae Vitae, que condenou "toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação" (Humanae Vitae, 1968). Algumas autoridades ortodoxas tomaram uma visão do assunto que é bastante próxima dos sentimentos expressos pelo líder da Igreja Católica Romana. Em 1937, os bispos da Igreja da Grécia emitiram uma condenação forte da contracepção. Atenágoras, o Patriarca Ecumênico na época, concordou com a encíclica papal. A Sociedade Pan-Helênica de Amigos das Famílias Numerosas afirmou que "é um pecado evitar ter filhos". Entretanto, a posição da Igreja Ortodoxa sobre essa matéria controversa não é tão simples assim. Os concílios ecumênicos lidaram com todo tipo de matéria de natureza sexual, mas nunca condenaram especificamente a regulação da concepção (H. Tristan Engelhardt, The Foundation of Christian Bioethics).

Alguns dos escritos dos Padres podem ser considerados como condenações de toda ação que impeça a concepção. Por outro lado, essas afirmações não devem ser tomadas fora de seu contexto histórico. Naquele tempo, o conhecimento científico não tinha avançado ao ponto de entendermos a possibilidade de métodos não-abortivos de regulação de nascimentos. Até fins do século dezoito, a maioria das pessoas, incluindo cientistas, acreditava que o esperma continha um ser humano inteiro. Por isso, eles consideravam que qualquer coisa que envolvesse a destruição do esperma como uma forma de aborto. Por essa razão, devemos entender que afirmações dos Padres que parecem condenar a regulação da concepção, na verdade, devem ser aplicadas ao aborto (Stanley Harakas, Stand of the Orthodox Church on Controversial Issues, in Fotios K. Litsas, A Companion to the Greek Orthodox Church, New York: Department of Communication Greek Orthodox Archdiocese of North and South America, 1984, p. 224). Por exemplo, S. João Crisóstomo escreveu: "Por que vós abusais dos dons de Deus, e lutais contra Suas leis, e procurais a maldição como se fosse bênção, e tornais o lugar de procriação em lugar de assassinato?" (St. John Chrysostom, The Epistle to the Romans, in Nicene Fathers, First Series, vol. XI, p. 520). Algumas pessoas aplicam essas afirmações à moderna regulação da concepção. Entretanto, lido no contexto de suas próprias palavras e no conhecimento de biologia da época, S. João não está se referindo ao controle da concepção, mas ao aborto (Engelhadt, The Foundation of Christian Bioethics, p. 265).

Em tempos modernos, muitos teólogos ortodoxos refinaram suas visões à luz das descobertas da biologia moderna. Assim, a maioria das autoridades ortodoxas atualmente distingue entre o aborto e os métodos não-abortivos de regulação dos nascimentos. Isso os levou a adotar uma postura mais tolerante diante das formas não-abortivas de contracepção. A declaração social adotada pela Igreja da Rússia distingue entre métodos abortivos e não-abortivos de contracepção, dizendo que não é pecado um casal fazer uso da contracepção, desde que esta não cause um aborto (The Basis of the Social Concept of the Russian Orthodox Church, disponível em: https://mospat.ru/en/documents/social-concepts/). Os bispos da Igreja Ortodoxa na América emitiram uma declaração similar, permitindo a contracepção dentro do casamento, desde que o método escolhido pelo casal não "cause dano a um feto já concebido" (Synodal Affirmations on Marriage, Family, Sexuality, and the Sanctity of Life, disponível em: http://www.oca.org/DOCmarriage.asp?ID=19). O Pe. John Meyendorff aponta que, embora alguns concílios ortodoxos locais tenham condenado a regulação da natalidade, não há uma condenação pan-ortodoxa e geral. Ao invés, de acordo com esse renomado teólogo ortodoxo, cada casal ortodoxo deve orar e tomar sua própria decisão na matéria (Meyendorff, Marriage, p. 62). Outros teólogos ortodoxos, incluindo Demetrios Constantelos e Stanley Harakas, assumiram uma visão mais positiva da regulação da natalidade. Esses teólogos ortodoxos modernos defendem que as relações sexuais entre marido e esposa não são apenas para procriação, pois também são uma expressão de seu amor mútuo e união através do Santo Matrimônio. Nesse contexto, métodos não-abortivos de controle de natalidade não são pecaminosos. De fato, Harakas escreveu, "as relações sexuais entre marido e esposa tem um valor intrínseco: elas unem marido e esposa em carne e alma em um vínculo de amor mútuo e comprometimento... Nessa perspectiva, a contracepção não é condenada, mas antes é vista como meio de preservar os objetivos e propósitos do casamento como entendidos pela Igreja" (Stanley S. Harakas, Contemporary Moral Issues Facing the Orthodox Christian, p. 80). Paul Evdokimov, professor de Teologia Moral na Instituto Teológico Ortodoxo S. Sérgio em Paris, considera a regulação da natalidade uma matéria pessoal, defendendo que o estresse causado pela adição fora do tempo de uma criança à família é justificativa para um casal usar contracepção (Evdokimov, The Sacrament of Love, pp. 175-177).

Obviamente, mesmo formas não-abortivas de controle de natalidade são pecaminosas se usadas pelas razões erradas. Todas as autoridades ortodoxas condenam o que H. Tristan Engelhardt chama de "ethos contraceptivo de auto-indulgência". É um mal o uso da contracepção para impedir a gravidez durante um relacionamento imoral. É também uma distorção do sacramento do Santo Matrimônio que um casal use a contracepção para permanecer sem filhos durante todo seu casamento. A relacionamento sexual entre marido e esposa deve estar aberto à criação de uma nova vida para cumprir um dos propósitos dados por Deus. Entretanto, as relações sexuais no casamento não existem somente para a procriação, mas são também uma expressão de amor e união entre marido e esposa. Por essa razão, a maioria das autoridades ortodoxas modernas não consideram pecaminoso usar método não-abortivos de controle de natalidade por motivos não-egoístas. Embora ele denuncie o "ethos contraceptivo", Engelhardt não condena todo uso não-abortivo de métodos de regulação de nascimentos. Ele reconhece que um casal pode legitimamente limitar o número de filhos por razões como "a saúde física da esposa, a saúde moral da união marital (isto é, que seja vivida em paz, concórdia e sem adultério), as circunstâncias econômicas do casal e a saúde espiritual do casamento" (Engelhardt, The Foundation of Christian Bioethics, p. 266-267). O Pe. John Breck do Seminário St. Vladimir concorda, dizendo que um casal pode usar contracepção para limitar o tamanho de sua família "a um número administrável" (Breck, The Sacred Gift of Life, p. 91). Assim, a maioria das autoridades ortodoxas modernas adotam uma postura tolerante com métodos não-abortivos de controle de natalidade, quando usados apropriadamente dentro do sacramento do casamento, em contraste ao que alguém poderia concluir de uma leitura acrítica de alguns dos Padres. Desse modo, o Papa Paulo VI introduziu uma nova fonte de divisão entre a Ortodoxia e o Catolicismo Romano quando tomou a posição extrema de que todas as formas de contracepção são pecaminosas.

Nas entrelinhas da abordagem ortodoxa da questão está o princípio de que as relações íntimas entre marido e esposa são intensamente pessoais, de modo que nenhuma terceira parte, nem mesmo um sacerdote ouvindo a confissão, tem o direito de interferir nelas. O concílio de Trullo ratificou os cânones de S. Dionísio de Alexandria, quando afirmou: "Pessoas que são auto-suficientes e casadas devem ser juízes de si mesmas" (Agripus and Nicodemus, The Rudder, p. 720). Na tradição russa, um sacerdote nunca pergunta questões sobre o uso de contraceptivos dentro do casamento durante a confissão. V. Plachkovsky escreveu: "Na opinião dos confessores, o inteiro domínio das relações entre marido e esposa é íntimo demais para provocar investigações pelo sacerdote". Talvez a melhor declaração sobre a moderna visão ortodoxa do controle de natalidade é encontrada em um livro publicado com a bênção do Arcebispo Iakovos pelo Departamento de Educação da Arquidiocese Greco-Ortodoxa da América do Norte:

A Igreja Ortodoxa não possui uma posição expressa sobre o planejamento familiar através do controle de nascimentos... Dito isso, por trás do não-comprometimento da Igreja sobre a regulação da natalidade, uma atitude tácita foi construída ao longo de séculos de modo que a consciência do crente individual, nessa matéria, esteja acima de requisitos institucionais ou de grupo. Isso reflete o respeito da Igreja pelo crente ortodoxo e está alinhado com seu conceito de que os comunicantes formam um sacerdócio real (Nicon D. Patrinacos, A Dictionary of Greek Orthodoxy (New York: The Greek Ortrhodox Archdiocese of North & South America (Department of Education, 1984), pp. 56-57).

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