A doutrina da Trindade entre os cristãos pré-nicenos

 

A primeira verdade anunciada no Credo é a existência de “um só Deus, Pai onipotente”. Desde os primeiros tempos, os cristãos ensinaram que Deus é eterno, onipotente, onisciente, perfeito, pleno de amor e misericórdia, subsistindo sempre em três ‘pessoas’ ou ‘hipóstases’: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

A Igreja primitiva rejeitou decididamente dois erros opostos sobre o mistério da santíssima Trindade: o sabelianismo e o arianismo. O primeiro consiste em negar a distinção entre as três pessoas, como se Pai, Filho e Espírito Santo, fossem apenas “máscaras” ou “funções” usadas por Deus em diferentes momentos.

O segundo erro, o arianismo, consiste em negar que as três pessoas sejam igualmente divinas, ou seja, um só Deus. Contra esse erro, os Padres antenicenos - ainda que sem a linguagem refinada e apurada do período niceno - enfatizaram que Deus, o Pai, sempre existiu com seu Verbo e seu Espírito Santo. Ele nunca foi destituído de ambos. Desse modo, o Verbo (também chamado Filho) e o Espírito Santo são co-eternos e plenamente divinos.

Além de ensinar o mistério da Trindade, a Igreja precisou rejeitar qualquer tipo de materialismo em nossa visão da divindade. Deus é o Ser Supremo, infinito e incompreensível, sem corpo, sem limitações.

Nossa primeira testemunha é Teófilo (morto em 183), bispo da cidade de Antioquia. Ele ensina que Deus “não tem princípio, porque não foi gerado; ele é imutável, porque é imortal [...]. Ele é Senhor, porque exerce o senhorio sobre tudo; Pai, porque existe antes de tudo”. Deus é, ainda, fundador, criador, onipotente e altíssimo, que “fez tudo do não-ser para o ser, a fim de que por suas obras seja conhecida e compreendida a sua grandeza”. Ele diz ainda:

Deus fez tudo através do seu Verbo e da sua Sabedoria [isto é, o Espírito Santo]. Por seu Verbo foram estabelecidos os céus e por seu Espírito toda a força deles (Para Autólico, I).

Também o filósofo Justino (100-165) ensinou a reconhecer a divindade do Verbo, sem confundi-lo com seu Pai:

Porque os que dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem nem quem é o Pai, nem tomaram conhecimento de que o Pai do universo tenha um Filho que, sendo Verbo e primogênito de Deus, também é Deus. Foi este que primeiramente apareceu a Moisés e aos outros profetas em forma de fogo ou por imagem incorpórea e aquele que agora, nos tempos de vosso império, como já dissemos, nasceu homem de uma virgem, conforme o desígnio do Pai. E pela salvação dos que nele crêem, quis ser desprezado e sofrer para, com sua morte e ressurreição, vencer a própria morte (I Apologia, 63).

Na mesma época, Taciano, o sírio (120-172), escreveu sobre a fé dos cristãos em um só Deus. Ele explica a existência do Filho de Deus como uma Palavra emitida ou gerada desde toda a eternidade pelo Pai:

Da mesma forma que de uma só tocha se acendem muitos fogos, mas o fato de acender muitas tochas não diminui a luz da primeira, assim também o Verbo, procedendo da potência do Pai, não deixou sem razão aquele que o havia gerado. É assim que eu mesmo estou falando e vós me escutais e certamente não porque a minha palavra passe a vós eu fico vazio de palavras ao conversar convosco (Discurso contra os gregos, 5).

Atenágoras de Atenas (133-190) ensina que os cristãos admitem “um só Deus”, o qual é “incriado, eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, compreensível à razão só pela inteligência, rodeado de luz, beleza, espírito e poder inenarrável, pelo qual tudo foi feito através do Verbo que dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva” (Petição em favor dos cristãos, X). Foi este Deus que criou também uma “multidão de anjos e ministros”, assim como todo o universo.

Repercutindo as afirmações de João 1:3 e Hebreus 1:2, Atenágoras ensina que Deus tudo fez como “Criador e Artífice do mundo, por meio do Verbo que dele procede”. E ainda:

[...] o Filho de Deus é o Verbo do Pai em ideia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. [...] o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas ideia e operação. E o Espírito profético concorda com o nosso raciocínio, dizendo: "O Senhor me criou como princípio de seus caminhos para suas obras". Com efeito, dizemos que o mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam profeticamente, é uma emanação de Deus, emanando e voltando como um raio de sol. Portanto, quem não se surpreenderá ao ouvir chamar de ateus indivíduos que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que mostram seu poder na unidade e sua distinção na ordem? (Petição em favor dos cristãos, X).

Irineu (130-202), bispo na antiga Gália, pregou que “o Verbo, isto é, o Filho, sempre esteve com o Pai, antes de toda criação, [...] como também esteve a Sabedoria, que outro não é senão o Espírito”. Um só Deus, o Pai do universo, que sempre existiu com seu Verbo e seu Espírito. Irineu continua, citando as Escrituras:

É o que nos diz pela boca de Salomão: 'Deus, pela Sabedoria, fundou a terra; pela inteligência preparou o céu; pela sua ciência os abismos jorraram as fontes e as nuvens destilaram o seu orvalho'. E ainda: 'O Senhor criou-me como princípio de seus caminhos, em vista de suas obras; antes dos séculos me fundou; no princípio, antes de fundar a terra, antes de fazer os abismos, antes de as fontes começarem a jorrar água, antes de firmar os montes, ele me gerou' [Provérbios 8:22-24]. E ainda: 'Quando preparava o céu eu estava com ele, quando fixava as fontes dos abismos e consolidava os fundamentos da terra, eu estava com ele, ajeitando. Era aquela em que ele se alegrava e todo dia eu me deliciava diante de sua face, por todo o tempo, quando se alegrava por ter acabado o mundo e se deliciava entre os filhos dos homens' (Contra as heresias, IV, 20).

Esse entendimento era amparado nas Escrituras, que “proclamam, excluindo qualquer outro, que um só e único Deus criou todas as coisas por meio de seu Verbo, as visíveis e as invisíveis, as celestes e as terrestres, as que vivem na água e as que se arrastam debaixo da terra” (Irineu, Contra as heresias, II, 27).

Orígenes (184-253), mestre da escola de Alexandria, no Egito, também ensina: “adoramos o Pai admirando seu Filho, Logos e Sabedoria, Verdade, Justiça” (Contra Celso, VIII). Ele descreve o Filho como um “eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente; um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus, e uma imagem de sua bondade”.

Com essas imagens - emanação, reflexo, eflúvio, imagem - os Padres afastavam a ideia de um Verbo criado e temporal (tese do arianismo), ao mesmo tempo em que protegiam a distinção entre as Pessoas da Trindade (contra o sabelianismo).

No século III, Gregório Taumaturgo (213-270) resumiu a fé da Igreja na Trindade através do seguinte Credo, que pode ser considerado uma antecipação do Credo de Niceia:

Há um Deus, o Pai do Verbo vivente - o qual é sua Sabedoria subsistente, Poder e Imagem Eterna -; perfeito Gerador do perfeito Gerado, Pai do Filho unigênito. Há um Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Imagem e Semelhança de Divindade, Verbo eficiente, Sabedoria compreensiva da constituição de todas as coisas, e Poder formativo de toda criação, verdadeiro Filho do verdadeiro Pai, Invisível do Invisível, Incorruptível do Incorruptível, Imortal do Imortal e Eterno do Eterno. E há um Espírito Santo, tendo sua subsistência de Deus e sendo manifesto pelo Filho; Imagem do Filho, Imagem Perfeita do Perfeito, Vida, a Causa dos vivos, Fonte santa, Santidade, Santificador, em quem é manifesto Deus Pai, o qual é acima de todos e em todos, e Deus Filho, que é por todos. Há uma perfeita Trindade, em glória, eternidade e soberania, nem dividida nem separada. Portanto, não há nada criado ou em servidão na Trindade; nem algo introduzido, como se em algum período fosse inexistente e surgisse posteriormente. E assim nem o Filho jamais esteve faltando ao Pai, nem o Espírito ao Filho; mas sem variação e sem mudança, a mesma Trindade existe eternamente (Declaração de Fé).
Muitos outros testemunhos poderiam ser citados, mas estes são suficientes para uma visão geral do assunto.

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