Justificação apenas pela fé? A resposta do Patriarca Jeremias II aos teólogos luteranos


A Resposta do Patriarca Jeremias II aos teólogos luteranos de Tübingen, sobre a Confissão de Augsburgo (séc. XVI).

Da primeira resposta de Constantinopla a Tübingen
[6. A Nova Obediência]

O sexto [artigo] garante que é necessário fazer boas obras, mas não depender delas de acordo com a passagem: "Não entres em juízo com o teu servo" [Sl 143:2]. Com relação a isso dizemos que a fé precede, e então as obras seguem e são necessárias de acordo com o mandamento de Deus. Aquele que os cumpre, como deve, recebe recompensa e honra na vida eterna. Na verdade, as boas obras não são separadas, mas necessárias para a verdadeira fé. Não se deve confiar nas obras nem se gabar de uma maneira farisaica. E mesmo que tenhamos cumprido tudo, de acordo com a palavra do Senhor, "somos servos indignos" [Lc 17:10]. Todas as coisas devem ser referidas à justiça de Deus porque as coisas que foram oferecidas por nós são pequenas ou nada. De acordo com Crisóstomo, foi estabelecido que Deus não conduz aqueles de nós que estão ociosos para o Seu reino. O Senhor "se opõe aos soberbos, mas dá graça aos humildes" [1 Pe 5:5; ver Tg 4: 6; Pr 3:24]. Não se deve vangloriar-se de obras. Mas fazê-las e cumpri-las é muito necessário. Pois sem as obras divinas é impossível ser salvo. Se, então, formos convencidos pelo Senhor que diz: "Se sabes estas coisas, bem-aventurado és se as fizeres" [Jo 13:17], será para nosso benefício.

É necessário unir nossas boas obras com a misericórdia de cima. Se nos desculparmos por causa de nossa fraqueza ou da bondade de Deus e não adicionarmos algo nosso, não haverá benefício para nós. Como podemos invocar a misericórdia para a cura de nossas iniqüidades, se não temos feito nada para apaziguar o Divino? Ouçamos como Crisóstomo explicou as palavras do Salmo 129: "Das profundezas clamo a ti, Senhor. Senhor, ouve a minha voz" [1-2]:
'Disto aprendemos duas coisas: que não se pode simplesmente esperar algo de Deus se nada de nós vier', porque primeiro diz: 'Eu choro' e, em seguida, 'ouve minha voz'. Além disso, a oração longa, cheia de lágrimas, tem mais poder para convencer Deus a ouvir o que foi pedido. Mas assim ninguém pode dizer que, visto que ele é um pecador e cheio de milhares de males, 'Eu não posso vir antes e orar, e invocar a Deus'. Ele tira todas as dúvidas dizendo: 'Se tu, Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem poderia resistir?' [Sal 129: 3]. Aqui, a palavra 'quem' deve ser substituída pela palavra 'ninguém', porque não há ninguém, ninguém que, de acordo com um exame estrito de suas obras, possa alcançar misericórdia e benevolência. Se você retira a misericórdia e Deus justamente impõe a pena da sentença e distribui punições pelos pecados, quem será capaz de suportar o julgamento? Por necessidade, todos teriam que se submeter à destruição. E dizemos essas coisas não para levar as almas ao descuido, mas sim para consolar aqueles que caíram no desespero. Porque quem pode se orgulhar de ter um coração puro? Ou quem pode proclamar que está livre de pecados? E o que posso dizer dos outros? Pois se coloco São Paulo em nosso meio e desejo pedir-lhe que dê um relato preciso do que aconteceu [no caso dele], ele não conseguirá se conter. Por que ele pode dizer? Ele leu os profetas. Ele era um zelota com respeito ao rigor da lei dos antepassados. Ele viu sinais. No entanto, ele ainda não havia ascendido àquela visão incrível que apreciou, nem ele tinha ouvido aquela voz incrível. Antes ele estava, em todas as coisas, confuso.
Além disso, não foi Pedro, o chefe [apóstolo], que depois de milhares de milagres e outros, reprovado em concílio por sua queda grave? Se, então, Ele não julgar por misericórdia e compaixão, mas pronunciar um julgamento preciso, então [o Senhor] irá considerar todos nós culpados. Portanto, o apóstolo Paulo disse: 'Não estou ciente de nada contra mim mesmo, mas não fui por isso absolvido. É o Senhor quem me julga' [I Cor 4:4]. E o Profeta disse: 'Se tu, ó Senhor, notares as iniqüidades, Senhor, quem resistirá?' [Sal 129:3]. E a duplicação [da palavra Senhor] não é simplesmente dita, mas [o Profeta] ficou maravilhado e surpreso com a grandeza da misericórdia de Deus, Sua majestade sem limites e o mar insondável de Sua bondade. Ele sabia, e sabia claramente, que somos responsáveis ​​perante Deus por muitas dívidas, e que mesmo o menor dos pecados são merecedores de grande punição. 'Pois contigo está o perdão' [Sl 129:3]. Isso significa que escapar do castigo eterno não depende de nossas conquistas, mas de Tua bondade... Se não desfrutarmos de Tua misericórdia, nossas conquistas em si não são suficientes para nos arrebatar da ira futura. Mas agora você tem misericórdia e justiça unidas, e você prefere usar a primeira em vez da última. E o Senhor disse isso claramente por meio do Profeta: 'Eu sou Aquele que apaga as tuas transgressões' [Is 43:25], isto é, vem de mim, é da minha bondade porque aquelas coisas que são suas, embora sejam boas, nunca serão suficientes para libertá-lo do castigo se a obra de minha misericórdia não fosse adicionada. E [o Senhor] também [disse]: 'Eu te carregarei' [Is 46:4]. Na verdade, a expiação pertence por direito a Deus, Aquele que é verdadeiramente misericordioso. Portanto, ele examina com moderação. 'Por amor do teu nome tenho esperado por ti, ó Senhor' [Sl 129:5]. Por causa do teu nome, que é misericordioso, tenho esperado a salvação. Quando olhava para meus próprios assuntos, voltava a ficar desesperado, como antes; mas agora, atendendo à Tua lei e cumprindo Tuas palavras, tenho grandes expectativas. Tu és Aquele que disse, 'como o céu está distante da terra' [Is 55:9], 'então os meus conselhos não são como os teus conselhos, nem os meus caminhos como os teus caminhos' [Is 55:8]. E ainda: 'Assim como o céu está elevado acima da terra, assim o Senhor aumentou a Sua misericórdia para com os que O temem' [Sl 102:11]; isto é, não apenas eu [Deus] salvei aqueles que realizam [boas] coisas, mas também poupei os pecadores.

(...)

Vamos buscar boas obras. Não procuremos o cisco que está no olho do outro, mas vejamos o tronco que está no nosso [cf. Mt 7:3]. E, assim, com a graça de Deus, seremos capazes de alcançar dignamente as coisas boas que estão por vir. Portanto, o poder das obras é grande; e mesmo quando cometemos pecados, Deus os limpa por meio do arrependimento. Não se deve vangloriar-se delas nem depender delas, pois isso seria pecaminoso; mas, tanto quanto você pode, cumpra as obras que são o resultado da fé e são necessárias. Pois, se os que expulsaram demônios e profetizaram forem rejeitados e não viveram uma vida comparável, quanto mais [seremos rejeitados] se formos negligentes e não cumprirmos os mandamentos? Cristo dirá a essas pessoas: "Nunca vos conheci" [Mt ​​7,23; cf. Lc 13:27].

Da segunda resposta de Constantinopla a Tübingen
[1. A distinção entre lei e lei espiritual]

Não dizemos apenas que aqueles que obedecem à lei serão justificados, mas aqueles que obedecem à lei espiritual, que é entendida espiritualmente e de acordo com o homem interior. Na verdade, por "cumprir a lei do espírito" tanto quanto podemos, seremos justificados e não cairemos em desgraça porque o Verbo da purificação passou para as profundezas da alma. No entanto, aqueles que servem a lei de acordo com sua expressão externa caem totalmente da graça divina, pois eles não sabem que o cumprimento pela graça da lei espiritual limpa a mente de todos os pontos; nem conhecem o fim da lei, que é Cristo. Ele, como o criador de tudo, é também o criador da lei da natureza, e como Aquele que pré-concebeu a lei, é doador tanto daquilo que está escrito na letra como também daquilo que está em espírito ou na graça.

(...)

[6. São Tiago sobre a relação entre fé e obras]

Além disso, o irmão de Deus [Tiago] no capítulo 2 de sua Epístola concorda, dizendo:
Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, mas não tiver as obras? Sua fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã está malvestido e com falta de alimento diário, e um de vocês lhes diz: 'Vão em paz, aqueçam-se e fartam-se', sem lhes dar as coisas necessárias para o corpo, de que adianta? Portanto, a fé por si só, se não tiver obras, está morta. Mas alguém dirá: 'Você tem fé e eu tenho obras. Mostre-me sua fé sem as suas obras, e eu pelas minhas obras mostrarei a você minha fé.' Você acredita que Deus é um; faz bem. Até os demônios acreditam - e estremecem. Você quer que lhe mostre, seu tolo, que a fé sem as obras é estéril? Não foi nosso pai Abraão justificado pelas obras quando ofereceu seu filho, Isaque, sobre o altar? Você vê que a fé estava ativa junto com suas obras, e a fé foi aperfeiçoada por obras, e a Escritura foi cumprida que diz: 'Abraão creu em Deus e isso lhe foi imputado como justiça'; e ele foi chamado amigo de Deus. Você vê que um homem é justificado pelas obras e não somente pela fé, como dissemos. Pois como o corpo sem o espírito está morto, então a fé sem as obras está morta [cf. Tg 2: 14-24, 26].
[7. Intercorrelação de fé, esperança e amor para a salvação]

Vamos considerar se não foi dito em vão que sem fé, esperança e amor, é impossível ser salvo. Pois como nós, de fato, precisamos dos olhos do nosso corpo para ver as coisas visíveis, então, sem dúvida, temos necessidade de fé para o estudo das coisas divinas. Pois, como o conhecimento das questões vem de acordo com a proporção das realizações dos mandamentos, também o conhecimento da verdade vem de acordo com a medida da esperança em Cristo [cf. Jo 7:17]. E como, de fato, é adequado adorar nada mais que Deus, então não se deve esperar em nenhum outro senão somente em Deus, que é Aquele que cuida de todos [cf. Mt 4:10]. Assim como aquele que tem esperança no homem é amaldiçoado, bem-aventurado aquele que repousa em Deus. E assim como a lembrança da chama não aquece o corpo, da mesma maneira, a fé sem amor não efetua a luz do conhecimento na alma. Na verdade, é impossível que o amor seja encontrado sem esperança. Por isso, os Santos Padres dizem que uma coisa é permanente: a esperança em Deus. Todas as outras coisas não são realidade, mas meramente pensamento. Aquele que firmou seu coração no poder da fé nada tem sem obras. E quando alguém não tem nada, ele limita tudo à fé. Na verdade, o poder da fé está nas boas obras. E aquele que foi privado de amor, foi privado do próprio Deus. Deve-se empenhar em tais obras e também ter esperança nEle. Pois se você se perguntasse a si mesmo ou a outro cristão verdadeiro em que fundamento os que estão sendo salvos têm esperança de salvação, ele certamente diria que esperamos apenas na misericórdia de Deus. Mas esta é a paciência de Deus. Pois se Ele não suportasse o mal por nós, ninguém seria salvo, visto que ninguém entre os homens está sem pecado. “Mesmo se a sua vida fosse apenas um dia na terra” [Jó 14: 4-5]. Portanto, se temos a esperança da salvação na paciência de Deus, essa esperança de salvação, de fato, é dada apenas àqueles que suportam o mal e não àqueles que carregam malícia. Então, sejamos, tanto quanto possível, pacientes, perdoando piedosamente os outros que nos ofenderam; e então o Pai Celestial não apenas nos perdoará, mas também nos concederá a vida eterna em Cristo. 

Jesus Cristo morreu por todos os homens




1 Timóteo 2:4
Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade. Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem, o qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir de testemunho a seu tempo (1 Timóteo 2:3-6).
Os defensores de uma expiação universal abordam este verso como uma afirmação de que Deus deseja que toda pessoa, sem distinção, seja salva, e que Cristo foi dado como resgate indiscriminadamente por todos. Os intérpretes calvinistas, por outro lado, tem entendido esse verso como referindo-se a "todos os tipos de homens". A interpretação calvinista apoia-se no verso anterior que diz, "Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade". De acordo com esse verso, segundo a abordagem calvinista, o Apóstolo estaria ensinando que há eleitos dentro todos os tipos de homens. Isso inclui pessoas de diferentes condições sociais e o Apóstolo está referindo-se a cidadãos comuns assim como àqueles em autoridade.

Embora essa interpretação seja compreensível, ela parece necessitar que as orações sejam feitas apenas pelos eleitos. Aquele "todos" pelos quais devemos orar está ligado a "todos os homens" para os quais Deus deseja a salvação. Assim, se "todos os homens" fossem apenas os eleitos dentre diferentes categorias de homens, aquele "todos" pelos quais devemos orar também incluiria apenas os eleitos dentre todas as categorias. O sentido correto da passagem parece ser o seguinte: porque Cristo morreu por todos os homens sem exceção, incluindo aqueles em autoridade, devemos orar por todos os homens, incluindo aqueles em autoridade.

Há evidência que corrobora essa visão quando examinamos o resto da epístola a Timóteo. Veja como é usado o termo "todos" ao longo da epístola. Há uma passagem paralela a 2:4 que devemos considerar:
Esta palavra é fiel e digna de toda a aceitação. Porque para isto trabalhamos e lutamos, pois esperamos no Deus vivo, que é o Salvador de todos os homens, principalmente dos fiéis (1 Timóteo 4:9-10).
Novamente o Apóstolo une o conceito de salvação com o conceito de "todos os homens". Claramente em 4:10, "todos os homens" é um grupo distinto dos crentes. Ele especificamente diferencia entre "todos os homens" e "aqueles que creem". Os crentes são meramente um subgrupo dentro do grupo "todos os homens". Por vezes isso perturbou os intérpretes pelo tom universalista. Esse verso significa que toda pessoa será salva? A explicação do que significa chamar Cristo de "Salvador de todos os homens" em está em 2:4-6, onde fica claro que Cristo é Salvador de "todos os homens" porque:

1. Ele deseja que todos sejam salvos;

2. Ele deu a si mesmo como redenção por todos.

Para sermos coerentes na interpretação do texto, não podemos admitir que "todos os homens" em 1 Timóteo 2:4-6 significa "eleitos dentre todas categorias de homens".

2 Pedro 2:1
E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição e negarão o Senhor que os resgatou (ton agorasanta autous Despoten) trazendo sobre si mesmos repentina perdição (2 Pedro 2:1)
A impressão inicial desse verso é que os falsos mestres, de acordo com o Apóstolo Pedro, negam o Senhor Jesus que os resgatou na cruz. Esse parece ser o sentido óbvio. Contudo, dois argumentos tem sido usados pelos calvinistas contra essa interpretação:

1. A palavra traduzida por "resgatou" ou "comprou" não seria usada em referência a Jesus Cristo. Seria um termo referindo-se ao Pai. Embora seja verdade que o termo refere-se comumente ao Pai na Septuaginta, é falso dizer que nunca refere-se a Jesus. Há outra referência na epístola de Judas, em uma passagem que pode muito bem ser lida paralelamente: 
Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus e negam a Deus, único dominador (Despoten) e Senhor nosso, Jesus Cristo (Judas 4).
A palavra traduzida aqui como "dominador" é a mesma usada por Pedro acima, quando Cristo é chamado de "Senhor que os resgatou".

É digno de nota que Pedro e Judas possuem linguagem idêntica em muitos pontos. Virtualmente todos os estudiosos do Novo Testamento concordam que Judas baseou-se consideravelmente no texto de 2 Pedro, ou vice-versa. Nas duas passagens paralelas, Pedro refere-se àqueles falsos mestres que "negam o Senhor que os resgatou", enquanto Judas fala daqueles que "negam nosso único dominador e Senhor, Jesus Cristo". Conclui-se que a afirmação de ambos refere-se a Jesus Cristo.

2. É alegado também que o termo "comprar" ou "resgatar" refere-se à libertação dos israelitas do Egito. Isso porque Deuteronômio 32:6 fala de Deus como aquele que "resgatou" os israelitas. Entretanto, o termo usado ali pela Septuaginta não é o mesmo usado por Pedro. Não há um paralelo direto aqui. Observe outros exemplos em que o mesmo termo é usado no Novo Testamento:

1 Cor. 6:20 - fostes comprados (egorasthete) por bom preço
1 Cor. 7:23 - fostes comprados (egorasthete) por um preço
Apoc. 5:9 - com teu sangue compraste (egorasas) para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação

Esses versos referem-se à redenção, não à libertação do Êxodo. A conclusão clara é que Pedro estava referindo-se à expiação efetuada por Cristo e, assim, demonstrando a maior gravidade da heresia daqueles mestres. Jesus Cristo também morreu por eles.

1 João 2:2
Ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo (1 João 2:2).
Os defensores da expiação universal interpretam "todo o mundo" nesse texto como uma referência à humanidade indiscriminadamente, enquanto os calvinistas interpretam algo como "todos os tipos de homens eleitos" ou "homens eleitos de todos os povos".

O intérprete calvinista frequentemente alega que a palavra "mundo" tem múltiplos sentidos no grego. Isso é perceptível para qualquer leitor do Novo Testamento. O próprio Apóstolo João usa o termo com sentidos variados. Apontando para o conflito entre Paulo e os judaizantes, os intérpretes reformados entendem que o "mundo" nesse contexto refere-se ao gentios. Desse modo, "nós" aponta para os judeus, enquanto o "mundo" refere-se aos gentios.

Entretanto, não há razão para crermos que 1 João tenha sido escrita para judeus etnocêntricos. Essa epístola está entre as últimas a serem escritas no Novo Testamento. Ao final do século primeiro, o problema das relações entre judeus e gentios já tinha sido largamente superado. O concílio de Jerusalém havia sido realizado aproximadamente 40 anos antes dessa epístola. Por isso, essa é uma interpretação pouco provável. A outra opção é que esse verso ensino que Jesus morreu por todos os homens, sem exceção. Outros sentidos da palavra "mundo" não se encaixam aqui.

Quem representa o "nós" aqui? Essa é uma epístola universal, não dirigida especialmente a uma audiência judaica ou mesmo a uma igreja específica; portanto, o "nós" refere-se aos cristãos em geral. O "todo o mundo" deve ser algo distinto dos cristãos em geral. No mesmo capítulo, João usa a palavra "mundo" algumas vezes. "Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo. E o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre" (1 João 2:15-17). João usa o termo "mundo" referindo-se à humanidade pecadora e à corrupção da era atual. Assim, o que João parece estar dizendo no início do capítulo é que "Cristo morreu não apenas por nossos pecados (dos crentes), mas também pelos pecados do mundo todo (a humanidade descrente)".

Atos 3:18-19
Mas Deus assim cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus profetas havia anunciado que o seu Cristo havia de padecerArrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, de sorte que venham tempos de refrigério, da presença do Senhor (Atos 3:18-19).
Essa passagem é ilustrativa da pregação básica do Novo Testamento: Cristo morreu e ressuscitou; logo, convertam-se e creiam nele para a salvação. É a morte que Cristo - seu sacrifício redentor pela humanidade - que é apresentada como fundamento da possibilidade de retorno para Deus, de ser salvo e perdoado. Se a pregação do Evangelho é oferecida a todos indiscriminadamente ("todos os homens em todo lugar", como é dito em Atos 17:30), igualmente o sacrifício de Jesus foi oferecido por todos.

Tão forte é essa conexão que os incrédulos são culpados precisamente por seu ato de rejeição da oferta e testemunho de Deus em seu Filho:
Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o testemunho; quem a Deus não crê, mentiroso o faz, porque não crê no testemunho que Deus de seu Filho dá. E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho (1 João 5:10-11).
Mas que oferta haveria, se o sacrifício de Cristo não tivesse sido oferecido também por eles? Que testemunho estaria sendo rejeitado, se os incrédulos jamais tivessem sido contemplados nessa promessa ("Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho")? Se o sacrifício de Jesus tivesse sido oferecido apenas pelos eleitos, os não-eleitos estariam antes obrigados a rejeitarem a oferta, uma vez que ela nunca teria sido dirigida a eles de qualquer modo.

A conclusão novamente é que Cristo morreu por todos, e podemos estar confiantes dessa verdade.

Sobre a oração (Pe. Dimitri Kokkinos)


Por que oramos

Se oramos apenas para necessidades pessoais, porque precisamos de algo, então o ingrediente mais importante em um relacionamento está faltando: o amor. Para estabelecer e manter um relacionamento (um diálogo, uma comunhão), nosso amor a Deus deve ser o centro de nosso desejo de aproximação com Ele.

O propósito da oração é expresso excelentemente pelo verso de Salmos 34:5: "Os que olham para ele estão radiantes de alegria; seu rosto jamais mostrará decepção".

O propósito da oração é, simplesmente, a experiência da oração. E esta é unida a contrição e lágrimas. Lágrimas de arrependimento nascem apenas através da oração. E a oração, por sua vez, nasce apenas pelas lágrimas do arrependimento. São João Clímaco enfatizava isso dizendo que a oração é "a mãe e a filha das lágrimas".

Por que isso é importante

"Todas as virtudes e poderes de Deus são alcançados primariamente pela oração. Sem oração não há vida espiritual. Se você não é bem sucedido em sua oração, não será bem sucedido em nada, pois a oração é a raiz de tudo" (Pe. Thomas Hopko). "Aquele que é capaz de orar corretamente, mesmo se for a pessoa mais pobre, é essencialmente o mais rico. E aquele que não ora propriamente, é o mais pobre de todos, mesmo que sente-se sobre um trono" (São João Crisóstomo).

Quais são seus benefícios

"A oração é o alimento espiritual que fortalece todo nosso ser. A oração nos capacita a manter um relacionamento pessoal com nosso Deus amoroso. Por esse diálogo íntimo da alma com o Espírito, a oração amolece nossas vontades para nos tornarmos mais receptivos a Sua vontade. Na oração podemos ver onde temos estado, onde estamos e para onde devemos direcionar nossos passos para andar no caminho de Deus.

A oração diária cria um ritmo em nossas vidas e ajuda-nos a atingir o propósito central da vida humana: nos tornarmos mais semelhantes a Cristo. Podemos frequentar a igreja regularmente e estar envolvidos na paróquia socialmente, administrativamente, etc., mas se não tomarmos esse tempo cara-a-cara com o Senhor todos os dias para renovar e revitalizar-nos para com Ele, Cristo poderá deixar de ser nosso foco central. É possível que nos envolvamos tanto com os detalhes da vida moderna que esqueçamos e percamos a alegria da vida real, expulsando o Senhor.

Usar as orações estabelecidas pela Igreja e os Salmos pode e deve ser uma experiência libertadora, na qual nossos espíritos se tornam mais abertos ao Espírito de Deus. A oração ajuda a diminuir nossa dependência de modos errôneos de vida, como orgulho, medo, egoísmo e falta de amor pelos outros" (Theodora Dracopoulos Argue).

Como devemos orar

"Foi corretamente dito que a oração é o maior privilégio, mas também o maior problema, dos fiéis. A verdade dessa observação é clara, uma vez que se trata do mais desigual dos 'relacionamentos', ou seja, a comunicação entre seres humanos criados e o Deus incriado. Essa forma de comunicação é primeiramente impossível e inconcebível, diante do espaço intransponível entre a substância corruptível da pessoa humana e o Deus inacessível e além de toda substância. No entanto, aquilo que é impossível de acordo com a essência, Deus tornou possível e acessível por Sua graça e amor pela humanidade" (Arcebispo Stylianos da Australia).

A oração genuína precisa do seguinte:

- Devemos seguir a exortação do Apóstolo Pedro para sermos "vigilantes na oração";
- Devemos nos direcionar à misericórdia de Deus, humildes e purificados pelo senso de maravilhamento pela presença imediata de Deus;
- Devemos ser gratos a Deus e amá-Lo sem reservas por suas inúmeras bênçãos;
- Devemos perdoar aqueles que nos ofenderam. A pessoa fiel sabe que apenas Deus tem o direito absoluto de dar a cada um conforme suas obras: "A vingança é minha, eu retribuirei" (Romanos 12:9);
- A atmosfera da oração deve ser de contrição e arrependimento. Um "coração quebrado e contrito Deus não rejeitará" (Salmos 51:17); e
- Cada um de nós precisa de um local quieto para orar.

Quais orações fazer e quando

Os santos enfatizam em seus escritos a necessidade de um formato específico de oração, a "regra de oração". A ideia é escolher um grupo de orações escritas que melhor se adaptam nossas necessidades individuais e usá-las diariamente. Essa regra deve vir de um livro ortodoxo de orações que contenha orações escritas por pessoas santas. A regra é uma disciplina que ajuda-nos a desenvolver nosso relacionamento com Deus, e porque as orações foram escritas por pessoas que chegaram muito perto de Deus, elas ajudam-nos a entrar naquela mentalidade. Podemos falar com Deus com nossas próprias palavras, espontaneamente, mas isso em adição à nossa regra de oração.

Os Pais da Igreja dizem-nos que a oração deve incluir:

- Louvor, expressando deslumbramento, honra e amor que temos por Deus, Aquele que nos criou do nada e nos salvou;
- Ação de graças por tudo que Deus nos fez, bênçãos aparentes e ocultas;
- Petição, na qual expressamos nossas necessidades a Deus: "Lançai sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós" (1 Pedro 5:7).

Podemos orar por outros, em termos gerais ou por pessoas específicas, mencionando seus nomes (por pessoas vivas ou que já morreram). Espero que não tenhamos ódio a ninguém, mas se temos, então devemos orar por elas também.

Rev. Dimitri Kokkinos
Paróquia de St. John The Forerunner – Parramatta (NSW)

Referências
Αρχιεπισκόπου Αυστραλίας Στυλιανού. Περί Προσευχής. Γέφυρες. Αθήνα 1999
Theodora Dracopoulos Argue. Practicing daily Prayer in the Orthodox Christian Life. Light and Life Publishing Company. Minneapolis 1989
Fr Thomas Hopko The Orthodox Faith. Volume iv Spirituality. Dept of Religious Education, The Orthodox Church of America 1984

A doutrina da Trindade entre os cristãos pré-nicenos

 

A primeira verdade anunciada no Credo é a existência de “um só Deus, Pai onipotente”. Desde os primeiros tempos, os cristãos ensinaram que Deus é eterno, onipotente, onisciente, perfeito, pleno de amor e misericórdia, subsistindo sempre em três ‘pessoas’ ou ‘hipóstases’: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

A Igreja primitiva rejeitou decididamente dois erros opostos sobre o mistério da santíssima Trindade: o sabelianismo e o arianismo. O primeiro consiste em negar a distinção entre as três pessoas, como se Pai, Filho e Espírito Santo, fossem apenas “máscaras” ou “funções” usadas por Deus em diferentes momentos.

O segundo erro, o arianismo, consiste em negar que as três pessoas sejam igualmente divinas, ou seja, um só Deus. Contra esse erro, os Padres antenicenos - ainda que sem a linguagem refinada e apurada do período niceno - enfatizaram que Deus, o Pai, sempre existiu com seu Verbo e seu Espírito Santo. Ele nunca foi destituído de ambos. Desse modo, o Verbo (também chamado Filho) e o Espírito Santo são co-eternos e plenamente divinos.

Além de ensinar o mistério da Trindade, a Igreja precisou rejeitar qualquer tipo de materialismo em nossa visão da divindade. Deus é o Ser Supremo, infinito e incompreensível, sem corpo, sem limitações.

Nossa primeira testemunha é Teófilo (morto em 183), bispo da cidade de Antioquia. Ele ensina que Deus “não tem princípio, porque não foi gerado; ele é imutável, porque é imortal [...]. Ele é Senhor, porque exerce o senhorio sobre tudo; Pai, porque existe antes de tudo”. Deus é, ainda, fundador, criador, onipotente e altíssimo, que “fez tudo do não-ser para o ser, a fim de que por suas obras seja conhecida e compreendida a sua grandeza”. Ele diz ainda:

Deus fez tudo através do seu Verbo e da sua Sabedoria [isto é, o Espírito Santo]. Por seu Verbo foram estabelecidos os céus e por seu Espírito toda a força deles (Para Autólico, I).

Também o filósofo Justino (100-165) ensinou a reconhecer a divindade do Verbo, sem confundi-lo com seu Pai:

Porque os que dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem nem quem é o Pai, nem tomaram conhecimento de que o Pai do universo tenha um Filho que, sendo Verbo e primogênito de Deus, também é Deus. Foi este que primeiramente apareceu a Moisés e aos outros profetas em forma de fogo ou por imagem incorpórea e aquele que agora, nos tempos de vosso império, como já dissemos, nasceu homem de uma virgem, conforme o desígnio do Pai. E pela salvação dos que nele crêem, quis ser desprezado e sofrer para, com sua morte e ressurreição, vencer a própria morte (I Apologia, 63).

Na mesma época, Taciano, o sírio (120-172), escreveu sobre a fé dos cristãos em um só Deus. Ele explica a existência do Filho de Deus como uma Palavra emitida ou gerada desde toda a eternidade pelo Pai:

Da mesma forma que de uma só tocha se acendem muitos fogos, mas o fato de acender muitas tochas não diminui a luz da primeira, assim também o Verbo, procedendo da potência do Pai, não deixou sem razão aquele que o havia gerado. É assim que eu mesmo estou falando e vós me escutais e certamente não porque a minha palavra passe a vós eu fico vazio de palavras ao conversar convosco (Discurso contra os gregos, 5).

Atenágoras de Atenas (133-190) ensina que os cristãos admitem “um só Deus”, o qual é “incriado, eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, compreensível à razão só pela inteligência, rodeado de luz, beleza, espírito e poder inenarrável, pelo qual tudo foi feito através do Verbo que dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva” (Petição em favor dos cristãos, X). Foi este Deus que criou também uma “multidão de anjos e ministros”, assim como todo o universo.

Repercutindo as afirmações de João 1:3 e Hebreus 1:2, Atenágoras ensina que Deus tudo fez como “Criador e Artífice do mundo, por meio do Verbo que dele procede”. E ainda:

[...] o Filho de Deus é o Verbo do Pai em ideia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. [...] o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas ideia e operação. E o Espírito profético concorda com o nosso raciocínio, dizendo: "O Senhor me criou como princípio de seus caminhos para suas obras". Com efeito, dizemos que o mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam profeticamente, é uma emanação de Deus, emanando e voltando como um raio de sol. Portanto, quem não se surpreenderá ao ouvir chamar de ateus indivíduos que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que mostram seu poder na unidade e sua distinção na ordem? (Petição em favor dos cristãos, X).

Irineu (130-202), bispo na antiga Gália, pregou que “o Verbo, isto é, o Filho, sempre esteve com o Pai, antes de toda criação, [...] como também esteve a Sabedoria, que outro não é senão o Espírito”. Um só Deus, o Pai do universo, que sempre existiu com seu Verbo e seu Espírito. Irineu continua, citando as Escrituras:

É o que nos diz pela boca de Salomão: 'Deus, pela Sabedoria, fundou a terra; pela inteligência preparou o céu; pela sua ciência os abismos jorraram as fontes e as nuvens destilaram o seu orvalho'. E ainda: 'O Senhor criou-me como princípio de seus caminhos, em vista de suas obras; antes dos séculos me fundou; no princípio, antes de fundar a terra, antes de fazer os abismos, antes de as fontes começarem a jorrar água, antes de firmar os montes, ele me gerou' [Provérbios 8:22-24]. E ainda: 'Quando preparava o céu eu estava com ele, quando fixava as fontes dos abismos e consolidava os fundamentos da terra, eu estava com ele, ajeitando. Era aquela em que ele se alegrava e todo dia eu me deliciava diante de sua face, por todo o tempo, quando se alegrava por ter acabado o mundo e se deliciava entre os filhos dos homens' (Contra as heresias, IV, 20).

Esse entendimento era amparado nas Escrituras, que “proclamam, excluindo qualquer outro, que um só e único Deus criou todas as coisas por meio de seu Verbo, as visíveis e as invisíveis, as celestes e as terrestres, as que vivem na água e as que se arrastam debaixo da terra” (Irineu, Contra as heresias, II, 27).

Orígenes (184-253), mestre da escola de Alexandria, no Egito, também ensina: “adoramos o Pai admirando seu Filho, Logos e Sabedoria, Verdade, Justiça” (Contra Celso, VIII). Ele descreve o Filho como um “eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente; um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus, e uma imagem de sua bondade”.

Com essas imagens - emanação, reflexo, eflúvio, imagem - os Padres afastavam a ideia de um Verbo criado e temporal (tese do arianismo), ao mesmo tempo em que protegiam a distinção entre as Pessoas da Trindade (contra o sabelianismo).

No século III, Gregório Taumaturgo (213-270) resumiu a fé da Igreja na Trindade através do seguinte Credo, que pode ser considerado uma antecipação do Credo de Niceia:

Há um Deus, o Pai do Verbo vivente - o qual é sua Sabedoria subsistente, Poder e Imagem Eterna -; perfeito Gerador do perfeito Gerado, Pai do Filho unigênito. Há um Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Imagem e Semelhança de Divindade, Verbo eficiente, Sabedoria compreensiva da constituição de todas as coisas, e Poder formativo de toda criação, verdadeiro Filho do verdadeiro Pai, Invisível do Invisível, Incorruptível do Incorruptível, Imortal do Imortal e Eterno do Eterno. E há um Espírito Santo, tendo sua subsistência de Deus e sendo manifesto pelo Filho; Imagem do Filho, Imagem Perfeita do Perfeito, Vida, a Causa dos vivos, Fonte santa, Santidade, Santificador, em quem é manifesto Deus Pai, o qual é acima de todos e em todos, e Deus Filho, que é por todos. Há uma perfeita Trindade, em glória, eternidade e soberania, nem dividida nem separada. Portanto, não há nada criado ou em servidão na Trindade; nem algo introduzido, como se em algum período fosse inexistente e surgisse posteriormente. E assim nem o Filho jamais esteve faltando ao Pai, nem o Espírito ao Filho; mas sem variação e sem mudança, a mesma Trindade existe eternamente (Declaração de Fé).
Muitos outros testemunhos poderiam ser citados, mas estes são suficientes para uma visão geral do assunto.

Breve resumo dos principais Concílios na história da Igreja

Concílio de Nicéia (325) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Ósio de Córdoba, imperador Constantino, Eusébio de Cesaréia, Alexandria de Alexandria, Atanásio de Alexandria, dentre outros.

Definições doutrinárias

Ensinou a eternidade e divindade do Verbo de Deus (homoousios ou consubstancial ao Pai). Estabeleceu a primeira parte do Credo Niceno:
“Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Ε em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por quem foram feitas todas as coisas que estão no céu ou na terra. O qual por nós homens e para nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem. Padeceu e ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus. Ele virá para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo”.
Condenou o arianismo, que negava a eternidade e o caráter incriado do Filho de Deus:
“E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse gerado ele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica.”
Principais decretos disciplinares

Reconheceu implicitamente uma ordem de precedência entre as principais Igrejas (que mais tarde seriam os Patriarcados): (1) Roma, (2) Alexandria, (3) Antioquia e (4) Jerusalém.

Reconheceu o direito dos bispos dessas igrejas governarem os assuntos relativos às suas regiões respectivas:
Cânon 6. Que prevaleçam os antigos costumes no Egito, Líbia e Pentápolis - quais sejam, de que o Bispo de Alexandria tenha jurisdição nesses locais, uma vez que este é semelhantemente o costume para o Bispo de Roma também. Da mesma forma, em Antioquia e nas outras províncias, que as igrejas retenham seus privilégios. E isso deve ser entendido universalmente, que se alguém for feito bispo sem o consentimento do Metropolita, o grande sínodo declara que tal homem não deverá ser bispo.
Cânon 7. Uma vez que o costume e antiga tradição tem prevalecido que o Bispo de Aelia [Jerusalém] deve ser honrado, que ele, resguardada a devida dignidade da Metrópole, ocupe a próxima posição de honra. 
Concílio de Gangra (340) [Local]

Condenou formas falsas de ascetismo, que rebaixavam o casamento e a vida comum:
Cânon 1. Se alguém condenar o casamento, ou abominar e condenar uma mulher que é crente e devota, e que dorme com seu próprio marido, como se ela não pudesse entrar no Reino [dos céus], que seja anátema.

Cânon 4. Se alguém manter, em relação a um presbítero casado, que não é lícito participar da oblação [eucarística] oferecida por ele, que seja anátema.

Cânon 10. Se qualquer um daqueles que estão vivendo uma vida virgem pelo Senhor tratar arrogantemente o casado, que seja anátema.

Cânon 14. Se qualquer mulher abandonar seu marido, e resolver se afastar dele porque ela abomina o casamento, que seja anátema.

Cânon 15. Se alguém abandonar seus próprios filhos e não os alimentar ou, tanto quanto for possível, educá-los para a piedade, mas negligenciá-los, sob pretexto de ascetismo, que seja anátema.

Cânon 18. Se alguém, sob pretexto de ascetismo, jejuar no domingo, que seja anátema.
Estabeleceu a visão correta sobre celibato, casamento, ascetismo e vida eclesiástica humilde:
Essas coisas escrevemos, não para cortar aqueles que desejam levar uma vida ascética na Igreja de Deus, de acordo com as Escrituras; mas [para censurar] aqueles que carregam a pretensão do ascetismo à soberba; exaltando-se acima daqueles que vivem de forma mais simples, e introduzindo novidades contrárias às Escrituras e aos Cânones eclesiásticos. Nós, com certeza, admiramos a virgindade acompanhada de humildade; e temos em conta a continência, acompanhada de santidade e seriedade; e elogiamos a saída de ocupações mundanas, [quando é feita] com humildade; [mas, ao mesmo tempo] honramos a santa companhia do casamento, e não condenamos a riqueza desfrutada com retidão e beneficência; e elogiamos a simplicidade e a frugalidade no vestuário, [que é usado] apenas em atenção ao corpo, e que não é muito exigente; mas o dissoluto e afeminado excesso no vestido nós evitamos; e reverenciamos as casas de Deus e abraçamos as assembleias nelas realizadas como santas e prestativas, não confinando a religião dentro das casas, mas reverenciando todos os lugares construídos em nome de Deus; e aprovamos a reunião na própria Igreja para o benefício comum; abençoamos a caridade excedente aos pobres feitas pelos irmãos, de acordo com as tradições da Igreja; e, resumindo em uma palavra, desejamos que todas as coisas que foram entregues pelas Escrituras Sagradas e pelas tradições apostólicas possam ser observadas na Igreja.
Concílio de Sardica (344) [Local]

Participantes ilustres

Júlio de Roma e diversos bispos ocidentais e orientais.

Definições doutrinárias

Confirmou o Credo Niceno e defendeu Atanásio de Alexandria.

Principais decretos disciplinares

Estabeleceu a possibilidade de apelos de bispos a Roma, concedendo a essa igreja uma limitada jurisdição de apelação:
Cânon 3. (...) se um julgamento ocorreu em desfavor de um bispo em qualquer causa, e ele pensa que possui boas razões, para que a questão seja reaberta, se isso agrada-lhes, honremos a memória de S. Pedro Apóstolo, e que aqueles que julgaram o caso escrevam a Júlio, bispo de Roma, e se ele julgar que o caso deve ser reaberto, que assim seja feito…

Concílio de Constantinopla (381) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Melécio de Antioquia, Gregório de Nazianzo, Cirilo de Jerusalém e diversos bispos orientais.

Definições doutrinárias

Ensinou a eternidade e divindade do Espírito Santo. Complementou o Credo Niceno com a parte sobre o Espírito Santo e a Igreja:

[Creio] no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele falou pelos profetas. E na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Confesso um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos mortos; e a vida do mundo vindouro. Amém.

Principais decretos disciplinares

Estabeleceu diversos cânones regulando a vida das igrejas.

Estabeleceu que a Igreja de Constantinopla deveria ter o segundo lugar após Roma, ficando desse modo a ordem de precedência: (1) Roma, (2) Constantinopla, (3) Alexandria, (4) Antioquia, (5) Jerusalém. A Igreja de Roma, na época, não aceitou essa decisão.

Concílio de Cartago (419) [Local]

Participantes ilustres

Aurélio de Cartago, Agostinho de Hipona e outros bispos africanos.

Definições doutrinárias

Confirmou o Credo Niceno.

Condenou o donatismo e o pelagianismo. Estabeleceu alguns ensinamentos sobre o pecado original, a graça, a justificação e o batismo.

Principais decretos disciplinares

Reuniu mais de 130 cânones, que ficaram conhecidos como o “Código da Igreja Africana”.

No cânon 38, estabeleceu a obrigatoriedade da continência (ou celibato) para diáconos, presbíteros e bispos.

Proibiu apelos a Roma das decisões tomadas pela Igreja Africana (cânon 28), portanto não recebendo as disposições de Sardica nesse assunto. Essa decisão foi tomada após investigação que concluiu que os cânones de Sardica não faziam parte do concílio de Nicéia.

Confirmou os decretos de Nicéia.

Concílio de Éfeso (431) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Cirilo de Alexandria, Celestino de Roma e diversos bispos orientais.

Definições doutrinárias

Ensinou que Jesus Cristo é uma só pessoa, por isso é legítimo chamar a Virgem Maria de “Mãe de Deus” (Theotokos).

Condenou o pelagianismo e o nestorianismo.

Principais decretos disciplinares

Estabeleceu diversos cânones regulando a vida das igrejas.

Concílio de Calcedônia (451) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Leão de Roma e diversos bispos orientais.

Definições doutrinárias

Ensinou que Jesus Cristo é uma só pessoa em duas naturezas (sem confusão, nem separação). Estabeleceu a Definição de Calcedônia, segundo a qual Jesus Cristo é

verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, de uma alma racional e corpo; consubstancial com o Pai de acordo com a divindade, e consubstancial conosco de acordo com a humanidade; em todas as coisas como nós, sem pecado; gerado antes de todas as eras do Pai segundo a Deidade, e nestes últimos dias, para nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, a Mãe de Deus, segundo a humanidade; um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, que deve ser reconhecido em duas naturezas, inconfundivelmente, imutavelmente, indivisivelmente, inseparavelmente.

Confirmou o Credo Niceno-Constantinopolitano e os ensinamentos de concílios anteriores (Gangra, Constantinopla, Éfeso).

Principais decretos disciplinares

Diversos cânones regulando a vida das igrejas.

Deu à Igreja de Constantinopla jurisdição de apelação semelhante à que Sardica havia concedido a Roma.

No cânon 28, estabeleceu que Constantinopla deveria ter o segundo lugar após Roma (seguindo o que já havia sido estabelecido no primeiro concílio de Constantinopla), e que teria "iguais privilégios" juntamente com Roma:

Os Padres retamente concederam privilégios ao trono da velha Roma, porque era a cidade régia. E os cento e cinquenta religiosíssimos bispos [no concílio de Constantinopla, em 381], motivados pela mesma consideração, deram iguais privilégios ao santíssimo trono da Nova Roma [isto é, Constantinopla], julgando justamente que a cidade que é honrada com a Soberania e o Senado, e goza de iguais privilégios com a antiga Roma imperial, devia em assuntos eclesiásticos também ser magnificada como ela é, e contada a seguir a ela.

Este cânon não foi aceito pela Igreja de Roma.

Concílio de Orange (529) [Local]

Participantes ilustres

Somente bispos ocidentais.

Definições dogmáticas

Condenou o semi-pelagianismo, ensinando que a graça de Deus deve preceder e acompanhar todos os nossos atos em vista da salvação, e portanto Deus tem a iniciativa.

Concílio de Constantinopla (553) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Convocado pelo imperador Justiniano I, contou com a participação Eutíquio, patriarca de Constantinopla, e Vigílio, papa de Roma.

Definições doutrinárias

Condenou a pessoa de Teodoro de Mopsuéstia († 428) e alguns escritos de Teodoreto de Cirro († 466) e Ibas de Edessa († 457), por contrariarem o Concílio de Éfeso. Esses escritos foram considerados contaminados por tendências ao nestorianismo. É a chamada controvérsia dos “Três Capítulos”.

Condenou Orígenes († 253) e suas doutrinas de preexistência das almas e salvação universal.

Concílio de Constantinopla (680) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Ágato de Roma e diversos bispos orientais.

Definições doutrinárias

Condenou o monotelitismo, ensinando que em Jesus Cristo há duas vontades e duas operações (energias): a divina e a humana.

Concílio de Constantinopla (692) In Trullo ou Quinissexto [Ecumênico] - em complemento ao quinto e sexto, porém recebido com ressalvas no Ocidente.

Participantes ilustres

Centenas de bispos orientais.

Definições doutrinárias

Confirmou as decisões precedentes.

Principais decretos disciplinares

Estabeleceu que os diáconos e presbíteros poderiam ser casados (mantendo relações com suas esposas), mas os bispos deveriam ser celibatários.

Defendeu o uso de ícones de Jesus Cristo.

Condenou certos costumes da Igreja de Roma que estavam em contradição com as práticas de Constantinopla e do Oriente.

Confirmou uma série de cânones disciplinares dos Padres da Igreja e de concílios precedentes. Reafirmou que a Igreja de Constantinopla deveria ocupar o segundo lugar de precedência, após Roma.

Concílio de Nicéia (787) [Ecumênico]

Participantes ilustres

Diversos bispos orientais.

Definições doutrinárias

Condenou o iconoclasmo e ensinou a veneração (não adoração) de ícones de Jesus Cristo e dos santos.

Principais decretos disciplinares

Reafirmou as decisões precedentes, inclusive do Concílio Quinissexto em 692.

Uma visão ortodoxa sobre a regulação dos nascimentos (Pe. John W. Morris)


O controle de natalidade - ou, mais propriamente, controle de concepção - é um assunto bastante controverso. O termo controle de concepção é mais correto porque todos teólogos ortodoxos e católicos condenam qualquer ação para impedir o nascimento de um bebê ainda não nascido, ou aborto. Entretanto, o controle da concepção, que envolve impedir que o esperma masculino fertilize o óvulo feminino, é outra questão. Em 1968, o Papa Paulo VI emitiu a encíclica Humanae Vitae, que condenou "toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação" (Humanae Vitae, 1968). Algumas autoridades ortodoxas tomaram uma visão do assunto que é bastante próxima dos sentimentos expressos pelo líder da Igreja Católica Romana. Em 1937, os bispos da Igreja da Grécia emitiram uma condenação forte da contracepção. Atenágoras, o Patriarca Ecumênico na época, concordou com a encíclica papal. A Sociedade Pan-Helênica de Amigos das Famílias Numerosas afirmou que "é um pecado evitar ter filhos". Entretanto, a posição da Igreja Ortodoxa sobre essa matéria controversa não é tão simples assim. Os concílios ecumênicos lidaram com todo tipo de matéria de natureza sexual, mas nunca condenaram especificamente a regulação da concepção (H. Tristan Engelhardt, The Foundation of Christian Bioethics).

Alguns dos escritos dos Padres podem ser considerados como condenações de toda ação que impeça a concepção. Por outro lado, essas afirmações não devem ser tomadas fora de seu contexto histórico. Naquele tempo, o conhecimento científico não tinha avançado ao ponto de entendermos a possibilidade de métodos não-abortivos de regulação de nascimentos. Até fins do século dezoito, a maioria das pessoas, incluindo cientistas, acreditava que o esperma continha um ser humano inteiro. Por isso, eles consideravam que qualquer coisa que envolvesse a destruição do esperma como uma forma de aborto. Por essa razão, devemos entender que afirmações dos Padres que parecem condenar a regulação da concepção, na verdade, devem ser aplicadas ao aborto (Stanley Harakas, Stand of the Orthodox Church on Controversial Issues, in Fotios K. Litsas, A Companion to the Greek Orthodox Church, New York: Department of Communication Greek Orthodox Archdiocese of North and South America, 1984, p. 224). Por exemplo, S. João Crisóstomo escreveu: "Por que vós abusais dos dons de Deus, e lutais contra Suas leis, e procurais a maldição como se fosse bênção, e tornais o lugar de procriação em lugar de assassinato?" (St. John Chrysostom, The Epistle to the Romans, in Nicene Fathers, First Series, vol. XI, p. 520). Algumas pessoas aplicam essas afirmações à moderna regulação da concepção. Entretanto, lido no contexto de suas próprias palavras e no conhecimento de biologia da época, S. João não está se referindo ao controle da concepção, mas ao aborto (Engelhadt, The Foundation of Christian Bioethics, p. 265).

Em tempos modernos, muitos teólogos ortodoxos refinaram suas visões à luz das descobertas da biologia moderna. Assim, a maioria das autoridades ortodoxas atualmente distingue entre o aborto e os métodos não-abortivos de regulação dos nascimentos. Isso os levou a adotar uma postura mais tolerante diante das formas não-abortivas de contracepção. A declaração social adotada pela Igreja da Rússia distingue entre métodos abortivos e não-abortivos de contracepção, dizendo que não é pecado um casal fazer uso da contracepção, desde que esta não cause um aborto (The Basis of the Social Concept of the Russian Orthodox Church, disponível em: https://mospat.ru/en/documents/social-concepts/). Os bispos da Igreja Ortodoxa na América emitiram uma declaração similar, permitindo a contracepção dentro do casamento, desde que o método escolhido pelo casal não "cause dano a um feto já concebido" (Synodal Affirmations on Marriage, Family, Sexuality, and the Sanctity of Life, disponível em: http://www.oca.org/DOCmarriage.asp?ID=19). O Pe. John Meyendorff aponta que, embora alguns concílios ortodoxos locais tenham condenado a regulação da natalidade, não há uma condenação pan-ortodoxa e geral. Ao invés, de acordo com esse renomado teólogo ortodoxo, cada casal ortodoxo deve orar e tomar sua própria decisão na matéria (Meyendorff, Marriage, p. 62). Outros teólogos ortodoxos, incluindo Demetrios Constantelos e Stanley Harakas, assumiram uma visão mais positiva da regulação da natalidade. Esses teólogos ortodoxos modernos defendem que as relações sexuais entre marido e esposa não são apenas para procriação, pois também são uma expressão de seu amor mútuo e união através do Santo Matrimônio. Nesse contexto, métodos não-abortivos de controle de natalidade não são pecaminosos. De fato, Harakas escreveu, "as relações sexuais entre marido e esposa tem um valor intrínseco: elas unem marido e esposa em carne e alma em um vínculo de amor mútuo e comprometimento... Nessa perspectiva, a contracepção não é condenada, mas antes é vista como meio de preservar os objetivos e propósitos do casamento como entendidos pela Igreja" (Stanley S. Harakas, Contemporary Moral Issues Facing the Orthodox Christian, p. 80). Paul Evdokimov, professor de Teologia Moral na Instituto Teológico Ortodoxo S. Sérgio em Paris, considera a regulação da natalidade uma matéria pessoal, defendendo que o estresse causado pela adição fora do tempo de uma criança à família é justificativa para um casal usar contracepção (Evdokimov, The Sacrament of Love, pp. 175-177).

Obviamente, mesmo formas não-abortivas de controle de natalidade são pecaminosas se usadas pelas razões erradas. Todas as autoridades ortodoxas condenam o que H. Tristan Engelhardt chama de "ethos contraceptivo de auto-indulgência". É um mal o uso da contracepção para impedir a gravidez durante um relacionamento imoral. É também uma distorção do sacramento do Santo Matrimônio que um casal use a contracepção para permanecer sem filhos durante todo seu casamento. A relacionamento sexual entre marido e esposa deve estar aberto à criação de uma nova vida para cumprir um dos propósitos dados por Deus. Entretanto, as relações sexuais no casamento não existem somente para a procriação, mas são também uma expressão de amor e união entre marido e esposa. Por essa razão, a maioria das autoridades ortodoxas modernas não consideram pecaminoso usar método não-abortivos de controle de natalidade por motivos não-egoístas. Embora ele denuncie o "ethos contraceptivo", Engelhardt não condena todo uso não-abortivo de métodos de regulação de nascimentos. Ele reconhece que um casal pode legitimamente limitar o número de filhos por razões como "a saúde física da esposa, a saúde moral da união marital (isto é, que seja vivida em paz, concórdia e sem adultério), as circunstâncias econômicas do casal e a saúde espiritual do casamento" (Engelhardt, The Foundation of Christian Bioethics, p. 266-267). O Pe. John Breck do Seminário St. Vladimir concorda, dizendo que um casal pode usar contracepção para limitar o tamanho de sua família "a um número administrável" (Breck, The Sacred Gift of Life, p. 91). Assim, a maioria das autoridades ortodoxas modernas adotam uma postura tolerante com métodos não-abortivos de controle de natalidade, quando usados apropriadamente dentro do sacramento do casamento, em contraste ao que alguém poderia concluir de uma leitura acrítica de alguns dos Padres. Desse modo, o Papa Paulo VI introduziu uma nova fonte de divisão entre a Ortodoxia e o Catolicismo Romano quando tomou a posição extrema de que todas as formas de contracepção são pecaminosas.

Nas entrelinhas da abordagem ortodoxa da questão está o princípio de que as relações íntimas entre marido e esposa são intensamente pessoais, de modo que nenhuma terceira parte, nem mesmo um sacerdote ouvindo a confissão, tem o direito de interferir nelas. O concílio de Trullo ratificou os cânones de S. Dionísio de Alexandria, quando afirmou: "Pessoas que são auto-suficientes e casadas devem ser juízes de si mesmas" (Agripus and Nicodemus, The Rudder, p. 720). Na tradição russa, um sacerdote nunca pergunta questões sobre o uso de contraceptivos dentro do casamento durante a confissão. V. Plachkovsky escreveu: "Na opinião dos confessores, o inteiro domínio das relações entre marido e esposa é íntimo demais para provocar investigações pelo sacerdote". Talvez a melhor declaração sobre a moderna visão ortodoxa do controle de natalidade é encontrada em um livro publicado com a bênção do Arcebispo Iakovos pelo Departamento de Educação da Arquidiocese Greco-Ortodoxa da América do Norte:

A Igreja Ortodoxa não possui uma posição expressa sobre o planejamento familiar através do controle de nascimentos... Dito isso, por trás do não-comprometimento da Igreja sobre a regulação da natalidade, uma atitude tácita foi construída ao longo de séculos de modo que a consciência do crente individual, nessa matéria, esteja acima de requisitos institucionais ou de grupo. Isso reflete o respeito da Igreja pelo crente ortodoxo e está alinhado com seu conceito de que os comunicantes formam um sacerdócio real (Nicon D. Patrinacos, A Dictionary of Greek Orthodoxy (New York: The Greek Ortrhodox Archdiocese of North & South America (Department of Education, 1984), pp. 56-57).