O Conceito de Logos em Filo de Alexandria

Filo de Alexandria (c. 20 a.C. – 50 d.C.) foi um filósofo judeu helenístico que viveu numa época e lugar—a Alexandria ptolemaica e romana—onde a cultura grega e o pensamento hebraico se encontravam de forma intensa. Sua grande obra foi tentar harmonizar a revelação da Bíblia Hebraica (especificamente a Torá, na sua tradução grega, a Septuaginta) com a filosofia grega, em especial o platonismo e o estoicismo. A pedra angular de todo o seu sistema teológico-filosófico é o conceito de Logos (Λοˊγος).

Para entender o Logos de Filo, primeiro é preciso entender o seu conceito de Deus. Para Filo, Deus é absolutamente transcendente, perfeito, imutável e inefável. Ele é o "Ser que É" (τοˋν), pura existência, sem qualidades ou atributos que a mente humana possa compreender diretamente. Este Deus está tão acima e além do mundo material, que é mutável e imperfeito, que não pode ter contato direto com ele. Isso criava um problema filosófico: como um Deus tão radicalmente transcendente pôde criar e interagir com um universo material e finito?

A resposta de Filo é o Logos.

O Logos é o princípio intermediário, a ponte que liga o Deus transcendente à criação imanente. Não é uma segunda divindade, mas também não é idêntico a Deus Pai. É uma realidade complexa, com múltiplas funções.

As Múltiplas Facetas do Logos

1. A Mente de Deus e o Plano da Criação: Antes de criar o mundo físico, Deus concebeu um plano, um "mundo inteligível" (κοˊσμοςνοητοˊς) em Sua própria mente. Este plano, este conjunto de ideias ou formas arquetípicas (numa clara influência platônica), é o Logos. O Logos é a razão imanente de Deus, o repositório de todas as formas perfeitas que serviriam de modelo para a criação material.

"Pois Deus, tendo resolvido criar o mundo, primeiro concebeu a sua forma; e tendo-a formado, produziu um mundo inteligível, para que pudesse servir de modelo para o mundo corpóreo... Assim como uma cidade, antes de ser construída, existe primeiro no desígnio do arquiteto." (Sobre a Criação, 19-20).

O Logos, neste sentido, é o "arquiteto divino" ou, mais precisamente, a "planta arquitetônica" do universo.

2. O Instrumento da Criação: Deus não "suja as mãos" com a matéria. Ele usa o Logos como Seu instrumento (ργανον) para criar e ordenar o universo. O Logos é a força ativa que emana de Deus e molda a matéria informe de acordo com as ideias contidas na mente divina.

"E o Pai, que o gerou [o Logos], fez dele seu instrumento para a criação do cosmos." (Sobre a Fuga e a Descoberta, 109).

Ele também é descrito como o "cortador" (τομευˊς) que divide e organiza a criação, separando a luz das trevas, o céu da terra, etc.

3. O Mediador e Sumo Sacerdote: O Logos atua como o intermediário entre Deus e a humanidade. Ele é quem revela a vontade de Deus aos homens (como nos profetas e em Moisés) e também quem leva as preces e anseios da humanidade a Deus. Nessa função, Filo o descreve como o Sumo Sacerdote (ρχιερευˊς) celestial.

"[O Logos] é o Sumo Sacerdote que, sendo isento de todo pecado... roga por esta nossa raça sempre propensa a pecar... Ele é o mediador e o árbitro, que se põe no meio tanto do Criador, para interceder pela criatura sempre mortal, quanto da criatura, para anunciar a vontade do Criador." (Quem é o Herdeiro das Coisas Divinas?, 205-206).

4. A Imagem de Deus e o Paradigma do Homem: O Logos é a imagem perfeita e imaculada (εκωˊν) do Deus invisível. Enquanto Deus em Si mesmo é incompreensível, o Logos é a manifestação acessível de Sua natureza. Por isso, quando a Escritura diz que o homem foi criado "à imagem de Deus" (Gênesis 1:27), Filo argumenta que fomos criados à imagem da Imagem, ou seja, à imagem do Logos.

"Pois, se o homem foi feito segundo a imagem de Deus, é evidente que esta imagem é o Logos, visto que o Deus supremo não é como as coisas nascidas... Portanto, o homem foi feito segundo a semelhança do Logos de Deus, a Causa primeira de todas as coisas." (Questões e Soluções sobre o Gênesis, II, 62).

A Relação do Logos com os Títulos Bíblicos do Messias

Filo, lendo a Bíblia Hebraica através de suas lentes filosóficas, aplica diversos títulos e metáforas ao Logos, extraindo-os do texto sagrado. É aqui que vemos a conexão com os termos que você perguntou.

1. Filho de Deus (υἱὸς θεοῦ) e Primogênito (πρωτόγονος):

Filo relaciona diretamente o Logos com o conceito de "Filho de Deus", e de forma muito explícita. Para ele, o Logos é o "Filho Primogênito" de Deus. Essa "filiação", evidentemente, não é biológica. É uma metáfora filosófica para expressar a origem, a preeminência e a intimidade do Logos com Deus Pai. Ele não é "criado" como o resto do universo, mas "gerado" ou "emanado" da própria mente de Deus.

"E o Pai, o Criador do universo, deu ao seu arcanjo e Logos mais antigo o privilégio de permanecer no meio, para separar o que foi criado do Criador... E este mesmo Logos é o suplicante pelo gênero mortal... sendo o embaixador do governante para o súdito. E ele se regozija neste dom, e o proclama com orgulho, dizendo: 'E eu estava no meio, entre o Senhor e vós' (Números 16:48), não sendo não-gerado como Deus, nem gerado como vós, mas no meio dos dois extremos..." (Quem é o Herdeiro das Coisas Divinas?, 205-206).

"...ao seu Verbo (Logos) primogênito, o primogênito dos anjos, como um grande arcanjo..." (Sobre a Confusão de Línguas, 146).

"Pois Deus é a casa de seu Logos, e este mundo inteligível é a casa de Deus, que ele honra acima de todas as coisas; pois ele o chamou de seu Filho Primogênito." (Sobre os Sonhos, I, 215).

2. Messias / Cristo (Μεσσίας / Χριστός):

A relação aqui é mais complexa e indireta. Filo não identifica explicitamente o Logos com a figura do Messias davídico, o rei guerreiro e político esperado por muitos judeus de sua época. O Logos de Filo é muito mais um princípio cósmico, universal e atemporal, do que figura histórica viria.

No entanto, Filo usa a linguagem da "unção" (χρῖσμα, chrisma) em conexão com o Logos. O Sumo Sacerdote no Antigo Testamento era o "ungido" do Senhor. Como Filo identifica o Logos como o verdadeiro Sumo Sacerdote celestial, ele o entende como o "Ungido" por excelência, mas num sentido puramente espiritual e metafísico, não político ou escatológico.

3. Filho do Homem (υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου):

A conexão aqui é conceitual e muito forte, embora Filo não use a frase exata "Filho do Homem" de Daniel 7 para se referir ao Logos. Em vez disso, ele desenvolve a ideia do Logos como o "Homem Celestial" ou o "Homem arquetípico", em contraste com o homem terreno e moldado do barro.

Lembrando que o homem foi feito à imagem do Logos, o Logos é, portanto, o "Homem" original e verdadeiro, o arquétipo da humanidade.

"Pois há duas espécies de homens; um é o homem celestial, e o outro é o homem terreno. O homem celestial, sendo feito à imagem de Deus, é completamente incorruptível; mas o homem terreno é feito de matéria, que ele chama de pó..." (Alegorias das Leis, I, 31).

Este "Homem Celestial" é o Logos.

"Pois ele [Moisés] chama de 'imagem de Deus' o mais antigo de todos os seres, o Verbo divino... E ele o chama de 'homem', aquele que é a imagem de Deus, não o distinguindo em gênero, mas em excelência." (Questões e Soluções sobre o Êxodo, II, 13).

A figura do "Filho do Homem" em Daniel 7 é um ser celestial que recebe poder e autoridade de Deus. O Logos de Filo, como o "Homem Celestial" e vice-rei de Deus, cumpre funcionalmente um papel muito semelhante: ele é o governante e juiz do cosmos em nome de Deus. Assim, embora a terminologia não seja idêntica, os conceitos são profundamente paralelos.

Conclusão

O Logos de Filo é uma doutrina rica e multifacetada, crucial para conciliar a fé judaica com a razão grega. Ele é o plano da criação, o instrumento de Deus, o mediador entre o céu e a terra, e a imagem perfeita do Pai.

  • Ele explicitamente o chama de "Filho de Deus" e "Primogênito", entendendo isso em um sentido metafísico de origem e preeminência.

  • Ele o associa ao conceito de "Messias" (Cristo/Ungido), embora redefinindo o termo, afastando-o da expectativa política e aplicando-o à função espiritual do Sumo Sacerdote celestial.

  • E ele desenvolve um conceito do Logos como o "Homem Celestial" arquetípico, que é funcional e conceitualmente análogo à figura do "Filho do Homem" da tradição bíblica.

O pensamento de Filo sobre o Logos, especialmente sua designação como Filho de Deus, Verbo, Imagem e Mediador, teve uma influência imensa e inegável nos primeiros pensadores cristãos, que viram em sua linguagem a ferramenta filosófica perfeita para explicar a natureza e o papel de Jesus de Nazaré, mais notavelmente no prólogo do Evangelho de João ("No princípio era o Verbo [Logos], e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.").

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