A doutrina da predestinação na Sagrada Escritura

Segue abaixo uma discussão sobre os principais textos do Novo Testamento sobre predestinação e livre-arbítrio.



Efésios

A predestinação, como nos é apresentada na Carta aos Efésios, é equivalente ao desígnio de Deus, antes de todos os séculos, de fazer os crentes serem semelhantes a Jesus Cristo:
Nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado. Efésios 1,4-6
O apóstolo ensina que fomos eleitos "nele" (em Cristo) e "em amor". A eleição é para a santificação, "para que fôssemos santos e irrepreensíveis". É cristocêntrica. Significa que foram escolhidos aqueles que Deus viu "em Cristo". Comentando sobre essa passagem, o pregador do século XVIII John Wesley diz que Deus "preordenou que todos os que creriam [em Cristo] deveriam gozar da dignidade de serem filhos de Deus, e co-herdeiros com Cristo" (Notas ao Novo Testamento). O apóstolo continua:
Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade; com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós os que primeiro esperamos em Cristo. Efésios 1,9-12
Trata-se de uma afirmação clara da predestinação. Contudo, não devemos entender essa predestinação como incondicional. Todos os cristãos sinceros foram predestinados "em Cristo", como é dito acima, e não incondicionalmente. Isso significa que, enquanto estivermos em Cristo - por fé e arrependimento - somos destinados à santificação e à salvação. Em nenhum momento o apóstolo fala de predestinação "para crer" ou "para escolher".

João Crisóstomo explica a eleição "em Cristo" significa uma eleição condicional, isto é, por meio da fé prevista:
"Cristo é o próprio Juiz que dirá: 'Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo' [Mt 25:34]. E este é o ponto em que o apóstolo está ansioso para provar em quase todas as suas epístolas: que não temos um sistema novo, mas que foi figurado desde o início, que não é resultado de uma mudança de propósito [da parte de Deus], mas que foi realmente uma dispensação divina e preordenado. O que significa dizer que 'nos escolheu Nele'? Por meio da fé que está Nele" (Homilias em Efésios).
Romanos 8

Em Romanos 8, o Apóstolo fala da predestinação de maneira semelhante:
Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Romanos 8,29
O Apóstolo não diz que Deus predestinou (ou predeterminou) as escolhas ou a fé das pessoas, mas sim que predestinou "os que dantes conheceu". Sobre essa passagem, Teodoreto de Cirro comenta:
"Aqueles cuja intenção Deus previu, Ele predestinou desde o princípio. Que ninguém diga que a presciência de Deus foi a causa unilateral dessas coisas. Não foi sua presciência que justificou as pessoas, mas Deus sabia o que aconteceria, porque Ele é Deus" (Comentário de Romanos).
E S. Cirilo de Alexandria:
"Aqueles que com bom zelo e fé O buscam, Deus os vê de antemão, como de uma montanha, isto é, de Sua presciência elevada e digna de Deus, de acordo com o que é dito por Paulo, 'A quem Ele de antemão conheceu e predestinou para serem conformados à Imagem de Seu Filho, a estes Ele também chamou" (Comentário a João, III).
Deus predestinou os crentes "para serem conformes à imagem de seu Filho". Basicamente, o que o texto está dizendo é: aqueles que dantes conheceu, predestinou para a santificação.

Romanos 9, 10 e 11

Outro texto que costuma ser discutido é Romanos 9:
Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O maior servirá o menor. Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma. Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece. Romanos 9,11-16
Esse texto é erradamente usado para provar que a eleição é incondicional. Porém, é interessante notar que S. Paulo está contrapondo as "obras da lei" e a fé. Ele nega que a eleição seja "por causa das obras" e no final do capítulo conclui:
Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. Mas Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé, mas como que pelas obras da lei; tropeçaram na pedra de tropeço. Romanos 9,30-32
O capítulo 9 inteiro é um contraste entre obras da lei e fé, entre aqueles que aceitam a misericórdia de Deus revelada "a quem Ele quer", pela fé, e os que buscam a justiça pelas obras. Em resumo: a comparação ocorre entre os "filhos da promessa" (que aceitaram o Messias) e os "filhos da carne" (os judeus que o negaram), não entre indivíduos incondicionalmente destinados a crer ou não crer.

S. João Crisóstomo vê no versículo 32 uma explicação final de todo o discurso:
"Ver. 32. 'Porque eles buscaram isso não pela fé, mas como se fosse pelas obras da Lei.'
Esta é a resposta mais clara na passagem, que se ele tivesse dito imediatamente ao começar, não teria sido tão facilmente ouvido. Mas como é depois de muitas perplexidades, preparativos e demonstrações que ele estabelece, e depois de usar inúmeras etapas preparatórias, ele finalmente o tornou mais inteligível e também mais facilmente admitido. Pois isso ele diz ser a causa de sua destruição: 'Porque não foi pela fé, mas como se fosse pelas obras da Lei', que eles desejavam ser justificados. E ele não diz 'pelas obras', mas 'como se fosse pelas obras da Lei', para mostrar que eles nem mesmo tinham essa justiça (Homilias em Romanos).
Outra comprovação disso está em Romanos 11:
Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Se, porém, é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra. Romanos 11,5-6
Novamente, perceba como o Apóstolo contrapõe "eleição da graça" e "obras". Ele continua o discurso, explicando a fé como condição de permanência no pacto:
Está bem; pela sua incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé. Então não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, teme que não te poupe a ti também. Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas para contigo, benignidade, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira também tu serás cortado. E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar. Romanos 11,20-23
O objetivo do Apóstolo Paulo é demonstrar a soberania de Deus em estabelecer os termos do pacto, ou seja, que "devem ser considerados como descendência os filhos da promessa", e não os "da carne" (9,8). É nesse sentido que Deus "tem misericórdia de quem quer" e "não depende de quem corre"A condição da salvação é a fé com arrependimento sincero, e não as obras da lei ou a ascendência carnal.

Os capítulos 9 a 11 constituem um só discurso. O apóstolo faz um contraste entre a "promessa" e a "carne", entre a "fé" e as "obras".

Pode-se alegar que S. Paulo fala também da escolha soberana de indivíduos: Isaque vs. Ismael (v. 7), Jacó vs. Esaú (vs. 11-13). Mas a escolha divina desses indivíduos é uma alegoria ou prefiguração da eleição da Igreja. Ismael e Esaú, enquanto indivíduos, não foram condenados à perdição, mas deixaram de ser veículos da aliança divina como Isaque e Jacó foram (Gn 17,20-21, Gn 33,10).

Se a leitura da eleição incondicional estivesse correta, o Apóstolo jamais poderia falar da possibilidade de "salvar alguns" (11,14), precisamente dentre os judeus que ele descreveu como não-eleitos! A porta da salvação nunca foi fechada a eles, como teria sido se o Apóstolo estivesse falando de pessoas incondicionalmente destinadas à perdição.

Outras passagens relevantes

A Escritura está repleta de passagens que demonstram a universalidade do amor e da graça de Deus:
Deus quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade. Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem. O qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir de testemunho a seu tempo. 1 Timóteo 2,4-6
A graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a todos os homens. Tito 2,11
O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é longânimo para conosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se. 2 Pedro 3,9
Que vos parece? Se algum homem tiver cem ovelhas, e uma delas se desgarrar, não irá pelos montes, deixando as noventa e nove, em busca da que se desgarrou? E, se porventura achá-la, em verdade vos digo que maior prazer tem por aquela do que pelas noventa e nove que se não desgarraram. Assim, também, não é vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca. Mateus 18,12-14 
Testificamos que o Pai enviou seu Filho para Salvador do mundo. 1 João 4,14
Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor DEUS; Não desejo antes que se converta dos seus caminhos, e viva? Ezequiel 18,23

O Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras. Salmos 145,9
Agora, pois, ó moradores de Jerusalém, e homens de Judá, julgai, vos peço, entre mim e a minha vinha. Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu lhe não tenha feito? Por que, esperando eu que desse uvas boas, veio a dar uvas bravas? Isaías 5,3-4 
Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! Mateus 23,37
Comentando sobre esta última passagem, Sto. Irineu de Lyon diz:
"As palavras que diz: 'Quantas vezes quis reunir os teus filhos e não quiseste', ilustram bem a antiga lei da liberdade do homem, porque Deus o fez livre desde o início, com a sua vontade e a sua alma para consentir aos desejos de Deus sem ser coagido por ele. Deus não faz violência, e o bom conselho o assiste sempre, e por isso dá o bom conselho a todos, mas também dá ao homem o poder de escolha, como o dera aos anjos, que são seres racionais, para que os que obedecem recebam justamente o bem, dado por Deus e guardado para eles enquanto os desobedientes serão justamente frustrados neste bem e sofrerão o castigo merecido" (Contra as heresias, III).
Diante de tudo isso, alguém pode perguntar: por que, afinal de contas, alguns aceitam a graça de Deus oferecida a eles, enquanto outros rejeitam? Essa questão foi colocada por teólogos calvinistas, inquirindo qual a "causa" determinou que uns escolhessem o bem e outros o mal. De fato, é minha opinião que não há resposta a essa pergunta. Sabemos que Deus deseja genuinamente que todos os homens sejam salvos. Se não são, é porque tragicamente resistem ao Espírito Santo (At 7,51, Hb 3,15). Para além dessa resposta, a Escritura não nos esclarece mais.

O que podemos estar seguros é que Deus deseja ardentemente nossa salvação e espera nosso "sim". Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo (Ap 3,2).

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