Oração pelos mortos e Purgatório: diferenças entre ortodoxos e católicos

 
Metropolita Macário de Moscou (1816-1882), Teologia Dogmática Ortodoxa, Vol. 2 (1857).

A doutrina da Igreja Romana sobre o Purgatório tem alguma semelhança com a doutrina da Igreja Ortodoxa sobre a possibilidade de alguns pecadores serem libertados das amarras do Hades [Inferno] pelas orações dos vivos, embora também tenha alguma diferença. Para julgar corretamente entre um e outro, deve-se entender o ensino conforme estabelecido pelos próprios teólogos romanos.

Primeiro, eles distinguem na doutrina do Purgatório duas partes: a 'parte essencial', ou o que foi decretado e ensinado por sua Igreja como dogma, e o opcional, ou seja, o que não foi fixado por sua Igreja e é objeto de opiniões [controversas] teológicas. A primeira parte refere-se apenas a dois pontos:

a) Há um purgatório, isto é, um lugar ou estado de expiação (status expiationis) em que as almas daqueles que morreram sem ter recebido a absolvição por faltas leves, ou mesmo depois de obter a absolvição de seus pecados, mas sem suportar nesta vida os castigos temporais pelos pecados, sofrem tormentos para satisfazer a justiça divina, até que sejam purificados por esses tormentos e se tornem dignos da felicidade eterna.

b) As almas dos que estão no Purgatório precisam muito de oração para ajudá-los, assim como esmolas [oferecidas em favor delas], e principalmente do Sacrifício incruento [isto é, o Sacrifício da Missa].

No que respeita ao ensino não-essencial [opcional], este refere-se à solução das seguintes questões:

a) O Purgatório é um lugar específico ou não, e em caso afirmativo, onde fica? Os sofrimentos das almas no fogo do purgatório são reais ou metafóricos [espirituais]?
b) Quanto tempo as almas ficam no purgatório? Como eles são ajudados pelas orações da Igreja?
 
Segundo, focando nossos pensamentos sobre a parte essencial da doutrina romana sobre o Purgatório, encontramos alguma semelhança com a da Igreja Ortodoxa sobre as orações pelos mortos, e ao mesmo tempo algumas diferenças:
 
Semelhanças - Há semelhança na ideia fundamental. De fato, a Igreja Ortodoxa ensina, como a de Roma: (a) Que as almas de alguns dos mortos, ou seja, daqueles que morreram na fé e no arrependimento, mas sem ter tido tempo para trazer em vida frutos dignos de arrependimento [Mateus 3:8], e, portanto, não conseguiram receber de Deus o perdão completo de seus pecados e serem [perfeitamente] purificados, sofrem tormentos até que sejam julgados dignos de perdão e purificados; e (b) Que em tais casos as almas dos defuntos são beneficiadas pelas orações em favor delas pelos irmãos em Cristo que ainda estão vivos, suas obras de caridade e especialmente pela oferta do Sacrifício incruento [eucarístico].
 
Diferenças - As diferenças, em particular, são: (a) De acordo com a doutrina da Igreja Ortodoxa, as almas dos mortos acima mencionadas estão sofrendo porque, embora tenham se arrependido antes da morte, não tiveram tempo de produzir frutos dignos de arrependimento, e portanto, merecer o perdão completo de Deus de seus pecados e, assim, ser realmente purificados e superar as consequências naturais do pecado, [que é a] punição; considerando que, de acordo com a doutrina da Igreja de Roma, as almas dos mortos sofrem no Purgatório, estritamente porque não sofreram aqui abaixo o castigo temporal necessário para os pecados em satisfação da justiça divina; e (b) Segundo a doutrina ortodoxa, essas almas são purificadas dos pecados e merecem o perdão de Deus, não por si mesmas e pelo seu próprio sofrimento, mas pelas orações da Igreja e pelo poder do Sacrifício incruento [eucarístico]; com essas mesmas orações não só beneficiando as almas que sofrem, mas mitigando sua posição, libertando-as do tormento, enquanto que, segundo a doutrina da Igreja Romana, é por seu mesmo sofrimento que as almas são purificadas no Purgatório e, assim, a justiça divina é satisfeita, e as orações da Igreja servem apenas para dar-lhes algum alívio nessa condição.
 
Além disso, embora as diferenças entre a doutrina romana do Purgatório e a doutrina ortodoxa de oração pelos mortos sejam sobre esses detalhes, elas são importantes e não podemos aceitar as diferenças. Pois nessas diferenças encontramos tanto coisas falsas [no ensino romano] quanto uma inversão do dogma fundamental:
 
1º Erro [Que é necessário satisfazer a justiça divina por todo pecado já perdoado, através de penas temporais] - A primeira ideia é falsa, como já vimos, isto é, que um pecador que se arrepende antes de morrer deve ainda trazer uma espécie de satisfação à justiça divina por seus pecados sofrendo algum castigo temporal para esse fim, e que no Purgatório ele faz isso, por falta de poder sofrer aqui embaixo. A satisfação completa à justiça divina, a mesma satisfação superabundante, foi apresentada de uma vez por todas, em favor de todos os pecadores, por meio de Jesus Cristo Nosso Salvador, que tomou sobre si os pecados do mundo e todo o castigo pelo pecado; e, para obter o perdão completo de Deus e a libertação de todo castigo do pecado, os pecadores devem apropriar-se dos méritos do Redentor, ou seja, crer nEle, arrepender-se verdadeiramente de seus pecados, produzir frutos dignos de arrependimento, ou seja, boas ações. Consequentemente, se há pecadores que, tendo-se arrependido antes de morrer, têm, apesar disso, tormentos a suportar após a morte, é apenas porque não tiveram tempo para apropriar-se plenamente dos méritos do Salvador, seja por causa da fraqueza de sua fé Nele ou por efeito da falha de seu arrependimento, e principalmente porque não deram frutos dignos de arrependimento, e não foram realmente purificados do pecado, como ensina a Igreja Ortodoxa.
 
2º Erro [Que as almas podem ser purificadas através de seus próprios sofrimentos expiatórios] - Não é menos um equívoco que os pecadores seriam purificados no Purgatório e satisfariam a justiça divina por seus próprios tormentos. Em qualquer sentido que o fogo do Purgatório seja entendido, literalmente ou em sentido figurado, em nenhum desses sentidos podemos atribuir isso a Deus. Se for atribuído um significado literal ao fogo, então, o fogo por sua própria natureza é incapaz de purificar uma alma que é uma essência espiritual simples e imaterial. Se for atribuído um significado figurativo, ou seja, o fogo é um tormento interior da alma devido à consciência de seus pecados passados ​​e à profunda contrição por eles, então, nesse caso, isso não pode purificar a alma na vida além da sepultura, porque na vida após a morte não há mais lugar para arrependimento, nem para mérito ou qualquer autocorreção pessoal como os católicos romanos acreditam. E enquanto a alma permanecer no pecado, não purificada e renovada, até então, seja o que for que tenha que suportar, ela não pode de modo algum satisfazer por seu próprio sofrimento a justiça divina e superar [através desses sofrimentos] essas consequências inevitáveis ​​do pecado.
 
3º Erro [Que as orações da Igreja são essencialmente dispensáveis, servindo apenas para aliviar os sofrimentos do Purgatório] - Se as almas de alguns dos mortos sofrem no Purgatório, e mesmo os pecadores arrependidos devem necessariamente sofrer uma punição temporal pelo pecado em satisfação à justiça divina, e, se as almas que sofrem no Purgatório são verdadeiramente purificadas e cumprem sua obrigação para com a justiça divina [através desses sofrimentos], então, a pergunta é: “Qual é o sentido das orações e da intercessão geral da Igreja em seu favor?”. As almas do Purgatório necessariamente têm que sofrer até que tenham cumprido a satisfação desejada e tenham sido purificadas pelo sofrimento; agora, se as orações da Igreja apenas enfraquecem e aliviam esse sofrimento, em vez de encurtar o período de tempo que as almas devem passar no Purgatório, elas (as orações) o prolongam e, portanto, são menos úteis do que prejudiciais. Isso não derruba, é claro, a ideia fundamental do dogma das orações pelos mortos?
 
Terceiro, se voltarmos agora a nossa atenção para a parte não-essencial da doutrina romana sobre o Purgatório, sendo opiniões teológicas, verificamos que difere muito mais da doutrina da Igreja Ortodoxa sobre a oração pelos mortos, embora em questões de pouca importância julgando pelo seu significado íntimo. Mencionemos os dois mais notáveis:
 
4º Erro [Que há um lugar intermediário entre céu e inferno] - A Igreja Ortodoxa ensina que não há classe intermediária após a morte entre aqueles que são salvos e vão para o céu, e aqueles que são condenados e vão para o Hades; não há um lugar intermediário específico para onde vão as almas que fizeram penitência antes da morte e estão sujeitas às orações da Igreja; todas essas almas vão para o Hades, onde só podem ser libertadas pelas orações. A maioria dos teólogos romanos considera o Purgatório como um lugar intermediário especial entre o céu e o inferno, às vezes colocado nas proximidades deste último, no interior da terra, às vezes próximo ao primeiro, às vezes no ar. Há outros, porém, que veem no Purgatório não um lugar à parte, mas um estado particular de almas, e reconhecem que as almas neste estado podem sofrer seu castigo temporal e purificar-se mesmo onde estão contidas os condenadas [outras almas] ao castigo eterno (ou seja, no inferno); assim, podem ser encontrados na mesma prisão presos condenados à prisão temporária e presos condenados para sempre.
 
5º Erro [Que há um fogo purgatorial] - A Igreja Ortodoxa rejeita veementemente o ensino de um fogo purgatorial, no verdadeiro sentido da palavra, que purificaria a alma. Um grande número de teólogos romanos considera este fogo como real e material (sendo esta a crença quase universal dos leigos da confissão romana), e para angariar provas de seu ensinamento eles tentam coletar das Sagradas Escrituras e do escritos dos antigos Doutores da Igreja referências que parecem tratar de tal fogo. Outros, no entanto, entendem o fogo do Purgatório em sentido figurado, para tormento espiritual, e, portanto, citam em seus tratados sobre o assunto evidências semelhantes da palavra de Deus ou dos escritos dos Padres, acrescentando que os próprios antigos doutores eram de opiniões variadas sobre o fogo. Seria, portanto, supérfluo até mesmo refutar as provas apresentadas. Nota-se finalmente que, em geral, sua Igreja não determinou precisamente o que é o fogo do Purgatório, se é material ou não, e, portanto, não pertence à fé entendê-lo de uma maneira ou de outra [dogmaticamente].

Não discutiremos outras opiniões sobre o Purgatório, por exemplo, quanto tempo uma alma permanece, e se todas elas sofrem o mesmo espaço de tempo pelas mesmas penas; quais penalidades elas enfrentam; se são mais rigorosas que as da vida presente e mais leves que as do inferno; se as almas do purgatório rezam por si mesmas e por nós que ainda estamos neste mundo; se se entregam à prática das boas obras, etc, etc. Todas essas opiniões têm pouco valor mesmo para os teólogos de Roma e poucos se empenharam seriamente em respondê-las.

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Breve síntese [não pertence ao texto do Metropolita Macário]
 
A Igreja Ortodoxa crê que:

1) Há pessoas que morreram com fé e arrependimento, mas que são "detidas no Hades" (a expressão é de S. Basílio), seja porque "não tiveram tempo de produzir frutos de arrependimento", seja porque cometeram "faltas leves" e, assim, ainda não receberam pleno perdão e purificação de seus pecados.

2) A Igreja ora e oferece sacrifícios por essas almas, implorando a misericórdia de Deus em favor delas. É essa intercessão que traz-lhes a libertação, perdão, purificação e plena entrada no paraíso, não o pagamento de débitos de expiação ("penas temporais").

Já o sistema romano ensina  que as orações da Igreja servem mais para aliviar o sofrimento das almas que ainda devem pagar penas temporais. É o pagamento dessas penas, pelo sofrimento expiatório (no fogo do Purgatório), que as liberta. Daí a existência de indulgências, que consistem na aplicação de méritos para cobrir (pagar) esses débitos de penas temporais. Não há indulgências na Igreja Ortodoxa.

O significado da Eucaristia

 
 
Primeiro, oferecemos a Deus alguns elementos muito simples de nossa comida: um pouco de pão e um pouco de vinho. Como você provavelmente sabe, a Igreja Oriental usa o pão fermentado para sua prosphora; então é realmente o que comemos em casa que está sendo oferecido a Deus como nosso sacrifício. E um bom estudo litúrgico e bíblico mostraria claramente que esta oferta de alimentos significa, antes de tudo, que estamos oferecendo a nós mesmos. O alimento não é apenas o símbolo da vida, mas sendo a condição da vida, sendo aquilo que se torna nosso corpo, o alimento é vida e, portanto, nossa vida - nós mesmos. O primeiro e verdadeiro sacrifício é, portanto, o sacrifício da própria Igreja. Mas (e este "mas" é muito importante) é um sacrifício em Cristo. Não é um novo sacrifício porque é o sacrifício da Igreja, e a Igreja é o Corpo de Cristo. Desde o primeiro momento da Liturgia, Cristo não é apenas Aquele que aceita o sacrifício, mas nas palavras de uma das orações litúrgicas, Aquele que também oferece. Todos os nossos sacrifícios - e um cristão é por sua própria natureza um sacrifício vivo a Deus - convergem para o único sacrifício, pleno e perfeito, o da humanidade de Cristo, que Ele ofereceu a Deus e no qual estamos incluídos pela nossa pertença à Igreja.

Estamos oferecendo este sacrifício não porque Deus precisa dele, mas porque o sacrifício de Cristo é a essência, a condição de estarmos nEle. A teologia ortodoxa, ao contemplar este sacrifício, enfatiza o amor nele em vez de "satisfação" ou expiação. Ser sacrificial pertence à própria essência do Filho de Deus mesmo antes da Encarnação e da Redenção. Pois o sacrifício, antes de se tornar sacrifício por algo, é a expressão natural e necessária do amor. Toda a vida de Cristo é um sacrifício porque é uma vida perfeita feita de amor e somente amor. E como é a Sua própria vida que Ele nos dá (Cristo em nós, nós em Cristo), nossa vida também é um sacrifício. Nosso sacrifício Nele, Seu sacrifício em nós. E assim, novamente, é um sacrifício real, não simbólico; mas não um novo, mas sempre o mesmo, aquele que ele nos deu, no qual ele nos acolheu. A Igreja, sendo o Corpo de Cristo, é ela mesma um ser sacrificial porque sabe que a essência da vida do homem - como visto em Sua Humanidade - é ir para Deus. E esse ir determina o movimento do sacrifício. Tudo isso é expresso na Oração do Hino Querubínico: "Tu és Aquele que oferece e Aquele que é oferecido, e Tu recebes e és distribuído".

É uma maravilhosa identificação com Cristo. Oferecemos nosso sacrifício a Deus Pai, e ainda assim não temos nada a oferecer a não ser o próprio Cristo; pois Ele é nossa vida e oferta. Sacrificando nossa vida, oferecemos Ele. A nossa Eucaristia é a Sua Eucaristia, e Ele também é a nossa Eucaristia.

Depois do Credo e do Beijo de Amor ("Amemo-nos uns aos outros para que em harmonia professemos a fé", etc.), estamos prontos para a grande oração eucarística, que desde tempos imemoriais constituiu a própria essência de toda a Eucaristia. Eucaristia significa ação de graças. Mas como a ação de graças está relacionada à consagração? A esta pergunta as várias teorias teológicas não dão uma resposta satisfatória. Sob sua influência, o elemento de ação de graças da oração eucarística foi chamado de Prefácio. No entanto, um prefácio geralmente não é algo muito importante. Não lemos às vezes o prefácio de um livro depois de ter lido o próprio livro? Mas na Eucaristia é precisamente este "Prefácio" que torna possível todo o resto, inclusive a consagração e a transformação dos elementos; e entendemos por que a ação de graças é o único caminho para essa transformação e assim entendemos todo o significado da Eucaristia.

Durante séculos, a ênfase foi colocada na "noite em que Ele foi traído" - no aspecto sangrento de Seu Sacrifício. Mas na tradição litúrgica, que nenhuma teoria sacramental foi capaz de quebrar, a oração começa com uma solene ação de graças. E Cristo também começou o seu sacrifício com uma ação de graças: "E, tendo dado graças, partiu-o... e deu-o".

A razão para isso, no entanto, esquecido como pode ser, é simples. Eucaristia, ação de graças, é o estado do homem inocente, o estado do paraíso. Antes do pecado, a vida do homem era eucarística, pois a "eucaristia" é a única relação entre Deus e o homem que transcende e transforma a condição criada do homem. Esta condição é a de uma dependência total, absoluta. Dependência é escravidão. Mas quando essa dependência é aceita e vivida como "eucaristia", isto é, como amor, ação de graças, adoração, não é mais dependência; é uma atitude de liberdade, um estado em que Deus é o conteúdo da vida. A Eucaristia, portanto, é o único estado de inocência, e Adão e Eva a tinham e era a imagem divina neles.
 
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Mas sabemos que ninguém pode dizer isso, ninguém pode oferecer isso a não ser Cristo. Foi a Sua Eucaristia única que nos conduziu até aqui; fomos levados em Sua Ascensão, Sua passagem para Seu Pai. Estávamos oferecendo nEle. E agora percebemos que o conteúdo de nossa Eucaristia é Cristo novamente, pois não há mais nada que possamos oferecer a Deus. Não é uma nova Eucaristia. Somos aceitos na Eucaristia eterna que Cristo oferece e da qual Ele é a oferta. Ele está lá - no céu - eternamente. Ele é o fim, o Eschaton, e nossa Eucaristia não está, portanto, no passado, no presente ou no futuro. É o Eschaton, no Cristo glorificado.
 
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Há muitos aspectos da ideia de sacrifício, mas gostaria de começar com meu principal interesse, que é a adoração. Este me parece ser o centro de toda a ideia de sacrifício, e o lugar onde todas as suas facetas se encontram: renúncia, oferenda e transformação.

Houve uma controvérsia que se desenvolveu no Ocidente sobre a Eucaristia como sacrifício. Por um lado, havia o conceito de que ao aceitar o sacrifício de Cristo como único e pleno, o aspecto sacrificial da Eucaristia deveria ser rejeitado; por outro lado, havia a ideia escolástica, que definia o sacrifício em termos de redenção e expiação - algo sangrento que satisfazia a ira ou a justiça divina. Sempre achei todo o debate errado, pois esse tipo de teologia e esse tipo de religião interpretam o sacrifício como um negócio jurídico: é necessária uma satisfação, um dever da criação para com o Criador, como um imposto de renda: a oferta do melhor animal ou mesmo da criança, para satisfazer uma necessidade objetiva. Esta é a perspectiva que eu acho que precisa não apenas de correção, mas de um repensar muito mais radical, começando pela própria natureza do sacrifício, que foi esquecida pelos teólogos e às vezes redescoberta no estudo das religiões.

Gostaria de salientar que, em primeiro lugar, o sacrifício é uma ontologia. Não é apenas o resultado de algo, é uma expressão maior ou uma primeira revelação da própria vida; é o conteúdo espiritual da vida. Onde não há sacrifício não há vida. O sacrifício está enraizado no reconhecimento da vida como amor: como renunciar, não porque quero mais para mim, ou para satisfazer uma justiça objetiva, mas porque é a única maneira de alcançar a plenitude que me é possível.

Assim, antes que o sacrifício se torne expiação, reparação ou redenção, é o movimento natural da própria vida. Tudo isso eu encontro na Eucaristia oriental, onde antes de chegarmos à crucificação, falamos do sacrifício de louvor e da salvação como um retorno ao modo de vida sacrificial. Oposto ao sacrifício está o consumismo: a ideia de que tudo pertence a mim e eu tenho que agarrá-lo - e somos restaurados disso apenas pelo movimento complexo exemplificado pela Eucaristia, onde nos oferecemos e somos aceitos pela oferta de Cristo de Si mesmo.

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Não é que não haja o mal, como algumas pessoas querem que pensemos, inclusive, receio, Teilhard de Chardin; essa é a fraqueza que encontro nele. O mal é muito relevante e o sacrifício tem relação com isso; mas temos que estabelecer a perspectiva em que a ideia de sacrifício não se reduza apenas à de satisfação e expiação do pecado. Temos que nos livrar dessa visão estreita e, por outro lado, temos que nos livrar de um excesso de otimismo que diz que tudo o que temos a fazer agora é tornar cada ação uma oferta alegre. Não, neste mundo Cristo é crucificado, como diz Pascal; o mal é uma presença real, e a ideia sacrificial é que certamente a alegria não pode ser alcançada sem sofrimento; mas o sofrimento exemplificado na Crucificação é em si uma vitória.
 
~ Liturgia e Tradição (1990)

Anátemas no Synodikon a respeito da distinção entre essência e energias em Deus

 
 
Para aqueles que às vezes pensam e dizem que a luz que resplandeceu do Senhor em Sua divina transfiguração é uma aparição, uma coisa criada e um fantasma que aparece por um instante e logo desaparece, e que outras vezes pensam e dizem que esta luz é a própria essência de Deus, e assim se lançam de maneira demente em posições inteiramente contraditórias e impossíveis; a tais homens que, por um lado, delirando com a loucura de Ário, separam a única Divindade e o único Deus em criado e incriado, e que, por outro lado, estão enredados na impiedade dos messalianos que afirmam que a Divina essência é visível e que, além disso, não confessam, de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e a mente piedosa da Igreja, que essa luz supremamente divina não é uma coisa criada, nem a essência de Deus, mas é graça, iluminação e energia naturais e incriadas que procedem eterna e inseparavelmente da própria essência de Deus,

Anátema (3)

Novamente, para aqueles mesmos homens que pensam e dizem que Deus não tem energia natural, mas nada mais é que essência, que supõem que a essência divina e a energia divina são inteiramente idênticas e indistinguíveis e sem diferença apreensível entre elas; que chamam a mesma coisa ora essência e ora energia, e que insensatamente abolem a própria essência de Deus e a reduzem ao não-ser, pois, como dizem os mestres da Igreja, 'só o não-ser é privado de uma energia', a esses homens que pensam como Sabélio, e que ousam agora renovar sua antiga contração, confusão e coalescência das três Hipóstases da Divindade sobre a essência e a energia de Deus, confundindo-as de uma maneira igualmente ímpia; a esses homens que não confessam de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e a mente piedosa da Igreja, que em Deus há essência e energia natural essencial, como muitos dos santos, e especialmente todos aqueles que se reuniram no Sexto Concílio Ecumênico, explicaram claramente a respeito das duas energias de Cristo, tanto divina quanto humana, e Suas duas vontades; para aqueles que de modo algum desejam compreender que, assim como há uma união inconfundível da essência e da energia de Deus, também há uma distinção indivisa entre elas, pois, entre outras coisas, a essência é causa enquanto a energia é efeito, a essência sofre nenhuma participação, enquanto a energia é comunicável; para eles, portanto, que professam tais impiedades,

Anátema (3)

Novamente, para aqueles mesmos homens que pensam e dizem que todo poder e energia natural da Divindade Tri-hipostática é criado e, portanto, são constrangidos a acreditar que a própria essência de Deus também é criada, pois, de acordo com os santos, a energia criada evidencia uma natureza criada, enquanto a energia incriada designa uma natureza incriada; a esses homens que, em consequência, correm o risco de cair no completo ateísmo, que fixaram a mitologia dos gregos e o culto das criaturas à fé pura e imaculada dos cristãos e que não confessam, de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e a mente piedosa da Igreja, que todo poder e energia natural da Divindade Tri-hipostática é incriado,

Anátema (3)

Novamente, para aqueles mesmos homens que pensam e dizem que através dessas doutrinas piedosas uma composição é introduzida em Deus, pois eles não observam o ensino dos santos, de que nenhuma composição ocorre em uma natureza a partir de suas propriedades naturais; a tais homens que, assim, lançam falsas acusações não apenas contra nós, mas contra todos os santos que, com muita lucidez e em muitas ocasiões, reafirmaram com muita clareza tanto a doutrina da simplicidade e falta de composição de Deus quanto a distinção da essência e energia divinas, de tal maneira que essa distinção de forma alguma destrua a simplicidade divina, pois, caso contrário, eles contradiriam seus próprios ensinamentos; para aqueles, portanto, que falam essas palavras vazias e não confessam de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e a mente piedosa da Igreja, que a simplicidade divina é mais excelentemente preservada nesta distinção digna de Deus,

Anátema (3)

Novamente, para aqueles mesmos homens que pensam e dizem que o nome 'Divindade' ou 'Deidade' pode ser aplicado apenas à essência de Deus, mas que não confessam de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e da mente piedosa da Igreja, que esta denominação pertence igualmente à energia divina, e que assim uma [só] Divindade do Pai, Filho e Espírito Santo é por todos os meios ainda professada, quer se aplique o nome 'Divindade' à Sua essência, ou à Sua energia, como os expositores divinos dos mistérios nos instruíram,

Anátema (3)
 
Mais uma vez, para aqueles mesmos homens que pensam e dizem que a essência de Deus é comunicável, e que assim sem vergonha se esforçam para introduzir sutilmente em nossa Igreja a impiedade dos messalianos, que antigamente padeciam da doença desta mesma opinião, e que assim não confessam de acordo com as teologias divinamente inspiradas dos santos e a mente piedosa da Igreja, que a essência de Deus é totalmente inapreensível e incomunicável, enquanto a graça e a energia de Deus são comunicáveis,

Anátema (3)

~ Do Concílio de Constantinopla realizado em 1341

Dumitru Staniloae sobre o filioque

 

A doutrina católica sobre a processão do Espírito Santo do Pai e do Filho como de um único princípio — que foi formulada com a intenção de fortalecer a comunhão entre o Pai e o Filho — ofende os dois pontos acima tratados: a generosa extensão do amor entre Pai e Filho, e a preservação de sua distinção como pessoas, particularmente no caso da pessoa do Espírito Santo.

Ao enfatizar o amor entre o Pai e o Filho a ponto de confundi-los em um único princípio da processão do Espírito Santo, a teologia católica não os vê mais como pessoas distintas. Mas o efeito disso é tornar impossível até mesmo o amor entre eles, pois, como no ato da processão do Espírito Santo, eles não existem mais como duas pessoas, Pai e Filho não podem mais se amar propriamente falando. Além disso, a existência do Espírito como terceiro, ou seu papel como aquele que mostra a grandeza do amor entre Pai e Filho e que preserva sua distinção como pessoas, deixa de ter qualquer objeto. Nesse mal-entendido da Trindade, o Espírito Santo não é mais, estritamente falando, o terceiro, mas o segundo. Ele aparece mais como aquele que afoga os dois numa unidade indistinta. E se, para ser a causa comum da processão do Espírito Santo, os dois se afogam de fato em algum todo indistinto, então o Espírito – como aquele que resulta desse todo indistinto – também não pode ser pessoa.

(...)

São Gregório Palamas diz: “[O Espírito] pertence também ao Filho que o possui do Pai como Espírito de verdade, sabedoria e palavra... uma Palavra que se alegra com o Pai que se alegra nele... pois esta alegria pré-eterna do Pai e do Filho é o Espírito Santo, na medida em que lhes é comum pela mútua intimidade. Portanto, ele é enviado aos dignos, por ambos, mas em seu vir a ser ele pertence somente ao Pai e, assim, ele também procede somente dele em sua maneira de vir a ser”.

É neste sentido que o Espírito Santo une Pai e Filho, mas sem deixar de ser uma pessoa distinta e sem proceder também do Filho. Este é o sentido em que o Espírito é também “o Espírito do Filho”, mas neste resplendor do Espírito de si mesmo o Filho permanece Filho e não se torna Pai do Espírito. O Espírito não é ele mesmo a alegria. Ele é aquele que, participando da alegria que o Pai tem no Filho e o Filho tem no Pai, manifesta em sua plenitude a alegria que um tem no outro, ou a alegria que os três têm entre si. Assim observa Santo Atanásio: “O Senhor disse que o Espírito é o Espírito da Verdade e o Consolador; com isso mostrou que nele está a Trindade perfeita”.

~ A Experiência de Deus: Teologia Dogmática Ortodoxa, volume 1.

A distinção entre essência e energias de Deus em Lossky e Staniloae

 
Jonas Eklund

Meu artigo explicará, analisará e discutirá a distinção essência/energias em Vladimir Lossky e Dumitru Stăniloae. Esses dois teólogos ortodoxos excepcionalmente reconhecidos contribuíram com entendimentos distintos dessa doutrina. No entanto, apesar de seu novo compromisso patrístico compartilhado e ortodoxo, suas posições não são facilmente harmonizadas. O artigo tratará da distinção essência/energias e, consequentemente, se deterá nas questões das definições de essência e energias de Deus e da relação entre elas. Em grande parte ao apresentar outros aspectos dessa distinção, espero que meu estudo possa inspirar novas discussões sobre, por exemplo, se as noções de Lossky e Stăniloae são igualmente válidas como as definições da doutrina ortodoxa e em que medida elas refletem as posições de São Gregório Palamas e os chamados Concílios palamitas do século XIV. Em primeiro lugar, tratarei de Lossky e depois de Stăniloae, e depois de uma seção comparativa, concluirei com uma avaliação.
 
Para Vladimir Lossky, a distinção essência/energias é uma distinção real em Deus, independente da criação, entre dois modos de existência, sendo a essência o repouso absoluto tri-unitário, enquanto as energias contêm todas as manifestações de Deus, ambas eternas e no tempo. Como toda doutrina de Deus, afirma Lossky, a distinção essência/energias só pode ser expressa em termos de uma antinomia. Para ele, uma antinomia é a combinação de duas afirmações igualmente verdadeiras, mas [aparentemente] contraditórias - o que nos coloca diante de um certo mistério divino e nos afasta do pensamento conceitual para a união com Deus. Sem antinomia, ficaremos com os conceitos racionais das doutrinas e talvez nunca cheguemos a nenhuma experiência real de Deus.

De acordo com seu método antinômico, Lossky tende a empurrar as formulações das doutrinas em contradições tão agudas quanto possível. Assim, ele afirma que, embora realmente tenhamos a promessa de nos tornarmos participantes da natureza divina, essa natureza é de fato imparticipável. Portanto, somos compelidos a reconhecer uma distinção inefável que pode explicar a acessibilidade da natureza inacessível, e esta é a distinção
“entre a essência de Deus ou sua natureza propriamente dita, que é inacessível, incognoscível e incomunicável, e as energias ou operações divinas, forças próprias e inseparáveis ​​da essência de Deus, nas quais ele sai de si mesmo, se manifesta, se comunica e se doa”.
Assim, a promessa de participação na natureza divina não é, na verdade, sobre a participação na natureza de Deus propriamente dita [isto é, sua essência], mas sim sobre a participação em suas energias.

No entanto, mesmo que isso resolva a antinomia, como Lossky escreve, ele o faz sem suprimi-la, já que a inefável distinção essência/energias preserva intacto o mistério. Com o cuidado de preservar o mistério antinômico, Lossky afirma repetidamente ao mesmo tempo a distinção radical e a unidade radical entre a essência e as energias. Em um dos exemplos mais claros disso, ele escreve que “em comparação com o disco solar e seus raios, a distinção entre essência e energias é mais radical, e ao mesmo tempo sua unidade é infinitamente maior, até o ponto de identidade”. Lossky geralmente é relutante em explicar sua concepção da essência de Deus, mas ocasionalmente ele é bastante claro. Para ele, a essência de Deus é o repouso absoluto, no qual Deus não se manifesta de forma alguma, nem para si mesmo nem para os outros. Cada movimento de Deus, como a vida, os pensamentos, as idéias, a verdade, a sabedoria e o amor, é atribuído às energias, que são posteriores à essência e são suas manifestações naturais, mas são externas ao próprio ser da Trindade. Assim, para Lossky, mesmo o amor intertrinitário de Deus é uma energia externa. “Dizer: 'Deus é amor' – as Pessoas divinas estão unidas pelo amor mútuo – é pensar em uma manifestação comum: a energia do amor possuída pelas três hipóstases. Pois a união dos três é ainda mais elevada do que o amor.”

Além disso, Lossky afirma que a essência de Deus é por definição incomunicável e de fato não tem precedência na criação. A Trindade - embora não sua sua essência - habita na criação por meio de suas energias, que são comunicáveis ​​e que, em sua comunicação com o mundo, são idênticas à graça. Assim, parece haver um limite absoluto entre a essência e as energias que não pode ser comprometido, como Lossky escreve: “Deus não é limitado por sua essência. Ele é mais do que essência, existindo tanto em sua essência quanto fora de sua essência, e suas energias são externas à essência, como outro modo de existência”. Para Lossky, é assim que a essência pode permanecer incomunicável, enquanto a Trindade está presente na criação por meio de suas energias.

No entanto, não devemos esquecer que o limite aparentemente absoluto entre a essência e as energias é complementado pelas afirmações de Lossky sobre a indeterminação e o ilimitado da essência e sua identidade virtual com as energias. Assim, embora a distinção essência/energias seja real e eterna, é antinômica e, como tal, inefável.

Para Dumitru Stăniloae, por outro lado, a distinção essência/energias é a distinção entre o ser de Deus e sua vida e atividade em relação à criação, ou, como concluirei, Deus como ele é em e para si mesmo, e Deus como ele está na e para a criação. Em comum com outros teólogos romenos, Stăniloae usa “ser” e “essência” alternadamente como traduções de ousia. Com o ser ou essência de Deus, ele pretende o amor intertrinitário em comunidade. No entanto, a essência de Deus subsiste apenas nas Pessoas encontradas em comunidade [isto é, a Trindade]. Assim, escreve ele, “a essência é uma comunidade de sujeitos que são totalmente transparentes”. No entanto, embora Stăniloae tenha uma noção bastante clara do conceito da essência de Deus, ele é inflexível que talvez nunca saibamos o que essa essência realmente é, uma vez que transcende todos os nossos conceitos e possibilidades de compreensão.

No entanto, Stăniloae identifica recorrentemente a essência de Deus com o amor em comunidade das Pessoas divinas. É o ato eterno, escreve ele, no qual eles se afirmam reciprocamente na existência por meio do amor perfeito e comunicam seu próprio ser um ao outro sem se misturar [confundir]. No entanto, uma vez que eles estão dentro do mesmo movimento integral de sair totalmente um para o outro, eles podem ser considerados imóveis e estáveis.
"No mais alto nível divino, a diferença entre natureza e energia é superada de uma forma incompreensível para nós. A própria natureza divina é energia, mas é assim porque é das Pessoas supremas. As Pessoas comunicam sua natureza como uma energia. Tudo é uma energia que se comunica de uma Pessoa para outra. O amor deles é perfeito. Eles irradiam toda a sua natureza de um para o outro."
Stăniloae afirma assim uma identidade entre natureza e energia em Deus. Tudo o que é comunicado de Pessoa a Pessoa é uma energia, mas somente dentro de Deus a essência pessoal é totalmente comunicada. Em nenhum outro caso uma essência pessoal é totalmente comunicada, incluindo a comunicação de Deus para com a criação. Portanto, a essência de Deus não é idêntica ao que ele comunica de si mesmo para a criação, que são suas operações.

Para Stăniloae, a conquista da doutrina das operações de Deus ou energias incriadas é que ela consegue levar
“a sério o fato de que Deus tem um caráter pessoal e, como tal, pode, como qualquer pessoa, viver em mais de um plano, ou melhor, em dois planos principais: o plano de existência em si mesmo e o plano da atividade para o outro. Uma mãe, por exemplo, pode brincar com seu filho, rebaixando-se ao nível dele, mas ao mesmo tempo preserva sua consciência madura de mãe”.
Assim, para Stăniloae, a distinção essência/energias é a distinção entre existência em si mesmo e atividade para o outro. No entanto, como essa atividade para o outro é realmente a vida e a presença pessoal e ativa de Deus em relação à criação, a maneira mais reveladora de expressar a noção de Stăniloae sobre as operações de Deus, penso eu, é Deus como é na e para a criação, em distinção a Deus como é em e para si, isto é, sua essência.

Obviamente, a essência e as energias de Deus não são idênticas para Stăniloae, mas ainda assim estão intimamente conectadas. O amor que as Pessoas divinas transmitem aos humanos provém do próprio amor pelo qual se amam. Assim escreve: "O amor interior da Trindade pode ser percebido na obra que dirige ad extra". Conseqüentemente, por meio de suas energias, "Deus torna algo de seu ser evidente para nós" e nos comunica de modos adaptados à nossa condição, algo do que ele é de fato. Portanto, embora não possamos expressá-lo adequadamente, nosso conhecimento dele não é de forma alguma oposto a Deus entendido em si mesmo.

Deve ser bastante óbvio agora que Lossky e Stăniloae concebem a distinção essência/energias de maneiras diferentes. Enquanto Lossky o concebe como uma distinção eterna e real dentro de Deus, independente da criação, entre o repouso absoluto tri-unitário e suas manifestações, Stăniloae o concebe como a distinção entre Deus como ele é em e para si e Deus como ele é na e para a criação.

Justificando sua posição, Lossky coloca como antítese a suposta noção filosófica ocidental que, segundo se diz, sustenta que “tudo o que é Deus é a própria essência de Deus”. Como consequência dessa opinião errônea, afirma Lossky, a graça teria que ser a própria essência divina ou um efeito criado que Deus produz em nossa alma. Para ele, tudo o que procede da essência de Deus ou a encontra necessariamente será ou se tornará também a essência divina. Portanto, ele precisa da distinção essência/energias para salvaguardar tanto o abismo entre a essência de Deus e a criação, quanto a condição para a possibilidade do ato de criação de Deus, a presença de Deus na criação e a participação real das criaturas em Deus. Para Lossky, a participação na natureza divina não significa nada mais do que uma participação real em Deus, ou seja, no único modo de existência em Deus que é participado, a saber, as energias. No entanto, ele está convencido de que a natureza de Deus propriamente dita é inacessível, incognoscível e incomunicável. Assim, para afirmar a expressão bíblica e patrística de nossa participação na natureza divina, ele aceita como forma de falar a suposta noção ocidental de que “tudo o que é Deus é a natureza de Deus”, embora essa posição, segundo ele alega, seja totalmente imprecisa.

Inclinado a pensar em opostos, Lossky insinua que é preciso escolher entre esses dois entendimentos opostos da essência de Deus. No entanto, esta dicotomia é evidentemente falsa, pois Stăniloae, como vimos, apresenta uma terceira opção, uma opção que também consegue dar conta da atividade criadora de Deus e da participação real da criatura em Deus. Stăniloae entende a essência de Deus nem como “tudo o que é Deus” nem como um modo de existência absolutamente imóvel, eterna e realmente distinto de qualquer tipo de movimento e manifestação em Deus.

Em vez disso, ele entende a essência de Deus precisamente como o movimento e a manifestação eterna das Pessoas divinas nas quais elas se doam totalmente umas às outras. Nesse amor intertrinitário, além disso, todos os atributos divinos estão implícitos. Assim, a essência de Deus é “tudo o que Deus é” como considerado à parte da criação, ou em outras palavras, Deus como ele é em e para si mesmo, em distinção de Deus como ele é na criação e para a criação.

Para Stăniloae, a condição para a possibilidade da criação e sua participação real em Deus encontra-se na própria essência de Deus, ou seja, na comunidade amorosa intertrinitária. Assim, como o amor intertrinitário implica movimento, é condição para a possibilidade do tempo, e como implica alteridade, é condição para a possibilidade do espaço. A criação surge em um evento de uma só vez, à medida que Deus produz essa intenção, de uma só vez dentro de si mesmo. Stăniloae não precisa de nada entre a essência de Deus e a criação para manter o abismo, porque, embora Deus esteja presente para nós como ele é, ele não se comunica em sua totalidade, mas vem ao nosso encontro em nosso próprio nível. Pois como ele é um ser pessoal, ele pode viver tanto no plano de existência em si mesmo quanto no plano de atividade para outro. Além disso, como a união entre as pessoas implica alteridade por definição, não há risco de qualquer mistura ou identificação que Lossky teme. Consequentemente, na união com Deus, escreve Stăniloae, nossa natureza não se torna a natureza divina porque nosso olho criado não se torna o olho divino. A fronteira da pessoa nunca pode ser dissolvida.

Assim, para Stăniloae, a pessoalidade é o que mantém o abismo ontológico entre a essência de Deus e a criação. Como toda pessoa é apofática de maneira geral e por excelência, a suprema Personalidade de Deus é o que garante seu total apofatismo.

Na avaliação, tanto Lossky quanto Stăniloae apresentam poderosas visões teológicas que são sistematicamente elaboradas e bastante coerentes. No entanto, minha preferência é por Stăniloae, principalmente por três razões. Primeiro, Lossky não explica como a distinção essência/energias pode ser mantida dentro de Deus, independente da criação. No entanto, essa lacuna se deve, é claro, à sua relutância em abordar a vida interna de Deus a não ser como um mistério antinômico e inefável. No entanto, pergunta-se como Deus pode se manifestar fora ou além de sua essência, se a criação já não existisse. Como o próprio Lossky reconhece, tais expressões são realmente inadequadas, pois o “fora” em questão só começa a existir com a criação.

Em segundo lugar, em contraste com Lossky, Stăniloae consegue explicar a noção patrística oriental para deificação sem ter que especular sobre uma distinção sobre como Deus é considerado separado da criação, que é um domínio do qual nosso conhecimento, de acordo com a tradição ortodoxa, é bastante restrito.

Terceiro, em nossa era ecumênica, a posição de Stăniloae tem a vantagem, ou talvez a desvantagem, dependendo de suas inclinações, de ser mais provável para atrair cristãos de outras denominações como a interpretação da doutrina de Lossky pode parecer, tanto para orientais quanto para ocidentais, um tanto quanto especulativa demais em comparação com os testemunhos bíblicos e patrísticos.

Sobre o sacrifício eucarístico e o que é sacrificado


São Nicolau Cabasilas

Quanto ao próprio sacrifício, há uma questão que merece ser considerada. Já que não estamos preocupados com um mero sacrifício figurativo ou derramamento de sangue simbólico, mas com um verdadeiro holocausto e sacrifício, devemos nos perguntar o que é que é sacrificado: é o pão ou o Corpo de Cristo? Ou, dito de outra forma, as ofertas são sacrificadas antes da consagração ou depois?

Se é o pão que é sacrificado, devemos nos perguntar como isso pode ser. Certamente, os santos mistérios não consistem em ajudar no sacrifício de pão, mas sim do Cordeiro de Deus, que com sua morte tirou os pecados do mundo.

No entanto, por outro lado, parece impossível que seja o Corpo do Senhor que é sacrificado. Pois este Corpo não pode mais ser morto ou ferido, visto que, agora um estranho à sepultura e à corrupção, ele se tornou imortal. E mesmo se não fosse impossível que sofresse novamente, teria que haver algozes para realizar a crucificação, e todos os outros elementos que estavam presentes naquele sacrifício - isto é, se fosse um verdadeiro sacrifício, e não simplesmente uma representação.

Como então pode ser isso, visto que Cristo, sendo ressuscitado dos mortos, não morre mais? Ele sofreu uma vez no tempo; ele foi oferecido uma vez para carregar os pecados de muitos. No entanto, se ele é sacrificado em cada celebração dos mistérios, ele morre diariamente.

Existe uma resposta para esses problemas? Sim: o sacrifício não se realiza nem antes nem depois da consagração do pão, mas no próprio momento da consagração. É necessário, portanto, preservar todos os ensinamentos de nossa fé a respeito do sacrifício, sem negligenciar nenhum. Quais são esses ensinamentos? Em primeiro lugar, que este sacrifício não é uma mera figura ou símbolo, mas um verdadeiro sacrifício; em segundo lugar, que não é o pão que é sacrificado, mas o próprio Corpo de Cristo; terceiro, que o Cordeiro de Deus foi sacrificado apenas uma vez, para sempre.

Agora vejamos se a liturgia é um verdadeiro sacrifício, e não apenas uma representação.

O sacrifício de uma ovelha consiste na mudança de seu estado; é mudado de uma ovelha não sacrificada para uma sacrificada. O mesmo vale aqui; o pão é transformado de pão não sacrificado em algo sacrificado. Em outras palavras, é alterado do pão comum não sacrificado para o próprio Corpo de Cristo que foi verdadeiramente sacrificado. Por meio dessa transformação, o sacrifício é verdadeiramente realizado, assim como o das ovelhas quando foi mudado de um estado para outro. Pois houve no sacrifício uma transformação não no símbolo, mas na realidade; uma transformação no Corpo sacrificado do Senhor.

Se fosse o pão que, restando pão, fosse sacrificado, seria o pão que seria imolado, e a imolação do pão seria então o sacrifício.

Mas a transformação foi dupla; o pão, de não ser sacrificado, tornou-se uma coisa sacrificada e também foi transformado de um simples pão no Corpo de Cristo. Segue-se, portanto, que esta imolação, considerada não como a do pão, mas como a do Corpo de Cristo, que é a substância que está sob a aparência do pão, é verdadeiramente o sacrifício não do pão, mas do Cordeiro de Deus, e é justamente assim chamado.

Agora está claro que, sob essas condições, não é necessário que haja numerosas oblações do corpo do Senhor. Visto que o sacrifício consiste, não na imolação real e sangrenta do Cordeiro, mas na transformação do pão no Cordeiro sacrificado, é óbvio que a transformação ocorre sem a imolação sangrenta. Assim, embora o que é mudado seja muito, e a transformação aconteça muitas vezes, nada impede que a realidade em que é transformado seja uma e a mesma coisa sempre - um único Corpo e o único sacrifício desse Corpo.

A modernidade e as tentações de Cristo




Pe. Stephen Freeman

Se prestei um desserviço à modernidade, pode ter sido ao dar a impressão de que suas tentações podem ser algo novo. Na verdade, não há nada particularmente novo na filosofia da modernidade além de sua peculiar montagem de velhas idéias e a captura da cultura geral como sua serva. Vale a pena considerar como certas tentações importantes foram forjadas em virtudes culturais em nosso mundo moderno. Exemplos podem ser vistos particularmente nas três tentações que Cristo suportou no deserto.

A primeira tentação foi transformar pedras em pão. Cristo jejuou por quarenta dias e “estava com fome” de acordo com as Escrituras. O diabo sugere a Ele que transforme pedras em pão. Cristo não foi o primeiro nem o último a experimentar a fome humana. Também não foi a última vez na história do evangelho que a tentação do pão surgiria. Após o milagre dos Cinco Pães, Jesus viu que a multidão o havia seguido até Cafarnaum. Ele disse:

“Em verdade, em verdade vos digo que me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comeste os pães fartos. Trabalhem não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará. Pois nele Deus o Pai pôs o seu selo”. João 6:26-27

No século 19, Dostoiévski assumiu o problema do “pão”. Na famosa “parábola” do “Grande Inquisidor”, Jesus retornou à Terra durante a Inquisição Espanhola. Ele é preso (tendo ressuscitado um homem dos mortos). O Inquisidor (que decidiu queimar Cristo na fogueira) o provoca com o problema do pão. Ele lembra a Cristo da conversa com o diabo no deserto:

“Mas você vê essas pedras neste deserto seco e estéril? Transforme-os em pão, e a humanidade correrá atrás de você como um rebanho de ovelhas, agradecido e obediente, embora sempre tremendo, para que você não retire a mão e lhes negue o seu pão”. Mas você não privaria o homem da liberdade e rejeitaria a oferta, pensando: de que vale essa liberdade se a obediência se compra com pão? Você respondeu que o homem não vive só de pão. Mas você sabe que por causa desse pão terreno o espírito da terra se levantará contra Ti e lutará contigo e te vencerá, e todos o seguirão [Satanás], clamando: “Quem pode comparar com esta besta? Ele nos deu fogo do céu!” Você sabe que as eras passarão, e a humanidade proclamará pelos lábios de seus sábios que não há crime e, portanto, não há pecado; só há fome? “Alimente os homens e depois peça-lhes virtude!” isso é o que eles escreverão na bandeira, que eles levantarão contra Ti, e com a qual eles destruirão o Teu templo.

Na segunda tentação, Jesus é instado a se jogar do Templo e deixar que os anjos O salvem – demonstrando assim Sua divindade. É a tentação que todos nós enfrentamos de tempos em tempos, quando perguntamos: “Por que Deus não intervém [agora!]?" Desprezamos a “fraqueza” de Deus e zombamos dEle, ao mesmo tempo que desprezamos nossa própria fraqueza e nos tornamos vulneráveis ​​a todo vendedor ambulante de sucesso que nos promete compartilhar de seus segredos.

A Última Tentação é talvez a maior e a que mais atormenta nossos pensamentos modernos. A Cristo são oferecidos os “reinos deste mundo” se Ele adorar o tentador. É a tentação do poder. E se você tivesse todo o poder? Que coisas maravilhosamente boas você poderia fazer?

Um lugar onde esse diálogo interno ocorre é na compra de um bilhete de loteria. A Powerball se aproxima de meio bilhão de dólares e o ingresso custa apenas alguns dólares. A compra é feita (por que não? não há mandamento contra isso) e fica quieta no nosso bolso. Os pensamentos começam. Você sabe que as probabilidades estão ridiculamente contra você, mas não consegue deixar de imaginar como seria a vida se você ganhasse. “Se eu fosse um homem rico…” Já me disseram inúmeras vezes: “Se eu ganhar na loteria, darei o dinheiro para um novo prédio da igreja”. Claro. Nós mantemos apenas uma pequena porção, digamos algumas dezenas de milhões para nós mesmos. Com o resto, vamos construir um mundo melhor, talvez criar uma fundação de caridade (como um Bill Gates). Continuamos meditando.

O mantra da modernidade, “tornar o mundo um lugar melhor”, é invocado repetidamente de uma forma ou de outra. Cada invocação promete que, com dinheiro e poder, podemos realmente fazer a diferença. O mito (ou mentira) que isso perpetua é que a única coisa entre nós e um mundo melhor é a falta de recursos. A verdade é que, no momento atual em nossa era moderna, não faltam recursos, não faltam riquezas. A abundância do mundo está transbordando. As pessoas estão famintas e sofrendo, etc., por falta de bondade. Tem sido observado por alguns que toda fome em nossos tempos modernos teve a política como sua causa principal. Não somos vítimas da natureza – mas uns dos outros.

É claro que é irônico que Satanás ofereça a Cristo “todos os reinos deste mundo”. Como você oferece ao Senhor de Tudo algo que já não é Dele? Ele os recusa (pelo menos quando oferecidos nos termos do diabo). O caminho de Cristo é o caminho de Deus – é o caminho revelado na cruz. O mundo será salvo no mistério da Cruz, o amor abnegado de Deus. Não apenas o mundo é salvo dessa maneira, mas aqueles que estão sendo salvos são convidados a participar dessa salvação – esvaziar-se em amor abnegado. Essa é a descrição adequada da Igreja, embora seja frequentemente recusada e substituída por um esforço para ser uma organização de “ajuda”, um complemento religioso ao projeto de construção de um mundo melhor da modernidade.

O mundo moderno, por meio de sua aquisição de tecnologia e da riqueza que a acompanha, por meio do desenvolvimento de instituições democráticas e liberdades concomitantes, ganhou na loteria (ou assim imaginamos). Temos riqueza e poder ao nosso alcance – de fato, agora temos todos os reinos deste mundo. Atualmente, jogamos trilhões de dólares em problemas sem pensar muito. O mundo não é melhor como resultado. Nossa cultura recentemente se envolveu em uma orgia de gastos e nos odiamos. Mais do mesmo medicamento só produzirá o mesmo resultado.

Enquanto Roma se posicionava e ameaçava Jesus, dizendo-lhe que tinha o poder de matá-lo ou libertá-lo, ele esperou pacientemente pela crucificação que sabia que viria. “Você não poderia fazer nada se não tivesse sido dado a você de cima”, Ele diz a Pilatos. Deus está encarregado do resultado da história, pura e simplesmente. Ele, no entanto, entrou na própria história, não como seu Mestre e Construtor, mas como seu Salvador. A salvação é um modo de vida, andar no caminho da cruz.

Quando escrevo sobre as questões da modernidade, continuamente nos aponto de volta para a Cruz. Jesus teve uma famosa conversa com um jovem rico, no final da qual Ele disse: “Se você quer ser perfeito, venda o que você tem, dê aos pobres e venha e siga-me”. Imaginei o jovem rico como um homem moderno. Ele responde: “Bem, posso ficar com meu dinheiro se prometer usá-lo apenas para o bem?” O poder da modernidade (sua riqueza, sua tecnologia, sua política, sua filosofia de liberdade individual etc.) é a matéria de que são feitos os sonhos. Estranhamente, descobrimos que todo esse poder nos mantém acordados à noite, ansiosos e doentes. O jovem rico rejeitou a oferta de se tornar um deus (um santo semelhante a Cristo) para se tornar um gerente. Essa é a doença de nossa época.

Estamos inundados nas tentações de nossa época (que não são novas tentações, a não ser no escopo imaginado de sua possibilidade). Resta a nós, como seguidores de Cristo, fazer a “próxima coisa boa” na pequenez de nossas vidas, esvaziando-nos diante dessas tentações com a confiança de que Cristo já caminhou assim antes. A Cruz parece vazia, fraca e tola. Aceitá-la como um modo de vida convida as provocações de outros que nos acusarão de não querer fazer do mundo um lugar melhor. Eles não entendem que para o mundo ser salvo ele deve passar pelo buraco de uma agulha. Essa jornada exige que nos tornemos realmente pequenos.

Confiar em Deus em vez de buscar milagres



Na entrevista a seguir, Roman Gultyaev fala com o Arquimandrita Isidore (Minaev), Chefe da Missão Eclesiástica Russa em Jerusalém, sobre a descida do Fogo Sagrado no Sábado Santo.

Pe. Isidoro, os peregrinos da Terra Santa costumam fazer perguntas sobre os milagres que acontecem aqui. O mais importante entre eles é o milagre da descida do Fogo Sagrado. Muitos peregrinos se esforçam para vir aqui na Páscoa especificamente para estar na Igreja do Santo Sepulcro no Grande Sábado.

Um peregrino escreve: “Minha filha e eu viemos para a Páscoa para ver o Fogo Sagrado. Para nossa grande decepção, porém, não conseguimos estar presentes na descida do Fogo. Chegamos à Igreja do Santo Sepulcro na Sexta-feira Santa, tomamos nossos lugares e passamos quase vinte e quatro horas lá. Mas quando amanheceu, soldados israelenses nos forçaram não apenas a deixar a igreja, mas também a deixar a Cidade Velha. Tendo perdido nossa chance de participar da graça do Fogo Sagrado, voltamos para casa de mãos vazias. Diga-nos, Pe. Isidore, como vamos conseguir ver o Fogo da próxima vez? Isso é ao mesmo tempo uma pergunta, uma decepção e uma queixa.

Eu responderia a isso da seguinte forma: Agora, após décadas de supressão da fé na Rússia, a vida espiritual começou a reviver um pouco. Tornou-se acessível a todos, mas muitos fiéis não possuem uma cultura de igreja. É certo que devemos tentar venerar as coisas sagradas, ir à igreja, participar da celebração das festas e fazer peregrinações. Tudo isso está correto. Mas aqueles que não têm uma cultura de igreja misturam muitas coisas. Por exemplo, eles querem se confessar em um dia de festa patronal, o que é inadmissível. Em um dia de festa patronal, precisamos celebrar um belo serviço divino, participar dos Santos Mistérios de Cristo, receber convidados e conversar com os peregrinos e a imprensa. Não há como confessar uma multidão de paroquianos. As pessoas simplesmente não entendem isso, e isso é um sinal claro da ausência de cultura espiritual.

Os novos cristãos têm muitos desejos e ilusões estranhos e exaltados. Por exemplo, eles pensam: “Seria bom casar em Jerusalém, e é melhor ser batizado no Jordão.” Mas isso é chamado de mau gosto espiritual. Deve-se casar e batizar na própria igreja paroquial, como era antes da revolução. Naqueles dias os casamentos eram feitos apenas na paróquia do noivo ou da noiva, em que eram registrados. É a mesma coisa para as festas da Páscoa e da Natividade. Estes devem ser observados no próprio local – afinal, há pessoas que precisam de nossos cuidados: idosos, crianças, presos e doentes. Desta forma, as festas são tranquilas e pacíficas. Eles não devem ser sobrecarregados por viagens, peregrinações ou assuntos domésticos difíceis. Nas nossas paróquias de origem somos mais capazes de rezar pacificamente, sem ter que lidar com as surpresas perturbadoras que vêm com as viagens. É uma convicção pseudo-eclesiástica contemporânea que se deve ir a algum lugar em dias de festa, juntar-se à multidão, entrar no meio das coisas. Quem decide fazer isso deve esperar se decepcionar.

Os meios de transporte modernos permitiram-nos viajar rápida e livremente por todo o mundo. Mas devemos usar de discernimento, como nos aconselham os Santos Padres da Igreja. A alegria pascal é sobretudo silenciosa. No silêncio do Sábado Santo recordamos Cristo deitado no sepulcro. Neste dia cantamos: “Cale-se em silêncio toda a carne mortal, e permaneça com temor e tremor; não se lembre em si mesmo de nada nesta terra.” Este deve ser o nosso objetivo. Mas ir para algum lugar antes da Páscoa, para outro país, onde teremos que passar pela alfândega, pegar um hotel, pegar ônibus, lidar com diferentes climas e fusos horários, e uma multidão de necessidades semelhantes…?

A Igreja do Santo Sepulcro não é tão grande (muitas cidades provinciais russas têm catedrais muito maiores), mas todos querem entrar: gregos, árabes, armênios, georgianos e peregrinos de toda a Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, e América. Todos eles vêm, mas apenas um certo número de pessoas pode entrar. No ano passado, por exemplo, a Missão Eclesiástica Russa recebeu cerca de 200 passes, e estes foram distribuídos entre os representantes de várias dioceses que vieram para o Fogo Sagrado, colaboradores da missão, funcionários diplomáticos, benfeitores, hierarcas, sacerdotes, responsáveis pelos assuntos eclesiásticos e representantes da imprensa. Claro que não havia mais passes para nossos simples peregrinos.

Não considero necessário viajar até os confins da terra para uma graça especial em um dia de festa. Deve-se encontrar a Páscoa em casa. Pode-se venerar mais pacificamente os lugares da Terra Santa em outros dias, quando há menos tentações e causas de estresse. Além disso, esta é uma maneira maravilhosa de prolongar a festa da Santa Ressurreição de Cristo. Afinal, podemos cantar “Cristo ressuscitou” em qualquer dia do ano quando estivermos diante do Túmulo Doador de Vida do Senhor.

Pe. Isidoro, mas o Fogo Sagrado desce apenas uma vez por ano, nomeadamente na Páscoa Ortodoxa. Muitos viajam para Jerusalém especificamente para ver este milagre. O que poderia ser mais atraente para os peregrinos do que o Fogo Sagrado?

Isso realmente atrai tanto o peregrino comum quanto o “exaltado”. No entanto, ao mesmo tempo, nossos grandes santos, Sérgio de Radonej e Serafim de Sarov, não pensaram no Fogo Sagrado, servindo em seu skete ou no mosteiro, conforme prescrito pelo Typikon da Igreja. Devemos entender que o propósito da vida cristã, assim como a alegria da Igreja cristã, é acima de tudo estar unido a Deus. E isso é possível através de boas ações, através do perdão de ofensas e através do sacrifício, seja por algo trazido à igreja ou dado a um pobre. É possível através das boas obras, da oração e dos Mistérios da Igreja. Assim, podemos ter uma igreja em qualquer caverna, em uma floresta isolada, em um deserto, em uma metrópole ou na Antártida. Podemos orar em qualquer lugar.

Por que as pessoas se sentem compelidas a assumir tais esforços, jogando-se tanto física quanto espiritualmente no meio das coisas? Eu realmente não entendo por que um cristão deve a todo custo participar do rito da descida do Fogo Sagrado – ou, como é chamado na tradição grega, o rito da Santa Luz. Eu mesmo, por exemplo, anteriormente não tinha essa intenção; mas agora tenho o dever de estar lá. Mas asseguro-lhe que, se não fosse por esta necessidade, nunca teria passado pela minha cabeça deixar minha própria paróquia ou mosteiro na Páscoa e viajar para algum lugar em busca de uma graça especial.

Mas então, milagres acontecem o tempo todo na Igreja. De manhã, a Eucaristia é celebrada na igreja. Isso é um Mistério. O pão e o vinho são consagrados pelas orações dos fiéis e pela ação sagrada do sacerdote, tornando-se Corpo e Sangue de Cristo. E comungamos desses Mistérios Divinos. O que poderia ser mais elevado do que este milagre? O que poderia nos aproximar mais da comunhão com o Divino do que a Sagrada Comunhão? Está escrito: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele (João 6:56). Visitar Jerusalém e a Igreja do Santo Sepulcro não constitui condição necessária para a salvação. Para muitos, este é um tipo de hobby espiritual ou até mesmo uma curiosidade doentia.

Se nos voltarmos para os teólogos da antiguidade e de nosso próprio tempo, descobriremos que eles explicam que buscar milagres é uma questão de completa ilusão na vida espiritual. Devemos buscar a pureza de coração. Devemos, acima de tudo, buscar o arrependimento e a oração verdadeira e sincera. Devemos procurar alguém a quem possamos ajudar entre os que nos rodeiam, alguém que não esteja tão bem quanto nós. Mas buscar milagres é como pregar peças. Todos os Santos Padres e ascetas nos aconselharam a fugir dos milagres. Somente uma pessoa espiritualmente analfabeta pode correr atrás de milagres.

Considere isto: Quando a Mãe de Deus apareceu a São Sérgio de Radonej, ele caiu de cara no chão e não olhou para ela, pensando que isso era uma ilusão demoníaca, uma tentação demoníaca. Ele se considerava o maior dos pecadores, indigno de uma visão da Pura. Todos os santos fugiram dos milagres, porque se falta a verdadeira humildade, podem ser prejudicados por eles e perecer.

Um certo anacoreta que vivia em algum lugar nas montanhas viu uma vez um caminho para o céu, tecido da luz da lua ou do sol. Ele pensou consigo mesmo: “Quem sou eu, um santo? Eu deveria ver um caminho para o inferno, não para o paraíso.” Mas o asceta, não tendo humildade suficiente, embarcou neste caminho falso, caiu das rochas e foi morto. A vida dos Santos Padres está cheia dessas histórias. Assim, dado o nosso orgulho, a busca de milagres é uma nota falsa; ou melhor, é a imaturidade espiritual ou a vã curiosidade que conduz a pessoa por um caminho falso.

Você sabe que no Sábado Santo há transmissões do Santo Sepulcro que todos assistem. Há uma grande emoção em torno deste evento. Em 2009 ficou claro que o milagre do Fogo Sagrado poderia inspirar uma discussão animada em nossa sociedade. Houve uma massa de artigos sensacionais e apologéticos sobre o tema do Fogo Sagrado. A questão essencial sempre foi esta: este fogo é um verdadeiro milagre ou é um fenômeno natural, feito pelo homem? O que você acha, é certo fazer essa pergunta?

Eu acho que é impróprio fazer esta pergunta a qualquer um. Eu sei que em muitas ocasiões tanto Sua Santidade, o Patriarca Kirill, quanto Sua Beatitude, o Patriarca Teófilo de Jerusalém, foram questionados. Você se lembra de como nos Evangelhos Cristo repreendeu os fariseus que buscavam sinais? Não é isso que se deve buscar. É preciso regozijar-se no Cristo Ressuscitado. A Eucaristia é o grande milagre. Também é impróprio perguntar: “Como o pão se torna o Corpo de Cristo na Eucaristia? E por que não se transforma em carne real e o vinho em sangue óbvio? Afinal, os Santos Dons continuam a aparecer na forma de pão e vinho.”

Aqui na Terra Santa há muitos relatos e tradições variadas. Alguns dizem que é um milagre sobrenatural que ocorre de acordo com o calendário habitual da nossa igreja, e que o próprio fato da descida do Fogo confirma a verdade da Ortodoxia. (Enquanto eu pensava o tempo todo que era a presença do amor que confirma a verdade dos discípulos de Cristo: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros [João 13:35]).

Outros dizem que não há nada de especial no Fogo Sagrado, que é um rito litúrgico onde são lidas orações especiais e uma chama é acesa. Pode-se encontrar uma descrição do serviço no site do Patriarcado de Jerusalém. Entra em detalhes sobre a composição do serviço noturno do Sábado Santo. Em um ponto, foi realizado imediatamente antes das Matinas Pascais. Agora é feito às 14 horas do Sábado Santo, pois se tornou difícil realizá-lo na noite pascal, por causa de todas as pessoas que vêm, aglomerando-se, gritando e empurrando, o que impede a celebração reverente do serviço pascal. Além disso, as pessoas naturalmente se cansam depois de esperar tanto tempo na igreja, e ainda há outro longo e festivo culto noturno por vir.

Minha opinião é neutra. Não estou nada interessado em perguntas sobre tais milagres. No entanto, há outro tipo de milagre que me interessa e fascina. Veja a Rússia, por exemplo. Era um país ateu. Não entendemos como isso aconteceu, mas as pessoas começaram a restaurar igrejas e mosteiros, orando a Deus, batizando seus filhos, frequentando os cultos dominicais e lendo e publicando literatura da igreja. Para mim isso é um verdadeiro milagre. Mais uma vez, o grande milagre é a Eucaristia, que se celebra todos os dias nas nossas igrejas, e que nos une ao próprio Cristo. Ou quando alguém foi maltratado, caluniado e amaldiçoado, mas não se vinga, mas perdoa quem o insultou – para mim isso também é um grande milagre. Mas por alguma razão não notamos esse tipo de milagre.

Portanto, não posso dar uma resposta definitiva. Esta é uma pergunta para o Patriarca de Jerusalém. É ele quem entra no Kuvouklion. Mas, novamente, é uma pergunta inadequada. Para mim este Fogo é sagrado em qualquer caso.

Fui ao serviço duas vezes e vi como o Patriarca, diante do Kuvouklion, tira seu sakkos e omophorion. Eles o revistam simbolicamente e então ele entra. Flashes de câmeras são visíveis, e alguém grita que são flashes do Fogo. Alguém vê alguma coisa, alguém alucina, e então o Patriarca traz as velas. Isso é o que eu tenho visto. Como este fogo aparece é tudo a mesma coisa para mim. Não pergunto quem acendeu as velas: Deus, um anjo ou o Patriarca. Recebi muitos relatos de testemunhas oculares de peregrinos que dizem ter visto relâmpagos de fogo no Santo Sepulcro em dias comuns. Isso não me levanta qualquer suspeita. A Igreja da Ressurreição é um lugar onde sempre há “faíscas” no plano espiritual.

Muito querida ao meu coração é uma história verdadeira sobre um menino árabe cujas velas foram acesas por conta própria durante a oração do Patriarca (o menino estava de pé no andaime ao redor do Kuvouklion). Este menino apagou suas velas porque o Patriarca ainda não havia trazido o Fogo. Em seu comportamento, vejo o tipo de simplicidade e estatura espiritual, o tipo de serviço a Deus e à Igreja, que só os grandes santos possuem. E mesmo que neste momento santo, neste lugar mais sagrado, o fogo seja aceso por mãos humanas, isso não o torna menos santo para mim do que se tivesse descido do céu. Não quero colocar fogo na minha barba para testar as propriedades milagrosas do Fogo. Para mim este fogo é sagrado.

Nunca pretendo perguntar a Sua Beatitude, o Patriarca de Jerusalém, sobre a descida do Fogo no Sábado Santo, pois isso seria simplesmente rude. Só posso compartilhar a opinião de um hierarca da Igreja de Jerusalém. Em 2001, o locum tenens do Trono Patriarcal da Igreja de Jerusalém, Metropolita Cornélio de Petra, foi entrevistado no programa “Gkrizes Zones” da estação de televisão grega “Mega”. Ele nos lembrou disso: Pois toda criatura de Deus é boa... Pois é santificada pela palavra de Deus e pela oração (1 Timóteo 4:4-5) Aqui estão suas palavras sobre o Fogo Santo (ou, como os gregos chamam , a Luz Sagrada):

“Estamos falando de uma luz natural. Mas as orações que o Patriarca ou outro lê durante o serviço santificam esta luz natural, como consequência da qual tem a graça da Santa Luz. É uma luz natural, que é acesa por uma lamparina a óleo sempre acesa que é mantida na sacristia da Igreja da Ressurreição. Mas as orações têm o poder de santificar essa luz natural e ela se torna uma luz sobrenatural. O milagre está na epiclese, na oração do hierarca; por ela esta luz é santificada.”

É claro que me relaciono com esse evento com reverência. E, é claro, eu não gosto muito da histeria, não importa de qual boca autoritária ela possa sair.

Gostaria também de declarar que nós da Missão Eclesiástica Russa começamos a estudar o texto do rito da Santa Luz. A linguagem deste rito afirma que “Cristo é a Verdadeira Luz” e que a “Luz de Cristo ilumina a todos”. Na Ressurreição de Cristo a luminescência era visível. Escusado será dizer que a Luz de Cristo, ou a Luz do Tabor, não é uma chama propriamente, mas é a Luz Divina. Mas nós humanos sempre tentamos substituir o Deus Vivo por Sua imagem ou ícone. É mais conveniente para nós orarmos dessa maneira, caso contrário não podemos encaixá-lo em nossa consciência limitada. Para nós, o Corpo e o Sangue de Cristo estão na forma de pão e vinho. Portanto, a Luz Divina também é transmitida na forma de Fogo, que podemos realmente ver e que podemos até nos acender.

Além disso, este Fogo santifica nossas almas e corpos, o que ocorre através de nossa capacidade humana de toque. O Senhor o dispôs para que possamos receber a graça salvífica e a iluminação de nossos sentidos corporais e espirituais através de realidade material que simboliza o espiritual. É por isso que tocamos este Fogo, segurando velas em nossas mãos: para receber a santificação através do Fogo que é santificado pelo Túmulo Doador de Vida do Senhor e pela oração da Igreja.

Met. Cornélio de Petra, que serviu o Fogo Sagrado, em lugar do Patriarca (que havia falecido), em 2001.


Pe. Isidoro, você tem que encarar o fato de que se você disser aos peregrinos que é possível que o Patriarca de Jerusalém acenda o fogo de uma lamparina, isso os desapontará profundamente. As pessoas consideram que se este Fogo é de Deus então é um verdadeiro milagre; ao passo que se é aceso, mesmo como parte de um ato litúrgico, então não é de Deus. Receio que, se tudo isso for verdade, as pessoas ficarão tão desapontadas que deixarão de ir à igreja e até mesmo deixarão de acreditar em Deus.

Eles não sabem que o Patriarca de Jerusalém é de Deus? Assim como toda autoridade é de Deus, especialmente na Igreja. Se essas pessoas são adoradoras do fogo, certamente perderão o significado de sua fé – isso é certo. Mas nosso Símbolo da Fé diz claramente: “Eu acredito na Luz da Luz, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro”. “Luz” aqui não significa nem fogo nem chama, mas a Luz Divina, a Verdadeira Luz: Deus. Nem está escrito “fogo do fogo”. Nesse caso, a Luz é simplesmente transmitida a nós na forma de fogo.

Acho que as pessoas não vão deixar de ir à igreja. Nós simplesmente precisamos esclarecer as pessoas. As pessoas ouvem as palavras de um padre. Quando um sacerdote abençoa a água submergindo a cruz nela, não considera a água santa, isto é, santificada pela graça divina?

Também temos uma tradição semelhante na Rússia. Nas Matinas da Sexta-feira Santa são lidos os Doze Evangelhos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os paroquianos compram as velas mais grossas que podem para queimar durante todo o serviço – cerca de três ou quatro horas – até que os Evangelhos sejam lidos. O padre faz com que as pessoas acendam suas velas com as dele, e após o serviço eles carregam cuidadosamente a chama para casa. Com essas novas chamas acendem todas as lamparinas de suas casas, que geralmente se apagam antes do culto. Eles sabem sobre o Fogo Sagrado na Rússia há muito tempo e, quando não puderam viajar para buscá-lo, levaram para casa o fogo dos Doze Evangelhos. Para mim isso também é uma coisa santa, visto que qualquer forma material é santa em relação ao Divino, ao Espírito. Este é um reflexo da Glória de Deus, da Graça de Deus. Este é um costume piedoso. Portanto, acho que as pessoas devem entender que a coisa mais importante na Igreja Cristã é o amor, não o fogo. E quantos crimes contra o amor são cometidos na Igreja do Santo Sepulcro quando estão servindo ao rito da Santa Luz! As pessoas mentem para enganar os guardas e entrar na igreja por qualquer meio necessário. Eles gritam, empurram e abusam uns dos outros. Eles até brigam, resmungam, se decepcionam, perdem a oração e perdem a paz de suas almas. É isso que o Senhor quer de nós no grande dia de descanso?

É claro que motivos pagãos e várias formas de adivinhação chegam à Igreja: “Quando o carvalho de Manre secar, ou quando o fogo não descer sobre o túmulo, será o fim do mundo”. Mas na Sagrada Escritura é dito que ninguém sabe dessa hora, nem mesmo os anjos. E nem vejo o que há de tão ruim no fim do mundo. O Livro do Apocalipse ainda termina com as palavras: Vem, Senhor Jesus (Apocalipse 22:20), que significa simplesmente: “Vem, estamos esperando por ti!” E isso é dito especificamente da Segunda Vinda do Salvador. Sectários assustam as pessoas; eles adivinham e predizem. Mas os cristãos devem ter uma mente sóbria, lembrando que a essência de nossa fé é o amor a Deus e às pessoas, não adivinhação.

Pe. Isidoro, muitos peregrinos vêm repetidamente para o Fogo Sagrado, como a Fundação de Santo André, o Primeiro Chamado, e trazem o Fogo de volta à Rússia. Muitas pessoas que estão na igreja na descida do Fogo Sagrado estão cheias de um sentimento inexplicável de alegria espiritual. Cito: “Eles saíram da igreja como se tivessem nascido de novo, espiritualmente limpos e renovados”. Se o rito da descida do Fogo Sagrado evoca tais sentimentos, então vale a pena ir por causa disso?

A Fundação de Santo André, o Primeiro Chamado, prepara cuidadosamente a sua visita muito antes da Páscoa. Peregrinos simples não podem fazer isso. Além disso, sobre o que é todo esse misticismo? As pessoas vêm a Jerusalém, veem o Patriarca e recebem sua bênção. Isso produz uma alegria adequada. Mas nestes dias [ao redor da Páscoa] isso se mistura com grande dificuldade e longa espera. Praticamente todos que vão para o Fogo Sagrado perdem a Liturgia do Sábado Santo, que é servida na Missão. Muitos deles não estão nem em condições de assistir ao serviço pascal da meia-noite. Para eles já está tudo acabado, simplesmente não têm mais força física.

Além disso, há choque cultural. Como alguém que foi criado na tradição russa, quero dizer que nos acostumamos a uma maneira diferente de comemorar o Sábado Santo. Os serviços divinos são calmos e pacíficos. Neste dia, nem ousamos homenagear ninguém na Grande Entrada. Saímos reverentemente com o Cálice e depois voltamos ao altar em silêncio: “Que cale toda a carne mortal”. Conosco, todos se aproximam do Sudário Sepulcral muito silenciosamente, chorando e rezando. Mas à noite haverá um belo, alegre e triunfante “Cristo ressuscitou!” Mas aqui há muita decepção. Nosso povo não consegue entender a mentalidade oriental: gritar, assobiar, empurrar e correr. Não ouvi poucas palavras de decepção daqueles que estiveram no Santo Sepulcro no Sábado Santo. E não devemos julgar a polícia e as unidades especiais. Eles estão apenas fazendo seu trabalho, certificando-se de que as pessoas não esmaguem umas às outras ou se envolvam em qualquer tipo de conflito étnico ou interconfessional.

Nada disso corresponde à minha compreensão do Sábado Santo. Se alguém precisa viajar para o outro lado da terra para não orar, e apenas para suportar algo – então é exatamente isso que eles querem. Se alguém precisa fazer uma comparação para que possa se alegrar que em casa na Rússia é tranquilo e orante, ou se alguém precisa disso para confirmar sua fé, então que venha. Todos precisam do que precisam.

Há apenas uma coisa que devo insistir: a questão do Fogo Sagrado não deve ser dogmatizada. Se isso fosse necessário, estaria escrito nos atos dos Sete Concílios Ecumênicos. Mas essa questão nunca foi examinada lá.

Isso significa que a descida do Fogo Sagrado não é um Mistério da Igreja. Afinal, reconhecemos sete Mistérios. Podemos chamá-lo de rito litúrgico ou de tradição?

Traduzido do grego, é chamado de “O Rito da Luz Sagrada”. Nós temos um rito para abençoar anéis, um rito para abençoar poços, o rito da Panagia. Este é um rito impresso em papel. Em nosso site vamos publicar a oração que o Patriarca lê no Kuvouklion. Este texto esclarecerá tudo imediatamente. Não há uma única palavra sobre o fim do mundo, nem uma única palavra sobre se a chama está acesa ou não. Fala de Deus como Luz, afirmando: “estamos realizando uma manifestação de luz”, em outras palavras, o rito da Santa Luz. Não poderia ser dito com mais precisão. Portanto, só precisamos orar e evitar fazer perguntas impróprias. Precisamos cultivar em nós mesmos uma compreensão espiritual de cada questão, incluindo esta.