A influência de falsificações no desenvolvimento do Papado

 
 
O desenvolvimento do primado papal - e sua transformação em supremacia de jurisdição e infalibilidade -  é um dos temas mais complexos da história da Igreja. Para os católicos romanos, trata-se apenas do desabrochar de prerrogativas que antes estavam implícitas no ofício de "sucessor de S. Pedro". Para os ortodoxos, trata-se de uma gradual usurpação indevida de autoridade.

Uma parte importante, e frequentemente ignorada, desse desenvolvimento, é o papel fundamental que nele teve o uso de falsificações. As três principais foram:
  • os pseudo-Concílios Simaquianos (século VI), quando surgiu, pela primeira vez, a frase "prima sede a nemine judicatur", "a Primeira Sé não será julgada por ninguém";
  • a doação de Constantino (século VIII);
  • as Falsas Decretais (século IX).
É verdade que essas falsificações não criaram, do nada, a noção de supremacia papal. Mas elas serviram para reforçar a noção, quando alguns pontos ainda eram disputados, bem como para aprofundá-la com novas e mais ousadas prerrogativas.
 
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A primeira dessas grandes falsificações foi composta por partidários do Papa Símaco (460-514). Conforme o historiador católico Klaus Schatz narra em Primazia papal: de suas origens ao presente, pag. 73:
Prima sedes a nemine iudicatur: o desenvolvimento e as limitações de um princípio

O princípio de que prima sedes a nemine iudicatur, 'o principal Sé [Roma] não é julgada por ninguém' (que efetivamente significa 'não pode ser julgada por ninguém') tornou-se no decorrer dos séculos uma forma sucinta de dizer que pode não haver tribunal acima do papa que possa condená-lo, depô-lo ou anular suas decisões. Nesse sentido, o princípio desenvolveu uma enorme influência, especialmente a partir do século XI. Mas já era conhecido e eficaz muito antes disso. Adquiriu um sentido secular e político pela primeira vez no ano 800, durante a investigação iniciada por Carlos Magno por causa das queixas apresentadas a ele pelos oponentes romanos de Leão III: também é impossível para o papa ser julgado e condenado por qualquer corte terrestre, incluindo a do imperador.

Nessa frase sucinta, o princípio pode ser rastreado até as falsificações de simaquianas, escritas por volta de 500. Seu cenário foi o período de dominação ostrogodo. O papa Símaco, politicamente um apoiador do rei ostrogodo ariano Teodorico, enfrentou forte oposição eclesiástica dentro do clero romano, cuja orientação era bizantina, e ele estava prestes a ser deposto por um sínodo. Os falsificadores esperavam que esse princípio pudesse ser usado para impedir seu depoimento; eles se referiam a supostos casos por volta do ano 300, quando a deposição de um papa foi evitada por causa desse princípio. É claro que apenas essa formulação ousada era nova, não o conteúdo. Aparece muito claramente em duas cartas do Papa Gelásio I de 493 e 495 no contexto do cisma acaciano. (...) Mas foi através das falsificações simaquianas que o princípio entrou no cânone legal; foi essa formulação, e não a de Gelásio, que fez história, mas apenas lentamente e por caminhos tortuosos.
Apesar de Klaus Schatz, que é católico, defender que Gelásio já havia defendido o "conteúdo" do princípio no fim do século V, é duvidoso que se trata da mesma coisa. Gelásio havia tratado em suas cartas de decisões eclesiásticas e não de julgamento pessoal do papa.

Também a Enciclopédia Católica narra: "O objetivo dessas falsificações era produzir alegados exemplos de tempos anteriores para apoiar todo o procedimento dos adeptos de Símaco e, em particular, a posição de que o bispo romano não poderia ser julgado por qualquer tribunal composto de outros bispos". Ora, por que alguém precisaria falsificar documentos para corroborar um princípio que já era aceito?

Um caso peculiar do século IV mostra que o princípio não existia antes. Em 378, um concílio realizado em Roma, com a participação do papa Dâmaso, de S. Ambrósio de Milão e outros bispos, escreveu uma petição aos imperadores ocidentais Graciano e Valentiniano II. Eles queriam, entre outras coisas, que as decisões do bispo de Roma em apelações de bispos - conforme recentemente havia sido estabelecido no concílio de Sárdica - fossem executados pelo poder temporal (o que foi concedido). Curiosamente, eles também registraram um requerimento do próprio papa Dâmaso:
"Nosso supracitado irmão Dâmaso, visto que recebeu a distinção de teu veredicto (de absolvição) em seu caso, não deve ser colocado em posição inferior àqueles que são seus iguais no cargo, mas a quem ele se destaca na prerrogativa da Sé apostólica, (que é o que ele seria) caso fosse considerado sujeito à jurisdição dos tribunais públicos, dos quais tua lei isentou os sacerdotes. (...) Pois ele [Dâmaso] não está pedindo algo novo, mas invocando precedentes ancestrais (com seu pedido) de que se um caso envolvendo o bispo de Roma não for confiado ao seu próprio concílio [de bispos] para julgamento, ele deve pleitear sua defesa perante o consistório imperial. Pois quando Silvestre foi acusado por pessoas sacrílegas em Roma, ele defendeu sua própria causa perante teu ancestral Constantino. As Escrituras fornecem precedentes semelhantes, a saber, que quando o santo apóstolo Paulo estava sofrendo violência nas mãos de um governador, ele apelou a César e foi enviado a César."
O motivo desse pedido é que Dâmaso havia sido julgado (e absolvido) pelo imperador, numa acusação contra sua conduta moral feita por clérigos rivais. E o concílio de Roma, juntamente com o próprio Dâmaso, concordou inteiramente na legitimidade do imperador de atuar como juiz naquele caso. E ainda pede que o papa, no futuro, seja sempre julgado por um concílio de bispos ou pelo imperador, e não "pelos tribunais públicos".
 
Essa carta é uma prova manifesta de como Roma desconhecia a prerrogativa de "não ser julgado por ninguém". 
 
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Ainda mais graves foram os Decretos de Pseudo-Isidoro, chamados também de Falsas Decretais. Eles são um conjunto de falsificações, em grande número e muito influentes, escritas por um estudioso ou grupo de estudiosos conhecido coletivamente como "Pseudo-Isidoro". Os autores, que assinavam com pseudônimo Isidoro Mercador, eram provavelmente parte de um grupo de clérigos francos do século IX. O objetivo era defender a posição dos bispos contra os metropolitas (arcebispos) e autoridades seculares criando documento falsos supostamente escritos pelos primeiros papas e interpolando-os com documentos conciliares.

O raciocínio desses bispos era que o tipo de controle regional exercido pelos metropolitas só poderia ser vencido com a hipertrofia da autoridade universal do Papado. "Melhor o papa à distância do que o arcebispo próximo", era o raciocínio deles.

Klaus Schatz diz em Primazia papal: de suas origens ao presente:
No geral, as Falsos Decretais representaram um passo importante em direção ao ponto em que as estruturas supra-diocesanas, que anteriormente tinham autoridade independente por direito próprio, foram mais totalmente vinculadas à autoridade papal. Isso se aplicava tanto aos sínodos quanto à autoridade dos metropolitas. É claro que essa nova etapa não foi completa e imediata na realidade.

É certo que uma ou duas décadas depois, o Papa Nicolau I conheceu as Falsos Decretais e fez uso delas (por exemplo, em seu conflito com o Patriarca Fócio).

(...)

Os princípios fundamentais dos Decretais não foram de forma alguma aceitos em todos os lugares no início. Podemos considerar, por exemplo, as 'revoltas de Rheims' por volta do final do milênio, quando no Sínodo de Verzy (991) o Bispo Arnulf de Orléans, apoiado pela maioria dos bispos de seu tempo, rejeitou de imediato qualquer sugestão de permitir que Roma interviesse na questão da deposição do arcebispo de Rheims. Este e outros casos semelhantes mostram que a maioria dos bispos ainda pensava em termos pré-isidoros.

A influência dessas falsificações não foi imediata, justamente porque estavam distantas da realidade da Igreja tal como ela funcionava então. Conforme F. Maassen (católico romano) relata em Glossen des canonischen Rechts aus dem karolingischen Zeitalten (1876):
A falsificação era monstruosa demais; se tivesse sido reconhecida e exposta, ainda assim teria confundido os leitores da época... A visão pseudo-isidoriana da Igreja primeiro teve que se tornar realidade; só então as idéias pseudo-isidorianas poderiam se tornar parte do direito canônico. Ela teve que crescer junto com novas doutrinas de fontes genuínas para encontrar sua expressão acadêmica como parte integrante da lei. No momento em que esse processo ocorreu, no entanto, não menos que três séculos haviam se passado.
Como disse Horst Fuhrmann, "o primeiro entendimento eclesiástico teve que ser alterado para que o Pseudo-Isidoro pudesse ser recebido" (Cartas papais no início da Idade Média, pag. 186).

Ainda outro historiador, Walter Ullmann, em O Crescimento do Governo Papal na Idade Média, pag. 180, narra esse processo e o "espírito" por trás das decretais:
Pseudo-Isidoro foi projetado para servir como um manual que contém as transcrições literais de documentos dos primeiros tempos cristãos em diante. A estrutura básica desta coleção era a da antiga Hispana. A primeira das três partes da obra consiste em "decretais" emitidos por papas pré-Constantineanos e mostra de forma mais flagrante o trabalho dos falsificadores: todos os sessenta decretais são forjados. A segunda parte é apenas em pequena parte obra dos falsificadores: ela contém falsificações mais antigas e também material genuíno. Talvez a parte mais complicada seja o terceiro e último começo com Constitutum Silvestri (forjado): nesta parte, o material genuíno e espúrio é habilmente combinado.

(...) No início de nossa breve análise do Pseudo-Isidoro, devemos enfatizar novamente que a obra contém muito pouco material novo. Poderia ser ignorado em silêncio, não fosse que exercesse grande influência nas gerações papais posteriores, bem como nos canonistas. Ele se tornaria o panteão de todas as prerrogativas papais. O que Pseudo-Isidoro fez foi moldar princípios hierocráticos - até então vagamente flutuando - em pronunciamentos papais concretos com a marca da antiguidade apostólica e cristã primitiva. O trabalho dos falsificadores era tendencioso, destinado a estabelecer um programa sob o manto da "lei".

Em todo o Pseudo-Isidoro, o tema principal é o da qualificação funcional dos padres em uma sociedade cristã. Só eles podem funcionar, em virtude de suas qualificações, como órgãos dirigentes do corpus cristão. (...) São o povo eleito de Cristo - 'in sorte Domini electi' (...). Pois só a ordem clerical conhece a 'divina mandata', enquanto os membros leigos da Igreja universal se dedicam apenas às coisas carnais.

O ordenamento adequado dentro de uma sociedade cristã exige, conseqüentemente, que os clérigos sejam isentos do controle e jurisdição das pessoas de lei inferior; acusações contra clérigos por parte de leigos são inadmissíveis, pois os inferiores não devem acusar superiores.
A partir de então, as prerrogativas papais foram descritas em termos cada vez mais ousados. J. H. Burns cita algumas fontes sobre isso (The Cambridge History of Medieval Political Thought C.350-c.1450, pag. 434):
Johannes Teutonicus (c. 1216) deu uma definição clássica no Ordinary Gloss ao Decretum de Graciano: 'A autoridade do papa é ilimitada, a de outros bispos é limitada porque eles são chamados a uma parte da responsabilidade (pars sollicitudinis) não para a plenitude do poder '. Nessa comparação, os canonistas reconheceram que a jurisdição do papa se estendia por toda a Igreja, enquanto a do bispo se limitava à sua diocese.

(...)

Além da plenitude do poder papal, os canonistas acrescentaram um rico tesouro de termos ao vocabulário da soberania. O papa era o juiz ordinário de todos, iudex ordinarius omnium, a lei viva, lex animata (do direito romano), e o legislador supremo que tinha todas as leis em seu peito, omne ius habet in pectore suo (outra frase do direito romano) .

(...)

Laurentius Hispanus escreveu: "o papa muda a natureza das coisas aplicando as essências de uma coisa à outra ... ele pode indagar da justiça". Posteriormente, Johannes Teutonicus acrescentou: 'Ele pode fazer algo do nada' (de nichilo hacit aliquid).

Isso nos dá uma ideia de como o desenvolvimento do Papado o afastou daquele antigo "primado" defendido por S. Leão Magno e outros Padres da Igreja, que colocavam o papa como um verdadeiro defensor dos cânones e do consenso da Igreja - e não como um dominador.

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