A infalibilidade da Igreja na Escritura

 
Benjamin John Bollinger
 
É bem sabido que a Igreja Ortodoxa, seguindo a fé cristã histórica, ensina que a Igreja de Cristo, e especificamente sua hierarquia, possui os carismas da indefectibilidade e infalibilidade. Esta é essencialmente a crença de que, em seus julgamentos definitivos, a Igreja não pode ensinar heresia. Até a época da Reforma, essa era a crença quase universal e consistente de todos os cristãos, tendo sido apenas contestada por certas seitas gnósticas. No entanto, até hoje, a validade do protestantismo (com a possível exceção de certos grupos anglicanos, embora eu não ache que eles evitem esse problema) permanece ou cai se os reformadores estavam ou não certos em rejeitar essas crenças antigas. E assim, neste artigo, espero demonstrar que a visão tradicional da Igreja - na qual ela realmente possui indefectibilidade e infalibilidade - é a mais garantida pelas Escrituras, tornando o protestantismo um afastamento fundamental da fé patrística e bíblica. Com isso, vamos começar.
 
Considere Apocalipse 20:1-3. Dizem-nos que Satanás está “ligado” ["amarrado"] por um anjo com a “chave” do Abismo durante o milênio, após o qual ele será “solto” por um tempo. Para os leitores do Evangelho de São Mateus, esta linguagem deve soar familiar:
Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; e eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus (Mateus 16:18,19).
As palavras para “chaves” (κλεῖδας), “ligar” (δήσῃς) e “soltar” (λύσῃς) são todas as mesmas em Mateus 16 e Apocalipse 20. E não apenas essas palavras (especialmente “chaves”) não são muito comum no NT, mas Apocalipse 20 e Mateus 16 são os únicos lugares em toda a Bíblia onde você encontra todos eles sendo usados ​​juntos. As chances de isso ser apenas uma coincidência são muito pequenas. E sugere que, seja o que for o milênio [em Apocalipse], tem algo a ver com a descrição da Igreja de Mateus 16.

No entanto, há alguma evidência concreta de que João fez uso do Evangelho de Mateus ao escrever o Apocalipse? Definitivamente. Em seu comentário magistral sobre o Apocalipse, Peter Leithart postula que todo o livro do Apocalipse é vagamente baseado no Sermão das Oliveiras de Mateus 24. De fato, procurar paralelos é bastante frutífero. Por exemplo, estes são os únicos dois lugares onde o NT menciona uma vindoura “grande tribulação” (θλῖψις μεγάλη; Mt 24:21, Ap 2:22, 7:14); e a palavra única “abominação” (βδέλυγμα) é usada apenas (com uma exceção) no Sermão das Oliveiras (Mt 24:15, Mc 13:14), e no Apocalipse de João (Ap 17:4-5, 21:27). Claramente, João estava familiarizado com o trabalho de Mateus e não teve nenhum problema em repetir seu Evangelho.

Com isso em mente, vamos dar uma olhada em Apocalipse 20 e Mateus 16. Como argumentei antes, Mateus 16:18-19 alude a Isaías 22:20-24, onde Eliaquim é feito mordomo real da casa de Davi: “Porei no ombro dele a chave da casa de Davi; ele abrirá, e ninguém fechará; e ele fechará, e ninguém abrirá” (Is. 22:22). Assim como Pedro “liga” e “desliga” com as “chaves” do reino de Deus, Eliaquim “abre” e “fecha” com a “chave” do reino de Davi.

E não apenas há um claro paralelo linguístico entre Isaías 22 e Mateus 16, mas também considere como Eliaquim recebe um “turbante” e uma “faixa” (Is 22:21). Estas são duas vestimentas icônicas do sumo sacerdote (Ex. 28:4); e, portanto, não é surpresa que, em Mateus 17:1-12, Pedro seja igualmente identificado como sumo sacerdote.

“Depois de seis dias”, nos é dito, Jesus levou apenas três de Seus discípulos com Ele até o Monte Tabor: Pedro, Tiago e João (Mt 17:1). Por que só eles? É porque a Transfiguração de Jesus é paralela a Êxodo 24:1-18, que relata a experiência de Moisés da glória de Deus no Monte Sinai (esta é uma das razões pelas quais Moisés está presente na Transfiguração). No caso de Moisés, os três homens que ele subiu ao monte “no sétimo dia” foram Arão, Nadabe e Abiú (Êx 24:1, 9, 15-16). Os dois últimos, Nadabe e Abiú, eram irmãos (Êx 6:23); e acontece que Mateus 17:1 faz questão de notar que Tiago e João eram “irmãos” também. Assim, se Moisés tipifica Jesus, e Nadabe e Abiú tipificam Tiago e João, então isso deve significar que Arão, o sumo sacerdote, tipifica Pedro.

Assim, Pedro em Mateus 16-17, como Eliaquim em Isaías 22, recebe as chaves do reino, autoridade para ligar e desligar, e algum tipo de status de sumo sacerdote. Ligando isso de volta ao Apocalipse, considere como este é o único livro no NT que cita diretamente Isaías 22: “As palavras do santo, o verdadeiro, que tem a chave de Davi, que abre e ninguém fecha, que fecha e ninguém abre” (Ap. 3:7). Jesus é aquele que detém a chave de Isaías 22, e esta não é a única vez que São João menciona essas chaves. Em outro lugar, João se refere a elas como “as chaves da Morte e do Hades” (Ap 1:18), “a chave do poço sem fundo” (Ap 9:1) e, claro, “a chave do Abismo” (Ap. 20:1).

Parece que, para João, as chaves de Isaías 22 são as mesmas chaves que prendem o poder do Hades. Você provavelmente pode ver onde estou indo com isso. Mateus 16:18 é o único outro lugar onde o NT menciona os portões do “Hades” (ᾅδου) ao lado de um par de “chaves”. Dado que Mateus 16 também traz uma clara alusão a Isaías 22, a conexão entre esses textos é, a meu ver, completamente inegável.

Portanto, a imagem que temos é esta: Apocalipse 20:2-3 nos diz que o milênio é o período em que a Morte e o Hades estão presos pelas chaves; e Mateus 16:18-19 nos diz que a Igreja exerce o poder dessas chaves e as usa para fechar as portas do Hades. Isso significa, portanto, que o milênio se refere ao reinado da Igreja na terra, ou seja, a era presente.

Isso faz todo o sentido do propósito do milênio. Satanás está preso “para não mais enganar as nações” (Ap 20:3). Na Cidade de Deus, Santo Agostinho aponta a conexão entre esta passagem e Mateus 12:29: “Ou como pode alguém entrar na casa do valente e saquear seus bens, sem primeiro amarrar (δήσῃ) o valente?” Cristo primeiro “amarra” o homem forte, que é Satanás (Mt 12:26), e depois “saqueia” sua casa, que se refere às nações, o antigo domínio de Satanás (cf. Jo 12:31).

Da mesma forma a Igreja, como Corpo de Cristo, fecha as portas do Hades para cumprir sua missão de “fazer discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt. 28: 19). De fato, é neste mesmo contexto que Jesus promete: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28:20). Jesus estará com a Igreja até que ela complete sua missão; Ele estará com ela até o fim. Mateus, como Apocalipse, ensina que a razão pela qual as portas do Hades não prevalecerão contra a Igreja, é para que ela seja verdadeiramente uma luz para as nações durante o milênio (cf. Mt 5:14-16, Ap. 21:24).

No entanto, a que exatamente “a Igreja” se refere neste contexto? Tradicionalmente, tem sido interpretado como uma referência ao ofício episcopal. Santos Cipriano, Optato, Máximo, Agatão, Teodoro Studita e Teodoro de Edessa apelam para Mateus 16:18-19 ao explicar por que a hierarquia eclesiástica nunca pode cair em erro. E eu argumentaria que sua interpretação é de fato a mais plausível dos textos em questão.

Considere o fato de que Mateus 16 não está simplesmente falando sobre “a Igreja” como um corpo geral de cristãos, mas especificamente como uma instituição de autoridade. Isso é visto em Mateus 18, onde a linguagem de “ligar” e “desligar” é usada novamente (Mt 18:18), mas observe o contexto. É o ensinamento de Jesus sobre a excomunhão. Nosso Senhor ensina que, se um cristão pecar contra você, você deve primeiro confrontá-lo sozinho; se ele não ouvir, então leva “um ou dois” cristãos junto com você para confrontá-lo; e se ele não ouvir “eles”, então e somente então “a Igreja” vem para excomungar essa pessoa (Mt 18:15-17). Observe como “a Igreja” é explicitamente contrastada com um mero corpo de “dois ou três” cristãos, e apenas a primeira realmente tem autoridade eclesiástica. De fato, este mesmo texto é citado no 5º Concílio Ecumênico como explicação da autoridade conciliar (Const. +553, 307).

Dado que Mateus 16 e 18 claramente andam juntos (e são as únicas duas vezes em que Mateus usa a palavra “igreja”) isso nos diz que os Padres estavam corretos: “a Igreja” contra a qual as portas do Hades não prevalecem não é meramente o corpo de todos os crentes, mas especificamente a hierarquia eclesiástica. E lembre-se do propósito das portas do Hades não prevalecerem: para que as nações não sejam enganadas. Isso sugere que a hierarquia eclesiástica é incapaz de desviar as nações. Em outras palavras, o episcopado da Igreja está, em certo sentido, livre de ensinar heresia às nações. Isso é ainda sugerido pelo fato de que a promessa de Jesus de estar com a Igreja “até o fim dos tempos” coincide com a ordem de “ensinar” as nações (Mt 28:19-20). Como a hierarquia da Igreja seria capaz de impedir que as nações fossem enganadas, a menos que tenham alguma capacidade de determinar com autoridade a verdadeira fé?

De fato, considere os próprios meios pelos quais a Igreja impede o engano das nações: através de “ligar” e “desligar”. Como Michael Barber demonstra, esses termos têm uma gama de significados, todos coincidentes com as responsabilidades sacerdotais. Fundamentalmente, os sacerdotes são juízes. Eles julgam a diferença entre “limpo” e “impuro” (cf. Lv 13:3-8), e de acordo com Deuteronômio 17:8-13, os julgamentos legais dos sacerdotes devem ser obedecidos sob pena de morte, e “assim você expurgará o mal do seu meio” (Dt 17:12). Como outros lugares em Deuteronômio, esta frase sinistra é uma descrição da pena de morte; e significativamente, São Paulo usa esta frase em 1 Coríntios 5:9-13 para descrever a autoridade da Igreja para excomungar pecadores.

Observei acima que, em Mateus 18, a linguagem de “ligar” e “desligar” também é sobre o poder de excomunhão da Igreja. Isso confirma que a autoridade sacerdotal de julgamento é o que está sendo dado à hierarquia da Igreja em Mateus 16-18. Assim como você teve que ouvir os sacerdotes da antiga aliança sob pena de morte, também você deve ouvir “a Igreja” sob pena de excomunhão. E, como mencionei, é essa autoridade que é o próprio meio pelo qual a Igreja fecha as portas do Hades e, assim, impede que as nações sejam enganadas. Isso ocorre porque, para determinar com autoridade quem é excomungado e quem não é, a hierarquia precisa da capacidade de estabelecer a verdadeira regra de fé. Assim, na Última Ceia, quando Jesus diz muito explicitamente que os Apóstolos (como os sacerdotes da antiga aliança) “julgarão as doze tribos de Israel”, Ele ora para que a fé de São Pedro “não desfaleça” (Lc 22,30-30). 32). Para julgar adequadamente o povo de Deus e ensinar as nações, Pedro e seus sucessores devem, de alguma forma, ter a capacidade de proclamar sem erro (infalivelmente) a fé (é por isso que os Concílios da Igreja, desde os primeiros dias, sempre ensinaram doutrina através do poder de excomunhão, ou seja, pela emissão de anátemas).

E tudo isso é, claro, confirmado pelo próprio São João. Já expliquei detalhadamente antes como, em Apocalipse 1:20, João apresenta “anjos” como os bispos monárquicos da Igreja (os sucessores de Pedro); e uma das maneiras de fazer isso é associando-os ao sacerdócio Aarônico. Você se lembrará de como Mateus 16-17 e Isaías 22 revelam Pedro como o novo Arão, o sumo sacerdote da nova aliança (o Evangelho de João também). Visto que Apocalipse dá um caráter sacerdotal Aarônico aos “anjos” no primeiro capítulo, a leitura mais natural de Apocalipse 20, onde vemos “um anjo” com “as chaves” de Mateus 16, é que é um bispo da nova aliança que amarra as portas do Hades, e impede que as nações sejam enganadas. O que exatamente isso implica é desenvolvido em Apocalipse 21. 

Quando nos é mostrada a Jerusalém celestial, vemos que ela tem “doze portas”, que levam os nomes das doze tribos de Israel; e de pé nestes portões estão “doze anjos” (Ap 21:12). Que estes são os mesmos anjos sacerdotais de Apocalipse 1 e 20 é confirmado pelo fato de que esta é uma alusão a 1 Crônicas 9. Aqui, aprendemos sobre os “porteiros” levíticos de Israel, alguns dos quais estavam encarregados de vinho, azeite e o pão da presença (1 Crônicas 9:29, 32). Esses porteiros sacerdotais também foram encarregados de “abrir” a casa de Deus “todas as manhãs” (1 Crônicas 9:27). Apocalipse 21 se baseia nesta imagem, dizendo-nos que porque “não há noite” na nova Jerusalém, “suas portas nunca serão fechadas” (Ap 21:25). E porque são os anjos/bispos (aqueles que oferecem pão, vinho e azeite nos sacramentos) que estão nestes portões com as chaves que “abrem” e “fecham”, eles estão sendo retratados como os porteiros da nova aliança.

Naturalmente, como guardiões, isso significa que os bispos determinarão quem está “dentro” e quem está “fora” do Reino, o que lhes permite instruir adequadamente as nações. E, portanto, não é de surpreender que, neste contexto, São João mencione que “os reis da terra” trarão “a glória e a honra das nações” pelas portas desses bispos (Ap 21:24-26), “mas nada impuro jamais entrará nela, nem qualquer um que pratique abominação e falsidade, mas somente aqueles que estão escritos no livro da vida do Cordeiro” (Ap 21:27).

O fato de que aqueles que são “impuros” (κοινὸν) e praticam “abominações” (βδέλυγμα) são excluídos do reino é muito significativo. Essas duas palavras são muito raras no NT, porque sua origem é de Levítico e Deuteronômio, onde são usadas para descrever a pureza ritual. Você se lembrará de cima que a origem dos julgamentos sacerdotais remonta a este mesmo princípio: a capacidade dos sacerdotes de separar o puro do impuro, o santo do profano. O fato de que essas palavras são usadas para descrever aqueles que os anjos/bispos da Igreja mantêm fora da cidade celestial, mais uma vez nos diz que esses bispos têm autoridade sacerdotal (cf. Lv 18:29). Especificamente, eles nunca permitem aqueles que espalham “falsidade” no Reino, mas apenas aqueles que estão “escritos no livro da vida do Cordeiro”. Em outras palavras, o julgamento da verdade pelos bispos está sempre de acordo com o que Deus já escreveu. Isso é o que impede que as nações sejam enganadas e permite que elas “andem pela luz [da Igreja]” (Ap 21:24).

De fato, como Suan Sonna observa, este é o significado literal por trás do uso do futuro passivo em Mateus 16:19, “o que você ligar na terra, terá sido ligado no céu”. Pedro, os Apóstolos e seus sucessores não precisam que suas decisões sejam ratificadas pelo céu, porque “[seu] julgamento reflete o que Deus já determinou”. Seu julgamento é infalível.

Que Mateus 16 está em mente aqui é confirmado por Apocalipse 21:14-20. Talvez você esteja familiarizado com o antigo debate sobre se Pedro é ou não “a rocha” sobre a qual a Igreja é construída. Eu argumentaria que esses versículos encerram esse debate. É-nos dito que a Jerusalém celestial, a Igreja (Gl 4:26), tem “doze fundamentos”, que levam “os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”, e são compostos de doze pedras preciosas. Isso está claramente ligado aos “doze” anjos que estão em “doze” portões, que levam “os nomes das doze tribos dos filhos de Israel”. E, portanto, deve ficar claro que os bispos angélicos, sucessores dos apóstolos, constituem as “pedras” e “fundamentos” sobre os quais a Igreja é construída.

No entanto, que São Pedro (o bispo arquetípico) em particular está sendo enfatizado, é estabelecido por um ponto que eu fiz antes. Ou seja, se seguirmos a ordenação consistente dos apóstolos do NT e a correlacionarmos com a ordem das pedras preciosas da cidade celestial, veremos que a primeira dessas pedras preciosas, o jaspe, está associada a Pedro; e o jaspe é, naturalmente, a “pedra” com a qual a Igreja irradia eternamente (Ap 21:11). Isso significa que Pedro e seus sucessores, os hierarcas episcopais, são a rocha imóvel e o fundamento da Igreja. E porque a Igreja não pode existir sem um fundamento, isso significa que a indefectibilidade eclesial, da qual a infalibilidade decorre logicamente (daí porque a autoridade de “ligar” e “desligar” é dada neste contexto), é o ensino definitivo da Escritura.

Dumitru Staniloae e a questão dos sacramentos fora da Igreja

  
Cristian Sebastian Sonea - “The Open Sobornicity”, an Ecumenical Theme in the Theology of Fr. Dumitru Stăniloae
 
Dumitru Staniloae fez uma breve apresentação de duas atitudes teológicas divergentes: a primeira, que reconhece como “válido per se” “o batismo feito com água e em nome da Santíssima Trindade”, “ainda que concedido fora da Igreja Ortodoxa”; e a segunda atitude, que afirma que “todos os batismos fora da Igreja, sem exceção, são inválidos per se” [D. Staniloae, Cari dintre eretici şi schismatici].
 
[De acordo com essa segunda atitude], os que estão fora da Igreja, embora tenham sido batizados em nome da Santíssima Trindade, não podem ser considerados, de forma alguma, membros da Igreja enquanto não retornarem para dentro dela. Quando decidem voltar, a Igreja aceita seu “batismo”, mas apenas por “economia” e não pedirá que sejam batizados novamente. Tal posição tenta evitar a possibilidade de reconhecer qualquer sinal de eclesialidade nas Igrejas e denominações fora da Igreja Ortodoxa ou da obra carismática do Espírito Santo dentro delas.
 
O padre D. Staniloae considera a segunda teoria errada, dizendo: “se nenhum batismo externo é válido”, por que a Igreja validaria apenas um tipo de batismo e não todos os tipos realizados fora de seus limites? Dumitru Staniloae é o defensor da primeira teoria, a qual ele corrige:
“... os batismos em água e em nome da Santíssima Trindade fora da Igreja são válidos em sua natureza, mas a atualização da Graça neles é alcançada apenas e quando a Igreja Ortodoxa quer isso”.
Além disso, ele propõe um nivelamento da atitude pan-ortodoxa em relação aos “batismos estrangeiros”, da seguinte forma: “a) serão batizados os que tiverem batismo [puramente] espiritual ou antitrinitário; b) os que não foram confirmados ou não têm a crisma e o sacerdócio como sacramento receberão a crisma; c) aqueles que têm o batismo trinitário-material e o sacerdócio como sacramento serão recebidos com libelos pisteos [confissões de fé]" (significando os católicos romanos, os greco-católicos etc).
 
O teólogo romeno considerou que a solução dogmática deveria ser procurada em “algum lugar no meio, entre as duas teorias, entre o reconhecimento do caráter do Sacramento do Batismo e a negação de qualquer conteúdo objetivo que possam ter” [D. Staniloae, Numărul tainelor, raporturile între ele şi problema tainelor din afara Bisericii (1956)]. A solução proposta seria que, sendo os Sacramentos “o meio pelo qual o homem chega à relação plena e natural com Cristo”, significa que os chamados Sacramentos fora da Igreja intermedeiam as relações com Cristo, mas baseados na fé pessoal: “o homem em geral não pode receber Cristo ou de Cristo mais do que acredita”. Assim, de acordo com a teologia do padre D. Staniloae, o ser humano recebe Cristo dentro de sua fé, mesmo estando fora dos limites canônicos da Igreja, mas o que exatamente é recebido através desses sacramentos não se pode saber:
“Não podemos dizer exatamente o que aqueles de fora da Igreja recebem em seus chamados sacramentos. [...] Falta-nos ainda a fórmula, a imagem adequada para esta base objetiva das suas cerimônias, para as elevar e passar ao nível dos Sacramentos.”
Neste caso também falamos de uma eclesiologia de tipo “agnóstico” que podemos encontrar também em outros teólogos ortodoxos.

[...] Segundo D. Stanilaoe, embora a Igreja Ortodoxa seja considerada a verdadeira Igreja de Cristo completa, no entanto, as outras denominações cristãs não são desprovidas de valor. Staniloae considera que existe uma relação gradual entre a Igreja Ortodoxa e as outras igrejas, denominadas incompletas. “Consideramos que são igrejas incompletas, algumas mais próximas da conclusão, outras mais distantes” [Teologia Dogmatică Ortodoxă, vol. 2].

Por esta posição, o teólogo romeno corrigiu a opinião do metropolitano Platão, que considerou que “todas as denominações são separações iguais” da Igreja Una. Seguindo a tradição ortodoxa, segundo Pe. Staniloae, devemos considerar que
“as denominações não ortodoxas são separações que se formaram em uma certa relação com a Igreja completa e existem em uma certa relação com ela, mas não comungam com a plena luz e poder de Cristo, o sol”.
De certa forma, seguindo essa lógica, a Igreja Una compreende, em certa medida, “todas as denominações que dela se separaram, porque não puderam separar-se completamente da Tradição nela presente”.

A proibição do filioque pelo Papa Leão III

Carlos Magno é coroado pelo Papa Leão III.
 
O historiador John Julius Norwich relata em Absolute Monarchs, a History of the Papacy como o Papa Leão III (750-816) proibiu a adição do filioque no Credo, embora essa decisão tenha sido ignorada e desobedecida pelo imperador Carlos Magno e a Igreja franca:
Ele [Carlos Magno] já havia feito uma intervenção moderadamente desastrosa no debate iconoclasta; em 810 ele se envolveu mais uma vez em questões teológicas, desta vez sobre outro velho cavalo de guerra, a cláusula filioque. O Credo original determinado pelos Concílios de Nicéia e Constantinopla sustentava que o Espírito Santo “procede do Pai”; a isso, a partir do século VI, a Igreja Ocidental acrescentou a palavra filioque, “e do Filho”. Na época de Carlos, essa adição foi geralmente adotada em todo o império franco e, em 809, foi formalmente endossada pelo Concílio de Aachen, sua própria capital. Dois anos antes, os monges francos no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, o introduziram em seus serviços, despertando uma oposição furiosa da comunidade oriental do vizinho Mosteiro de São Saba, após o que encaminharam a questão ao papa para uma decisão definitiva.

Leão [III] estava em um dilema. Como um ocidental devoto, ele estava perfeitamente feliz com a palavra ofensiva [isto é, com o ensino de que o Espírito "procede do Pai e do Filho" de algum modo], para a qual havia boa autoridade bíblica. Por outro lado, ele estava preparado para admitir que a Igreja Ocidental não tinha o direito de adulterar um Credo que havia sido redigido por um Concílio Ecumênico, e as relações com Constantinopla já eram bastante difíceis sem desencadear outro conflito. Sua solução foi uma tentativa de fazer as duas coisas: aprovar a doutrina enquanto suprimia a própria palavra – o que ele fez, não por meio de qualquer edito inflamatório, mas por ter o texto do Credo em sua forma original – ou seja, sem o filioque — gravada em grego e latim em duas placas de prata que foram fixadas nos túmulos de São Pedro e São Paulo. Seu endosso da unidade das duas igrejas em sua autoria conjunta do antigo Credo dificilmente poderia ter sido mais claro.

Carlos Magno, no entanto, estava previsivelmente furioso. Ele crescera com o filioque; se o Oriente se recusou a aceitá-lo, o Oriente estava errado. E quem se importava com o Oriente, afinal? Ele era o imperador agora; o papa deve pregar suas cores firmemente no mastro ocidental e deixar os hereges em Constantinopla por conta própria. Quando Leão [III] ordenou que ele removesse a palavra de suas liturgias, ele não fez nada e não respondeu; e quando, em 813, ele decidiu fazer de seu filho Luís co-imperador, ele claramente deixou de convidar o papa para realizar a cerimônia.
Outro historiador, Henry Chadwick, narra assim a resposta de Leão III em East and West, the Making of a Rift in the Church:
(...) Leão III evidentemente considerou as trocas neste debate como sendo assuntos de grande importância pública para a comunidade em geral. Em protesto contra os francos, talvez para tranquilizar os numerosos gregos em Roma, ele fez com que fossem erguidos em ambos os lados do memorial de São Pedro dois escudos de prata inscritos com o Credo de Constantinopla (381) em grego e latim, em ambos os casos sem Filioque. (Os escudos estavam lá 300 anos depois para Abelardo ver e comentar.) O Sacramentário Gelasiano do século VIII mostra que a forma de Credo usada em Roma no catecismo durante o século VIII não tinha filioque, de modo que Leão [III] estava afirmando a tradição romana existente, mesmo que tenha havido apenas uma declaração consciente de dissidência de Aachen. Que em Aachen houvesse qualquer intenção séria de seguir o desejo do Papa Leão de que o filioque fosse abandonado é muito improvável. Dois séculos depois, o filioque havia se tornado tão universal em todo o Ocidente latino que, aparentemente, até Roma acabou por ceder no ponto de uso litúrgico sob pressão dos Ottos saxões.
O registro da conferência entre os delegados de Aachen e o Papa Leão III é especialmente interessante pelo modo como o Papa via a autoridade do Credo. A seguir estão algumas passagens da conferência desses delegados com o Papa Leão, conforme relatado por Smaragdus, Abade de São Miguel em Lorena (Tom. Vii. Cone. Col. 1194.):
Delegados [francos]: Os mesmos criadores do Credo não teriam se saído bem se, acrescentando apenas quatro sílabas, eles tivessem tornado claro para todas as idades seguintes um mistério de fé tão necessário? 
Papa: Como não me atrevo a dizer que não teriam feito bem se o tivessem feito, porque, sem dúvida, teriam feito com ele como com o resto que omitiram ou colocaram, sabendo o que fizeram, e sendo iluminados não pela sabedoria humana, mas divina, então nem ouso dizer que eles entenderam este ponto menos do que nós: pelo contrário, eu digo que eles consideraram por que o deixaram de fora, e por que, uma vez deixado de fora, eles proibiram isso ou qualquer outra coisa a ser adicionada posteriormente. Considerai o que pensais de vós mesmos; pois, quanto a mim, não digo apenas que não me colocarei acima (daqueles santos Padres), mas Deus me livre de que eu me iguale a eles.

O protestantismo e a unidade da Igreja

 


I

De acordo com o protestantismo, a Igreja não precisa existir como uma organização única, dotada de unidade visível. Ela está onde "o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho" (Conf. Augburgo, n. 7). Diante das divergências de crença e prática entre as várias denominações protestantes, apela-se ao conceito de um núcleo essencial da fé, ou seja, a Igreja estaria dispersa entre todas as denominações que confessam os artigos fundamentais.

Entretanto, não existe consenso sobre quais artigos de fé seriam fundamentais ou secundários. O protestante se vê entre duas possibilidades, igualmente insatisfatórias: por um lado, reduzir a unidade da Igreja a um número pequeno de crenças - somente o Credo Apostólico, para alguns, ou simplesmente a confissão de que "Jesus é Senhor" -, como uma espécie de "menor denominador comum"; por outro lado, exigir a confissão de todos os artigos de determinada denominação (a presbiteriana ou a luterana, por exemplo), para que alguém ou alguma comunidade seja considerada parte da Igreja de Cristo.

A primeira proposta é tendente ao liberalismo e à mediocridade. Ela permite que quase todo tipo de erro seja legitimado na Igreja, como parte do ensino desta ou daquela denominação. A segunda proposta implica em negar que o protestantismo, tomado em seu conjunto, possa ser a Igreja de Cristo. Significa dizer que só aquela denominação específica é a Igreja verdadeira - uma alegação impossível, já que o protestante nega a infalibilidade de qualquer credo ou confissão (essa é a essência da sola scriptura).

Como decorrência da falibilidade de todos os credos e confissões, sempre é possível rever e mudar as interpretações. Cada nova geração e cada cristão individualmente deve verificar ponto a ponto dos ensinamentos de sua denominação, aceitando-os ou rejeitando-os de acordo com sua interpretação do texto sagrado. Por isso surgiram tantas denominações novas.

II

Em contraste, quando a Bíblia diz que devemos “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4,3), a unidade da Igreja é descrita nos seguintes termos:
Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos vós (Ef 4,4-6).
Sobre os ministérios como dons de Cristo na Igreja, São Paulo nos diz:
Ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; (...) para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina (Ef 4,11-14).
Em outra passagem, falando da participação dos crentes na culto: “Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão” (1 Cor 10,17).

Em outras palavras, a Igreja é uma só, pela participação comum (comunhão) em certas realidades: Deus, Jesus Cristo, a graça, a doutrina, os sacramentos. Alguns desses elementos são invisíveis (por exemplo, a graça), mas outros são visíveis (a profissão de fé, os ministérios, os sacramentos).

É inconcebível pensar que várias comunidades, adorando diferentes “senhores”, com “fés” diferentes, “pães” (eucaristias) diferentes, e pastores diferentes (isto é, não reconhecendo mutuamente os pastores e doutores umas das outras), poderiam formar uma só Igreja. Não seria “um só corpo”, mas sim um aglomerado, uma mera soma de todas as denominações. Por isso, a unidade é uma das marcas da Igreja no Credo Niceno.

No protestantismo não existe participação nos mesmos sacramentos. O batismo infantil de muitas denominações (presbiterianos, metodistas, luteranos) é rejeitado por outras (batistas, pentecostais) como enganoso, ilícito ou até herético. Logo, não há "um só batismo". Da mesma forma, a eucaristia que muitos celebram como o verdadeiro corpo de Cristo (luteranos e alguns anglicanos), é vista por outros grupos (batistas, presbiterianos) como erro, superstição e até idolatria. Por isso, um lado não aceita participar de modo algum na mesma "ceia do Senhor" com o outro lado.

Também não existe uma só doutrina. É claro que não estou falando da mera existência de controvérsias doutrinárias. O problema é que, no protestantismo, as diferenças doutrinárias dão lugar a separações definitivas: cada lado passa a reunir-se exclusivamente com aqueles que concorda. Depois de um tempo, alguns passam a pensar que aqueles diferenças doutrinárias “não tem importância”, já que parece impossível resolvê-las - mas isso também pode ser perigoso e levar ao indiferentismo. Isso porque não existe uma autoridade capaz de resolver definitivamente uma controvérsia, pondo fim às disputas, nem uma tradição considerada guiada pelo Espírito Santo que se deva seguir.

O resultado da grande diversidade doutrinária do protestantismo é minar a confiança e segurança que o cristão deve ter com a doutrina. Se algumas denominações ordenam "pastoras" e outras não; algumas batizam para perdão de pecados e outras só como "simbolismo"; algumas creem receber o verdadeiro corpo de Cristo e outras apenas pão e vinho; algumas imaginam que a salvação não pode jamais ser perdida e outras ensinam o contrário; algumas ensinam que Cristo morreu por todos e outras que ele morreu somente pelos eleitos; algumas celebram "línguas estranhas e profecias" e outras denunciam isso; e assim por diante, qual a confiança o cristão terá diante desse mar de contradições?

Mas repito: o problema não é que simplesmente haja discordâncias, mas que essas discordâncias sejam insolúveis e divisoras. O que para uns é sagrado, para outros é idolatria e superstição. Nem os Padres da Igreja e o cristianismo histórico escapam das mais graves acusações, a depender de qual denominação protestante consultamos.

III
 
Outra questão relevante é a sucessão dos ministros. A maioria dos protestantes não entende a importância de uma legítima sucessão no ministério eclesiástico. A questão envolvida aqui é a seguinte: de onde os ministros protestantes receberam a missão para ensinar? Quem estabeleceu as igrejas protestantes?

Em primeiro lugar, devemos distinguir entre dois tipos de missão: a extraordinária (ou direta) e a ordinária (ou mediata). Os apóstolos de Cristo tinham uma missão extraordinária, diretamente de Deus (Gal 1,12). Já os pastores (bispos e presbíteros) recebem essa missão por intermédio da Igreja que os chama e ordena:
Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei... (Tt 1,5)

E este parecer contentou a toda a multidão, e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nicanor, e Timão, e Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia; e os apresentaram ante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos (At 6,5-6)

A ninguém imponhas precipitadamente as mãos, nem participes dos pecados alheios; conserva-te a ti mesmo puro (1 Tm 5,22).

Por cujo motivo te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti pela imposição das minhas mãos (2 Tm 1,6).
Não é evidente que estamos diante de um padrão aqui? Os pastores e ministros da Igreja não autoproclamavam-se como tais. Eles tinham de ser comissionados pela Igreja, ordenados (mediante a imposição de mãos) por outros que já exerciam o ministério. Isso fica claro quando os apóstolos desautorizavam pregadores autoproclamados:
Portanto ouvimos que alguns dentre nós, aos quais nada mandamos, vos têm perturbado com palavras, confundindo as vossas almas (Atos 15,24).
Algumas traduções aqui trazem "aos quais não demos comissão" ou "sem nossa autorização".

Por isso também os primeiros Padres da Igreja enfatizaram o mesmo padrão. Clemente de Roma proclama, por exemplo, que Cristo "foi enviado por Deus, e os apóstolos por Cristo". Então os apóstolos, "pregando pelos campos e cidades... apontaram as primícias [de seus trabalhos], tendo primeiramente os provado pelo Espírito, para serem bispos e diáconos daqueles que iriam posteriormente crer... E depois [os apóstolos] deram instruções, para que, quando estes adormecessem, outros homens aprovados deveriam sucedê-los no ministério".

Irineu de Lyon também diz: "Eis por que se devem escutar os presbíteros que estão na Igreja, e que são os sucessores dos apóstolos, como o demonstramos, e que com a sucessão no episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai". E ainda: "Quanto a todos os outros que se separam da sucessão principal e em qualquer lugar que se reúnam, devem ser vistos com desconfiança, como hereges e de má fé, como cismáticos cheios de orgulho e de suficiência", pois "o caráter distintivo do Corpo de Cristo... consiste na sucessão dos bispos aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar ela esteja".

Cipriano de Cartago assevera que "não pode ser reconhecido como bispo, quem, sucedendo a ninguém, e desprezando a tradição evangélica e apostólica, surgiu por si mesmo". Pois aquele "que não foi ordenado na Igreja não pode nem ter nem manter a Igreja de qualquer forma".

De acordo com Hipólito de Roma, os bispos são "seus [dos apóstolos] sucessores, e participantes nessa graça, sumo-sacerdócio, e ofício de ensinar, bem como reputados guardiões da Igreja". E de acordo com Eusébio de Cesaréia, "os primazes, os juízes e os conselheiros dessa bela cidade [da Igreja] receberam sua missão dos apóstolos e discípulos do Salvador, e desde sua sucessão, crescendo como que de uma boa semente, os líderes da Igreja de Cristo que agora florescem".

Estes são apenas alguns exemplos. Não basta que as denominações protestantes, hoje em dia, observem isso e evitem "pastores autoproclamados" em suas próprias denominações. Isso não é suficiente, pois é preciso que essa sucessão seja ininterrupta até os apóstolos. De outro modo, nós mesmos nos encontraremos numa comunidade que surgiu sem o devido chamado e comissão da Igreja.

Não se trata de uma sucessão de ministros apenas. Como diz John Karmiris, essa sucessão ininterrupta inclui o culto de adoração a Deus (na eucaristia), os sacramentos, a doutrina apostólica e todo o povo:
É necessário acrescentar que a sucessão apostólica não está limitada apenas à linha histórica ininterrupta dos bispos ou à sucessão do ensinamento apostólica (successio doctrinae), mas também compreende a sucessão apostólica do serviço santificante e sua dignidade, bem como a contínua e ininterrupta linha de gerações de cristãos de todas as épocas, e a sucessão apostólica de toda a Igreja. A Igreja, depois da morte dos apóstolos, era a portadora principal e geral da apostolicidade e do serviço apostólico, considerando que o Espírito de Pentecostes foi participado não somente aos doze apóstolos, mas a todo o povo de Deus da nova aliança e à Igreja inteira através de multidão de dons sucessivamente transmitidos.
Ora, o protestantismo já nasceu em rompimento com a Igreja até então existente, negando a legitimidade desta e de seus ministros, doutrina, sacramentos, etc. Isso significa que o próprio protestantismo não tem onde sustentar sua missão. Quem a teria comunicado?

Note bem que o problema não está apenas em saber se é necessário que os bispos comuniquem essa missão ou se ela poderia ser comunicada por simples presbíteros ou pelo povo. Ainda que seja comunicada pelo povo, é necessário que haja um povo fiel que seja capaz de comunicá-la aos pastores. Esse povo cristão verdadeiro deve, portanto, existir antes dos pastores que sejam comissionados por ele. Por isso Francisco de Sales resume o dilema:
Ora, é necessário que ou eles tenham errado, ou que errada seja a Igreja que os ordenou; por consequência, ou esta Igreja era falsa, ou aqueles que receberam a missão dela abusaram deste privilégio. Se tomarmos como argumento a hipótese de que a Igreja era falsa, a missão que eles tinham era absolutamente falsa, pois de uma Igreja falsa, como eles imputam à nossa, não pode sair verdadeira missão. Se falsa é a Igreja que os ordenou, onde está a missão que dizem ter? De uma Igreja falsa não se pode extrair uma missão legítima (...).

Por outro lado, se a Igreja na qual eles foram instruídos e ordenados era a verdadeira, eles são terminantemente culpáveis de heresia por terem saído e pregado contra sua Fé; se não era uma Igreja verdadeira, ela não tinha poder algum para ordená-los.
No caso dos reformadores protestantes - como Lutero, Zwínglio e Calvino -, a conclusão que segue é que a Igreja não os enviou. Pois, segundo eles mesmos afirmam, o povo cristão existente logo antes de suas pregações não seria verdadeiramente cristão, tampouco seus bispos e presbíteros (os quais são denominados "falso sacerdócio" pelos reformadores). Nenhum deles - nem o povo, nem os bispos -, portanto, poderia ter comunicado aos reformadores a sua missão.

Resta então a alegação de uma missão extraordinária, isto é, diretamente de Deus. De fato, Lutero chegou a fazer alegações nesse sentido, apresentando-se como uma espécie de profeta. Mas, neste caso, faltam os milagres e sinais que necessariamente acompanham a missão extraordinária (2 Cor 12,12).

O problema da sucessão apostólica (e consequentemente da missão dos ministros) pode parecer meramente teórico, mas está longe disso. O fruto da nova concepção protestante é que passou a ser possível uma multiplicação infinita de denominações e pastores autoproclamados. Se a denominação anterior protestar contra a atividade "não autorizada", a resposta será sempre a mesma: "estamos seguindo a Bíblia".

IV

Agostinho de Hipona enfatizou a importância da comunhão com a única Igreja verdadeira, como uma sociedade visível de fiéis:
Qualquer que concorde com a Escritura Sagrada sobre a cabeça, mas não esteja em comunhão com a unidade da Igreja, não está na Igreja, uma vez que separa-se do testemunho de Cristo a respeito de seu corpo, que é a Igreja (Agostinho de Hipona, século IV, em Sobre a unidade da Igreja, IV, 7).

O consentimento dos povos e nações mantém-me na Igreja, assim como sua autoridade, inaugurada por milagres, nutrida pela esperança, ampliada pelo amor, instituída pela idade. Assim a sucessão de bispos que mantém a partir da sede própria do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor, depois de sua ressurreição, deu-lhe o cargo de apascentar suas ovelhas, até o episcopado presente (Agostinho de Hipona, século IV, em Contra a epístola fundamental dos maniqueus, IV).
Mas como reconhecer essa Igreja? A resposta está nas notas da Igreja verdadeira no Credo Niceno: unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade.

Daí segue que reconhecer a Igreja de Cristo é dever do cristão que deseja realmente perseverar na unidade. O professor Robert Koons ensina:
A posição da sola scriptura coloca um fardo impossível sobre cada crente: para reconhecer as verdadeiras congregações, o crente individual deve avaliar a confissão da congregação para verificar sua ausência de erro. Para realizar essa tarefa o crente deve não apenas crer nas doutrinas essenciais da fé, mas também saber exatamente quais doutrinas são essenciais e quais são matéria de legítima diferença de opinião. Isso parece inconsistente com a variedade de talentos, dons e vocações: não se pode esperar que todo crente seja um teólogo. A teoria da sola scriptura condena a maioria dos crentes a uma exclusão de facto da verdadeira Igreja, em virtude de sua inabilidade de distinguir a verdade do erro em todas as questões disputadas.

A posição católica, em contraste, coloca um fardo razoável no leigo: ele deve simplesmente reconhecer quais congregações estão em comunhão com aquela Igreja global que está em maior continuidade historicamente com a Igreja dos Apóstolos, isto é, com a Igreja que possui a alegação mais segura de ser a Igreja Católica (universal). Em outras palavras, o crente deve dominar apenas uma, relativamente pequena, parte das doutrinas: aquelas relativas à identidade da verdadeira Igreja; não, como o protestantismo requer, um conhecimento exaustivo de todas as matérias disputas da teologia. Isso efetivamente limita a escolha do crente em duas: a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental.

Para ser justo, existe um tipo de responsabilidade individual que é inescapável. O leigo católico, não menos que o protestante, deve usar seu próprio julgamento para reconhecer qual Igreja é a Igreja visível em sua plenitude. Esse fardo não pode ser dado a outro. Entretanto, há uma diferença palpável e historicamente real entre as duas concepções da Igreja. Para os protestantes, o crente individual possui apenas um critério: ele deve comparar os ensinamentos de cada grupo de congregações com o ensinamento da Bíblia em cada ponto de doutrina, ou, pelo menos, em cada ponto essencial. No entanto, trocar a segurança em cada ponto de doutrina pela segurança em cada ponto essencial é, na prática, de pouca ajuda, já que existe quase tanta discordância sobre quais matérias são essenciais quanto sobre as doutrinas em si. (Luteranos confessionais, por exemplo, insistem que a verdadeira igreja deve adotar a posição correta com respeito a cada doutrina proposta, se ela é ou não ensinada ou implicada na Escritura. Outras denominações insistem que uma lista bem menor de doutrinas, talvez somente aquelas do Credo Niceno, deve ser tida como essencial.) Em contraste, segundo a visão católica, o crente individual pode reconhecer a Igreja verdadeira, não apenas examinando suas doutrinas uma por uma, mas também investigando sua conexão histórica (por uma transmissão social ou física) com os Apóstolos. Em alguns casos isso também pode ser um processo difícil (por exemplo, quando houve houve dois ou mesmo três "papas" competindo durante o período de Avinhão), mas, pela maior parte, isso provou-se ser praticamente factível, enquanto o princípio protestante falhou completamente no teste da história.
É praticamente impossível que o cristão comum estude todas as questões doutrinárias para, por sua própria investigação, determinar o que é heresia, o que é ortodoxia, o que é indiferente. Mas se temos a obrigação de aceitar a Igreja que o próprio Cristo estabeleceu, então a resposta será muito mais simples. E esta é, realmente, a resposta que os cristãos abraçaram ao longo dos séculos. É a única capaz de assegurar a unidade fundada na humildade.