O que os protestantes não entendem sobre a "Tradição"


O “apelo à Tradição” não é necessariamente um apelo a um corpo de doutrinas extra-bíblicas transmitidas oralmente desde os apóstolos. Essa não é a questão principal. O valor está na ideia de que a Igreja como um todo — continuamente desde os apóstolos até os nossos dias — é testemunha da Verdade plena. Em outras palavras, é a confiança de que a Igreja é guiada pelo Espírito Santo. Isso é o que embasa o “apelo à Tradição”.

Assim, por exemplo, Irineu afirma: “Onde está a Igreja, aí está o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda graça.” E também:

“É possível a todos contemplar claramente, em toda Igreja, a tradição recebida dos apóstolos e a manifestação da verdade; pois podemos enumerar os que foram constituídos bispos nas Igrejas pelos Apóstolos e seus sucessores até nós, pelos quais nos foi transmitida, sem interrupção, a pregação apostólica.” (Contra as Heresias, III, 24,1 e III, 3,1-3).

Na mesma linha, Agostinho declara: “Seguro é o juízo do orbe inteiro: no consenso da Igreja difundida por toda a terra, reconhece-se a sentença da verdade contra as facções particulares” e ainda:

“A autoridade católica, confirmada pela sucessão das sedes e pela concorde voz dos povos, recomenda com justiça que se creia o que foi transmitido desde os apóstolos e é guardado na Igreja.” (Contra a Carta de Petiliano, II, 51; De utilitate credendi, XVII, 35).

Também Vicente de Lérins formula a regra segundo a qual se deve crer “o que foi acreditado por todos, em todo lugar e sempre” (Commonitorium, II, 5). A lógica por trás dessa regra é que, se algo foi tão universal na Igreja, é porque necessariamente está correto — e isso porque a Igreja é a garantia. Essa é a lógica compartilhada pelos Padres da Igreja. Em outras palavras, o “apelo à Tradição” é, na verdade, um “apelo à Igreja”.

Por exemplo, uma doutrina-teste quanto a esse princípio no início da Reforma é a do batismo. Huldrych Zwingli escreveu:

“Todos os antigos erraram no tocante ao batismo, pois pensaram que o sacramento possuía alguma virtude em si que purificava os pecados e salvava as almas. [...] Creio firmemente que todos os doutores desde os tempos dos apóstolos até o presente estiveram no erro acerca do significado do batismo, porque não compreenderam sua verdadeira natureza.” (De Baptismo, 1525).

Esse raciocínio é o oposto do “apelo à Tradição” no sentido ortodoxo (ou católico). Não se trata de uma doutrina transmitida apenas oralmente, mas da doutrina bíblica lida segundo o entendimento eclesiástico e patrístico.

Outro exemplo recente é o do pastor reformado Marcos Granconato, que afirmou que “os Pais apostólicos” tinham um entendimento fundamentalmente errado da salvação, pois "ensinavam abertamente a salvação pelas obras” (vídeo aqui). Ou seja, ele supõe que a Igreja Cristã perdeu o básico do evangelho já nas primeiras gerações apostólicas.

Por outro lado, posso dar dois exemplos interessantes do uso correto do “apelo à Tradição”, um de Lutero e outro de Agostinho. Lutero escreve:

“Que o batismo das crianças é agradável a Cristo é suficientemente provado de Sua própria obra, ou seja, que Deus santifica tantos desses que foram batizados assim e lhes deu o Espírito Santo; e que há ainda hoje muitos nos quais percebemos que possuem o Espírito Santo tanto por sua doutrina quanto por suas vidas. [...] Ora, se Deus confirma o batismo pelos dons do Espírito Santo, como é plenamente perceptível em alguns dos Padres da Igreja, como em Bernardo, Gerson, João Huss e outros, que foram batizados na infância, e se a santa Igreja cristã não pode perecer até o fim do mundo, devem admitir que esse batismo infantil é agradável a Deus. Porque Ele não poderia fazer oposição a Si mesmo, ou patrocinar a falsidade e a iniquidade, ou por sua promoção comunicar Sua graça e Espírito. Essa é, na verdade, a melhor e mais forte das provas para os simples e iletrados. Pois não tirarão de nós, nem subverterão, este artigo: ‘Creio na santa Igreja cristã, a comunhão dos santos’.” (Catecismo Maior, IV, 49–56).

Veja como Lutero usa o “apelo à Igreja” como prova do batismo infantil. Ele também utiliza argumentos bíblicos, mas o modo como recorre à Igreja é o mesmo princípio lógico que move os ortodoxos a apelarem à Tradição. Quando se fala em rejeitar a sola scriptura, é disso que se trata em primeiro lugar.

Agostinho oferece outro exemplo da mesma lógica. Depois de citar o apoio bíblico de 2 Macabeus para as orações pelos mortos, ele acrescenta:

“Mas, mesmo que em nenhuma parte das Escrituras antigas isto se lesse, não seria pequena a autoridade de toda a Igreja, que nesta prática se manifesta, onde, nas orações do sacerdote, que são derramadas ao Senhor Deus junto ao seu altar, tem também o seu lugar a recomendação dos mortos.” (Sermão 172, 2).

Agostinho está afirmando o oposto de quem diz: “ainda que isso seja um costume universal e antigo da Igreja, por não se encontrar claramente nas Escrituras, devo rejeitá-lo”. É precisamente esse raciocínio que ele combate.

O “apelo à Tradição” é, primariamente, um apelo à Igreja: significa confiar que a Igreja universal é guiada por Deus e preservada na fé. A citação de Lutero sobre o batismo infantil ser garantido “pelo artigo da Igreja” ilustra isso perfeitamente, assim como a de Agostinho sobre as orações pelos mortos, válidas “mesmo que não estivessem escritas nas Escrituras”. Por outro lado, a afirmação de Zwingli de que “todos estiveram errados desde os apóstolos” exemplifica o raciocínio oposto — a desconfiança em relação à Igreja e a disposição de pensar que ela poderia ter falhado universal e fundamentalmente.

Secundariamente, o “apelo à Tradição” pode incluir também costumes extra-bíblicos. Basílio de Cesareia utiliza esse sentido ao mencionar práticas como a tríplice imersão e o sinal da cruz (De Spiritu Sancto, XXVII, 66–67). Outros Padres mencionam, nesse mesmo sentido, a invocação da intercessão dos santos ou as orações pelos mortos. Também é verdade que algumas doutrinas ortodoxas podem ser vistas como extra-bíblicas, como a assunção de Maria ou sua virgindade perpétua. Mas elas também são ancoradas nas Escrituras, de maneiras mais indiretas.

Do meu ponto de vista, o catolicismo romano foi longe demais. Costumes como as indulgências, a negação do cálice e o celibato universal do clero, e doutrinas como a infalibilidade papal e a imaculada conceição de Maria, extrapolam o que poderia ser legitimamente visto como “entendimento eclesiástico” ou “costume antigo”. Entendo, portanto, por que a Reforma surgiu em resposta a isso e procurou se basear nas Escrituras.

Por outro lado, também me parece que a Reforma foi longe demais na direção oposta. Negou elementos muito antigos e consensuais, como as orações pelos mortos e a regeneração batismal. Em algumas correntes, até o batismo infantil. Certos entendimentos sobre justificação são tão distantes da visão quase unânime da Igreja durante mais de mil anos que se torna impossível não questionar a orientação do Espírito Santo à Igreja. Tanto é assim que muitos protestantes “sentem” isso ao estudar os Padres: sentem que estão lendo pessoas que pensavam de modo mais “sacramental”, “ascético” e “eclesiástico” do que o cristianismo protestante moderno.

O próprio fato de o protestantismo se dividir em “denominações” já revela um entendimento distinto da natureza da Igreja e da necessidade de um consenso eclesiástico comum. A ideia de coexistência entre denominações — uma batizando bebês, outra não; uma crendo na presença real, outra não — pareceria inconcebível a Irineu, Cipriano, Atanásio ou Agostinho. Este último, inclusive, reconhece divergências entre os Padres (como Cipriano, sobre o rebatismo), mas observa que tais controvérsias eram resolvidas pela Igreja em consenso, nos concílios (De Baptismo, II, 3). Mesmo os Padres pré-nicenos, como Irineu e Cipriano, tinham uma visão surpreendentemente elevada da autoridade da Igreja e do “poder das chaves” para encerrar questões.

O problema é que, ao olhar para o protestantismo, percebo que ele não reformou apenas o que era realmente problemático ou tardio. A rejeição das orações pelos mortos, por exemplo, me parece um grande erro. Do mesmo modo, doutrinas como a “perseverança dos santos” ou a “expiação limitada” carecem de base bíblica sólida e se opõem ao entendimento dominante da Igreja durante mais de mil anos. É difícil aceitar que a Igreja tenha falhado em formular corretamente o “básico do evangelho” por tanto tempo. Isso, para mim, destrói o fundamento do protestantismo reformado — e explica por que muitos buscam no luteranismo uma alternativa mais equilibrada.

Basta pensar na dinâmica do cristianismo primitivo: os cristãos oravam pelos mortos e ensinavam a regeneração batismal antes mesmo de haver um cânon definido do Novo Testamento. No século IV, práticas que hoje parte do protestantismo rejeitaria como “blasfemas” ou “supersticiosas”  — votos monásticos, intercessão dos santos, sacrifício eucarístico como re-apresentação do sacrifício de Cristo — já eram universais, enquanto ainda havia dúvidas sobre a canonicidade de livros como Apocalipse ou Hebreus. A maioria dos cristãos sequer possuía uma coletânea completa das Escrituras, e poucos sabiam ler. Se a Igreja falhou tão miseravelmente nesses séculos, como exatamente a providência de Deus cuidou de sua mensagem? Isso, para mim, não faz sentido.