Sobre a penitência (Metropolita Hilarion Alfeyev)

 

'Arrependei-vos, pois o reino dos céus está próximo' (Mt 3:2). Com estas palavras, proferidas por São João Batista, Jesus Cristo conduz a sua própria missão (Mt 4:17). O cristianismo em sua origem era um chamamento para o arrependimento, a conversão para uma 'mudança de mente' (metanóia). Uma transformação radical do seu modo de vida e de pensamento, um espírito renovado e um sentimento de rejeição das ações e pensamentos inspirados pelo pecado, uma transfiguração da pessoa humana. Esses são os principais elementos da mensagem de Cristo.

O arrependimento é sinônimo da palavra 'retorno'. Arrependimento significa afastar-se da vida de pecado e voltar para Deus. O modelo de arrependimento é oferecido por Jesus Cristo na parábola do filho pródigo (Lc 15:11-24). Depois de levar uma vida de pecado 'em um país distante', ou seja, longe de Deus, o filho pródigo, depois de ter passado por muitas tribulações, retorna a si mesmo e nisso decide voltar para seu pai. Seu arrependimento começa com a conversão ('veio a si mesmo'), que se transforma em uma decisão de retorno ('eu vou levantar e seguir'), para posteriormente retornar a Deus ('Ele levantou-se e foi'). Segue uma confissão ('Pai, pequei contra o céu e contra ti'), que leva ao perdão ('Rápido, traga a melhor roupa'), adoção ('filho meu') e ressurreição espiritual ('Ele estava morto e reviveu'). Daí, vemos que o arrependimento é um processo dinâmico, um caminho para Deus, e não apenas a consciência de seus pecados.

No sacramento do batismo cristão, todos os pecados são perdoados. No entanto, "não há homem que vive sem pecados". Os pecados cometidos após o Batismo privam a pessoa humana da plenitude da vida em Deus. Daí a necessidade de um "segundo" batismo, um termo usado pelos padres da Igreja para denotar o arrependimento e destacar a energia que ele tem de purificar, renovar e santificar. O sacramento da penitência é a cura espiritual para a alma. O pecado, dependendo de sua gravidade, causa na alma uma pequena lesão ou uma mácula substancial, doenças, por vezes graves, ou mesmo incurável. 

Para manter a boa saúde espiritual, as pessoas devem fazer visitas regulares ao seu confessor, que é o médico da alma: 'Você pecou? Vá à igreja, faça penitência por seu pecado [...]. Há aqui um médico, não um juiz. Aqui, a pessoa é uma condenada, mas todos recebem o perdão dos pecados', diz São João Crisóstomo. 

Desde o início do cristianismo, os apóstolos, bispos e presbíteros, recebem confissões e concedem a absolvição. Cristo disse aos discípulos: 'O que ligares na terra será ligado no céu,e o que desligares na terra será desligado nos céus' (Mateus 18,18). Este poder de 'ligar e desligar', transmitido aos apóstolos e através deles, aos bispos e padres, é expresso na absolvição por parte do sacerdote, a aqueles que se arrependem, em nome de Deus.

Mas por que é necessário confessar seus pecados a um padre, um irmão em humanidade? Não é suficiente dizer tudo a Deus e receber dele a absolvição? Para responder a essa pergunta, devemos lembrar que na igreja cristã, um padre não é apenas uma 'testemunha' da presença e da ação de Deus; na verdade, quando o padre atua nas celebrações litúrgicas e nos sacramentos, o próprio Deus está presente através dele.

A confissão dos pecados é sempre dirigida a Deus, e o perdão é sempre dado por ele. Ao aceitar a ideia da confissão na presença de um sacerdote, a Igreja tem sempre em conta um fator psicológico: você pode não se sentir envergonhado ao apenas fazer uma lista dos seus pecados diante de Deus, mas é sempre constrangedor revelar esses pecados a outro ser humano. Além disso, o padre é um diretor espiritual, um conselheiro que pode dar conselhos sobre como evitar tais e quais pecados no futuro.

O sacramento da Penitência não se limita a uma simples confissão de pecados. Implica também em recomendações, por vezes em sanções do padre, quando especialmente no sacramento da Penitência, o sacerdote, age na sua qualidade de pai espiritual. Se o penitente deliberadamente esconder alguns dos seus pecados, seja por vergonha ou por qualquer outro motivo, o sacramento não será considerado válido. Portanto, antes de receber o penitente para a confissão, o padre avisa que a confissão deve ser sincera e completa: 'Não tenha vergonha ou medo, não esconda nada de mim [...] mas se você está escondendo algo, você estará pecando ainda mais'. 

Dietrich Bonhoeffer sobre a regulação da natalidade


O casamento envolve o reconhecimento do direito à vida que vai surgir, mas esse não é um direito que está à disposição do casal. Sem o reconhecimento básico desse direito, o casamento deixa de ser casamento e se torna um [mero] relacionamento. Ao reconhecer este direito, entretanto, é dado espaço ao livre poder criativo de Deus, que pode desejar deixar uma nova vida surgir deste casamento. Matar o fruto no ventre da mãe é ferir o direito à vida que Deus concedeu à vida em desenvolvimento. A discussão da questão de saber se um ser humano já está presente confunde o simples fato de que, em qualquer caso, Deus deseja criar um ser humano e que a vida desse ser humano em desenvolvimento foi deliberadamente tirada. E isso nada mais é do que assassinato. Vários motivos podem levar a tal ato. Pode ser um ato de desespero proveniente das profundezas da desolação humana ou da necessidade financeira, caso em que a culpa geralmente recai mais sobre a comunidade do que sobre o indivíduo. Pode ser que neste exato ponto o dinheiro possa cobrir uma grande quantidade de comportamento descuidado, ao passo que entre os pobres até mesmo as ações feitas com grande relutância vêm mais facilmente à luz. Sem dúvida, tudo isso afeta decisivamente a atitude pessoal pastoral de cada um para com a pessoa em questão; mas não pode mudar o fato do assassinato. A mãe, para quem essa decisão seria desesperadamente difícil porque vai contra sua própria natureza, certamente seria a última a negar o peso da culpa.

É também uma interferência no direito de desenvolver a vida, quando no casamento a vinda de uma nova vida é impedida em princípio, quando o desejo de ter um filho é totalmente excluído. Essa atitude básica difere do significado do casamento em si e da bênção que Deus concedeu ao casamento por meio do nascimento de um filho. Mas essa recusa fundamental da progênie em um casamento deve ser distinguida do controle de natalidade responsável concreto [em contraste a isso, o Catecismo Romano (2.7.13), p. 333, equipara contracepção com aborto e descreve ambos como assassinato]. Justamente porque a reprodução humana é uma questão de vontade de ter seu próprio filho, a razão responsável participa da tomada de decisões; o instinto cego não pode simplesmente receber rédea solta e depois alegar que é especialmente agradável a Deus. De fato, podem haver sérias razões em casos concretos para considerar a limitação do número de filhos. A questão do controle de natalidade se tornou uma questão candente nos últimos cem anos, e a prática foi aprovada por círculos generalizados em todas as denominações. Isso não pode ser simplesmente atribuído a um afastamento da fé e falta de confiança em Deus. Está indubitavelmente ligado ao crescente domínio da natureza pela tecnologia em todas as áreas da vida e às indiscutíveis vitórias que a tecnologia no sentido mais amplo conquistou sobre algumas realidades naturais, por exemplo, na diminuição da mortalidade infantil e no aumento significativo da média de idade da população. A população da Europa multiplicou-se várias vezes em termos absolutos ao longo dos últimos cem anos, apesar de uma queda constante da taxa de natalidade. Do ponto de vista da preservação da espécie, a redução da mortalidade infantil torna necessários menos nascimentos. Aqueles que censuram a tecnologia por mimar as pessoas a ponto de não estarem mais dispostas a fazer o sacrifício de cuidar de uma grande família não devem esquecer que foi precisamente o progresso tecnológico que tornou possível o crescimento surpreendentemente rápido da população europeia.

Essa consideração poderia levar a pensar no controle da natalidade amplamente praticado hoje como uma espécie de reação natural ao crescimento quase incontrolável dos povos europeus, como uma espécie de respiradouro natural da espécie humana. Essa observação geral não nos isenta, entretanto, da questão sobre da moralidade do controle da natalidade em si. A teologia moral católica se opõe fundamentalmente e, como resultado, o mesmo acontece com a instrução católica no confessionário. Isso leva a várias dificuldades. Mesmo a teologia moral católica admite a possibilidade de casos em que filhos adicionais em um casamento devam ser evitados, embora - com razão! - raramente permita a validade de tais casos. Seria errado, portanto, censurar a teologia moral católica por permitir rédea solta para cegar os instintos naturais nessas questões, enquanto exclui a responsabilidade humana e a razão de operar nesta área. Mas a moralidade católica, em princípio, conhece apenas um meio de alcançar esse objetivo: a abstenção completa [Nota do tradutor: Bonhoeffer está escrevendo antes da Humanae Vitae, que oficializou no catolicismo a possibilidade da regulação dos nascimentos pela abstinência periódica]. Assim, ele mina a base corporal do casamento e, portanto, ameaça abolir e destruir o próprio casamento, retirando-lhe um direito fundamental. Além disso, exige da maioria das pessoas algo que não pode ser alcançado. É difícil imaginar que o arrependimento no confessionário por tal falha pudesse ser honestamente combinado com a resolução de renunciar a esse pecado para sempre. A teologia moral católica baseia seu rigorismo na visão de que o comportamento que impede deliberadamente o propósito natural do casamento, a saber, a reprodução, não é natural. Na verdade, não limita o propósito do casamento à reprodução, como costuma ser defendido. Kant foi o primeiro a fazer isso! Mas não quer permitir que o propósito secundário do casamento, a comunhão sexual, contradiga o propósito primário, a reprodução. Por mais plausível que essa argumentação possa parecer, ela se envolve em dificuldades insolúveis. Elimina a não naturalidade da contracepção, mas substitui isso pela não naturalidade de um casamento sem comunhão corporal.

Além disso, no que diz respeito à naturalidade do comportamento, não faz diferença em princípio se a razão responsável participa de uma decisão de abstenção da comunhão sexual a partir de agora, ou de uma decisão a favor da continuação da comunhão sexual. Nem a indulgência ilimitada com os instintos cegos, nem a abstinência conjugal, nem a contracepção resolvem o problema colocado aqui, e nenhum desses comportamentos possíveis tem, em princípio, qualquer vantagem sobre o outro. É muito importante que, nessas circunstâncias, a consciência não seja sobrecarregada de maneira errada. De fato, pode ser necessário fazer as exigências mais rigorosas por causa do mandamento de Deus, mas os fatos aqui não são tão claros. Precisamos abrir espaço para a liberdade de uma consciência responsável perante Deus. Todo rigorismo inautêntico pode levar a consequências desastrosas apenas nesta área, desde o farisaísmo até a rejeição completa de Deus [Não pode haver dúvida de que a posição da moralidade católica neste ponto afastou completamente incontáveis homens do confessionário. O católico aceitar isso de olhos abertos pode demonstrar a força de sua convicção, mas mesmo assim pode ter consequências imprevisíveis].

Neste sentido, em nome da integralidade do matrimônio, não se pode deixar de reconhecer o direito à plena comunhão corporal, baseado no amor do casal casado, que é distinto, mas nunca separado do direito à reprodução. Ao mesmo tempo, deve-se conceder que esse direito da natureza será reconhecido pela razão, porque é um direito humano. A forma como a natureza e a razão se relacionam em casos individuais só será decidida com responsabilidade em cada caso. Mas então deve ser admitido abertamente que não há diferença de princípio entre os métodos que a razão escolhe usar. Como isso indica, é uma grande sorte, que também evita muitos conflitos internos, quando a natureza e a razão estão tão em sintonia uma com a outra que toda essa gama de problemas no casamento não precisa ser levantada. Que esta boa fortuna seja concedida a relativamente poucos na geração de hoje é um fardo que devemos suportar com responsabilidade. É irresponsável, porém, desconfiar dessa boa fortuna e jogá-la aos ventos onde ela existe. Finalmente, a percepção de que a fé cristã pode alcançar essa boa fortuna por meio da graça só pode ser indicada aqui para discussão posterior.

~ Trecho retirado do livro Ethics.

Pe. Lawrence Farley sobre o sacrifício eucarístico



Como S. João Crisóstomo escreveu, na Eucaristia "o sacerdote se coloca diante do altar trazendo do alto, não fogo [como Elias trouxe em seu sacrifício no Monte Carmelo], mas o Espírito Santo. E ele oferece oração longa, não para que alguma chama acesa do alto consuma as ofertas, mas para que a graça caia sobre o sacrifício através dessa oração, acenda as almas de todos e torne-os mais brilhantes que a prata refinada pelo fogo... Não sabeis que nenhuma alma humana poderia suportar esse fogo sacrificial, mas todos seriam aniquilados se não fosse a ajuda poderosa da graça de Deus?" (Sobre o sacerdócio, cap. 7). Aqui temos um incentivo para nos portarmos corretamente e uma razão para temer. Entretanto, o povo não foge diante dessa expectativa, mas responde ousadamente, aguardando "misericórdia, paz, o sacrifício de louvor!"

(...)

Nessa oração [a anáfora] oferecemos nosso sacrifício a Deus, o único sacrifício que podemos oferecer - aquele oferecido de uma só vez por Cristo. Ele é o único verdadeiro Sacerdote na Igreja, pois o sacerdócio da Igreja tem sua raiz em Seu sacerdócio celeste e eterno. A Igreja oferece o sacrifício eucarístico ao apresentar perante Deus em ação de graças o sacrifício eterno de Cristo na Cruz. Como S. Cipriano disse, "a Paixão [a morte de Cristo] é o sacrifício do Senhor, que nós oferecemos" (Ep. 63). Nós oferecemos esse memorial em obediência a Cristo, que, na última Ceia, ordenou Sua Igreja a comer pão e beber vinho reunida "em memória" Dele, como Seu memorial, Sua anamnesis. Fazendo isso, Deus "se lembra" do sacrifício de Cristo na Cruz e de tudo que Ele realizou por nossa salvação - isto é, Ele torna essas realidades presentes e poderosas no meio de Seu povo. 

Let Us Attend, A Journey through the Orthodox Divine Liturgy (Padre Lawrence Farley).

Sobre a infalibilidade papal



Do ponto de vista da Igreja, esta nova fase do erro apresenta o seguinte aspecto: O conhecimento das verdades divinas atribuídas ao Bispo de Roma não depende da sua perfeição moral (testemunha Borgia e tantos outros)... Esse conhecimento, portanto, tem um caráter totalmente oracular.

Nenhum fato na Igreja pode ser entendido exceto por analogia com fatos semelhantes certificados pelas Escrituras. No Novo Testamento, as profissões de fé se apresentam em duas formas. Primeiro, existem profissões de fé que, sendo voluntárias e triunfantes, por assim dizer, são revelações concedidas à santidade e ao amor; tais são as profissões de Simeão, Natanael, São Pedro e, finalmente, a mais completa de todas, a de São Tomé.

Depois, há as profissões de fé involuntárias, resultado do medo e do ódio: essas são as profissões dos possuídos. Não conhecemos nenhuma profissão de fé que resulte da indiferença. Aparentemente, o suposto privilégio do Bispo de Roma não o eleva à primeira categoria (visto que independe de sua perfeição moral); em vez disso, isso o coloca na segunda categoria. Ou seja, esse privilégio o torna mais próximo dos possuídos do que dos apóstolos. Uma triste degeneração da humanidade se fosse verdade!

(Aleksei S. Khomiakov, Algumas observações de um cristão ortodoxo sobre as comunhões ocidentais, por ocasião de uma carta publicada pelo arcebispo de Paris, 1855)

* * *

Em 1850, um padre católico, Father Stephen Keenan, criou um catecismo na Irlanda que circulou bastante nos Estados Unidos também. Esse catecismo, chamado Keenan's Catechism, tinha um imprimatur dos Bispos da Escócia e da Irlanda. Era grandemente respeitado em muitos círculos católicos e considerado um catecismo conservador e voltado contra o protestantismo.

Eis uma das questões:
Q: Must not Catholics believe the pope in himself to be infallible? 
A: This is a Protestant invention; it is no article of the Catholic faith; no decision of his can oblige, under pain of heresy, unless it be received and enforced by the teaching body; that is, by the bishops of the Church.
[Tradução:
Q. Não devem os católicos crer que o próprio papa é infalível?
R. Isso é uma invenção protestante; não é nenhum artigo da fé católica; nenhuma decisão dele pode obrigar, sob pena de heresia, a menos que seja recebida e confirmada pelo corpo docente, isto é, pelos bispos da Igreja.]
Algumas décadas depois a infalibilidade papal tornou-se artigo de fé da Igreja Romana. Foi determinado no Concílio Vaticano I que as “declarações [ex cathedra] do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis”. O catecismo de Keenan foi então "corrigido".

Antes disso, outras manifestações do alto clero da Igreja Romana na Inglaterra e na Irlanda também indicavam a rejeição da infalibilidade papal. Um exemplo é a Declaração dos Arcebispos e Bispos da Igreja Católica Romana na Irlanda, assinada por dezenas de Arcebispos e Bispos em 25 de janeiro de 1824, que dispõe, sob juramento:
que não é um artigo da fé católica, nem é exigido deles que creiam, que o Papa é infalível.
Naquela época, a doutrina da infalibilidade era comumente atribuída "aos italianos" e rejeitada por católicos do norte da Europa.

Ou seja, o dogma foi proclamado sem um consenso claro da Igreja Romana, e isso considerando apenas o período imediato do século XIX. É um exemplo de como os dogmas são "produzidos" em Roma. Por isso C. S. Lewis dizia que não poderia estar em comunhão com Roma: "porque aceitar sua Igreja significa, não aceitar um certo corpo de doutrinas, mas aceitar antecipadamente qualquer doutrina que sua Igreja venha a produzir" (Christian Reunion and Other Essays, editado por Walter Hooper).

Nicholas Needham sobre o filioque

Trechos retirados de: The Filioque Clause: East or West?

Antes de Agostinho, a tendência geral da teologia patrística - especialmente no Oriente - era amplamente conceber a unidade de Deus principalmente em termos de Deus Pai [veja, por exemplo, a Confissão de Fé de Gregório Taumaturgo e as palestras catequéticas de Cirilo de Jerusalém, cap. 4]. De acordo com a máxima da teologia patrística grega, 'Há um Deus porque há um Pai' [veja Vladimir Lossky, The Mystical Theology of the Eastern Church, Londres, 1957, cap.3, especialmente p. 58]. É fácil para aqueles que foram criados no pensamento trinitário ocidental entender erroneamente isso. Dizer que Deus em sua unidade é principalmente o Pai não significa, para os Padres da Igreja anti-ariana, que o Filho e o Espírito Santo são menos divinos do que o Pai. Significa que o Pai é a 'fonte da divindade', o principal possuidor e doador da essência divina. O Pai, em outras palavras, possui a essência divina em e por si só, enquanto o Filho e o Espírito Santo a possuem do Pai. Nesse sentido específico, a unidade de Deus repousa principalmente no Pai. O ser do Filho e do Espírito Santo é de fato plena e verdadeiramente divino - mas por isso mesmo: que é o verdadeiro ser do Pai comunicado a eles pela geração eterna do Filho e pela processão eterna do Espírito. A divindade, invisibilidade, imortalidade e eternidade do Filho são precisamente a divindade, invisibilidade, imortalidade e eternidade do próprio Pai, verdadeiramente possuídas pelo Filho por meio de sua geração eterna do Pai.

A subordinação envolvida não é uma subordinação ontológica da essência, mas uma subordinação relacional das Pessoas (hipóstases), referindo-se não à própria essência divina, mas à maneira ou modo de possuí-la. O Pai é Deus simpliciter; o Filho é 'Deus de Deus', theos ek theou, como afirma o Credo de Nicéia, Deus procedendo de Deus por geração eterna. Da mesma forma, o Espírito Santo é 'Deus de Deus', Deus procedendo de Deus por meio de espiração eterna ('assoprar').

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Para Agostinho, então, a processão do Espírito 'do Filho também' era importante para salvaguardar a identidade e personalidade distintas do Espírito - para evitar que ele fosse outro Filho. Isso, é claro, criou a tensão com a compreensão pré-agostiniana do Pai como fonte da divindade, pois, no caso do Espírito, agora parece que temos Pai e Filho como fontes duplas, espiradores duplos. Essa seria uma objeção oriental frequentemente repetida: como pode haver duas fontes da essência divina? Isso não separa Pai e Filho em dois deuses? Para Agostinho, não, porque ele já havia transferido a unidade de Deus da Pessoa do Pai para a própria essência divina. Portanto, Agostinho argumentou que era a essência divina comum ao Pai e ao Filho que agia como única fonte do Espírito. Agostinho diz assim:
Deve-se admitir que o Pai e o Filho são uma única fonte do Espírito Santo, não duas fontes; mas como Pai e Filho são um Deus, um Criador e um Senhor, em relação à criação, então eles são uma fonte em relação ao Espírito Santo (De Trinitate 5:14:15).
Os teólogos orientais nunca cessaram de atacar essa "fusão" do Pai e do Filho de volta à essência divina para ser a única fonte do Espírito. Eles ressaltaram que ela entrava em conflito com a teologia trinitária tradicional, elaborada no século IV por Atanásio e os padres da Capadócia. Se a essência divina era a fonte de um ato não peculiar a uma das Pessoas, esse ato era compartilhado por todas as três Pessoas, não apenas por duas delas; ao passo que, se houvesse algum ato não compartilhado por todas as três Pessoas, esse ato constituiria uma propriedade peculiar de uma das Pessoas, pertencente à sua hipóstase particular e a distinguiria das outras duas. Agostinho violou ambas as regras. Primeiro, ele postulou um ato da essência divina - espiração - compartilhado por duas das Pessoas com exclusão da terceira. Em segundo lugar, ele atribuiu a propriedade hipostática peculiar de 'espiração' à hipostase do Pai e do Filho igualmente; e isso, de acordo com o trinitarismo tradicional, deveria tê-los comprimido em uma quarta hipóstase divina, uma espécie de gêmeo Pai-Filho siamês, com uma nova identidade pessoal única (Deus, o Espirador) em relação ao Espírito Santo.

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Ícone da Teofania: o Espírito desce e pousa sobre Cristo.

Os relacionamentos entre Pai, Filho e Espírito Santo, que vemos na encarnação e redenção devem refletir e revelar a Trindade ontológica. Logo, o que vemos? Um dos argumentos ocidentais tradicionais para o Filioque era que, na economia da salvação, Cristo outorga o Espírito Santo aos discípulos. O Espírito flui de Cristo, não apenas do Pai. Portanto, de acordo com o argumento, na Trindade ontológica, o Filho deve ser igual ao Pai como fonte comum do Espírito. Porém, no Novo Testamento, Cristo outorga o Espírito Santo à sua Igreja por uma razão particular: a saber, como Cabeça da Igreja, o Pai primeiramente outorgou o Espírito a Cristo. Não é o caso de uma fonte comum; é o caso do Espírito fluindo do Pai para o Filho. Penso na outorga que o Pai faz do Espírito sobre Cristo em seu batismo. Relembro-me da velha máxima nicena contra os arianos: "Se você deseja ver a Trindade, vá ao rio Jordão". Isso faz sentido na visão oriental: você vai ao Jordão e vê o Espírito Santo procedendo do Pai para o Filho. Mas como isso faz sentido na visão ocidental? Então penso em como isso transparece ainda mais fortemente no sermão de Pedro no dia de Pentecoste: "De sorte que, Jesus exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis" (Atos 2:33). Aqui temos o mesmo padrão de movimento: o Espírito Santo fluindo do Pai para o Filho, então transbordando do Filho para a Igreja. Certamente, penso, o apelo ocidental para a Trindade econômica para defender a cláusula Filioque é suicida. Ele prova o oposto. Ele estabelece a visão oriental.

Então podemos olhar novamente para o texto clássico sobre o qual Oriente e Ocidente disputaram por séculos, João 15:26: "Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de mim". O Oriente constantemente tem apontado que a processão do Espírito do Pai é claramente falada aqui, mas não do Filho - "o Espírito de verdade, que procede do Pai". O contra-argumento ocidental era que Jesus também diz que o Espírito Santo é aquele "que eu vos hei de enviar". Logo, Pai e Filho são uma fonte comum. Mas é isso que o texto diz? Leio novamente. Jesus diz do Espírito, "da parte do Pai vos hei de enviar". Não "de minha parte vos hei de enviar", ou "de nossa parte", mas "da parte do Pai". Então de novo temos esse padrão de movimento: o Espírito Santo procedendo do Pai para o Filho, e então do Filho para nós. Cristo nos envia o Espírito da parte do Pai.

A seguir podemos considerar o argumento ocidental tradicional de que os títulos "Espírito de Cristo" e "Espírito do Filho", presentes no Novo Testamento, provam que o Filho é uma fonte comum do Espírito juntamente com o Pai. À luz do que já vimos, essas frases parecem não provar nada disso. Certamente o Espírito pode ser apropriadamente chamado "Espírito de Cristo" e "Espírito do Filho" porque o Espírito repousa sobre o Filho, permanecendo nele. Se a Trindade econômica é verdadeiramente fundada na Trindade ontológica, não podemos dizer que o Espírito Santo é o Espírito do Pai por possessão original, e Espírito do Filho por uma eterna processão do Espírito para o Filho da parte do Pai, de modo que desde toda eternidade o Espírito descansa no Filho e permanece nele - que o Filho é a eterna morada, o templo atemporal, do Espírito de seu Pai? E assumindo a carne na encarnação, o Filho agora santifica a humanidade em si mesmo para ser o templo terreno do Espírito. Verifiquei alguns dos escritos orientais e encontrei, para minha fascinação, esses meus pensamentos hesitantes estabelecidos pelos pensadores orientais. Por exemplo, lemos isso na Exposição Exata da Fé Ortodoxa de João Damasceno:
Devemos contemplar o Espírito como um poder essencial, existindo em sua própria e peculiar subsistência, procedendo do Pai e descansando no Logos [o Filho eterno], e mostrando adiante o Logos, inseparável de Deus em quem existe e do Logos, cujo companheiro ele é.
E isso na Mistagogia do Espírito Santo de Fócio:
O verdadeiro profeta do Verbo [João Batista] proclamou: 'Vi o Espírito descer como pomba e permanecer nele' (João 1:32). O Espírito, descendo da parte do Pai, permanece sobre o Filho e no Filho (se você puder aceitar esta última frase)... O profeta Isaías, expositor de oráculos iguais, diz da pessoa de Cristo, 'o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu' (Isaías 61:1). Agora, tendo ouvido que os famosos Gregório e Zacarias [Gregório Magno e Zacarias, papa 741-52] disseram: 'o Espírito permanece no Filho' (pois talvez vossa falta de vergonha tenha dissolvido em medo], por que vós não pensais imediatamente no dito de Paulo, 'o Espírito do Filho'? Estou convencido de que a razão pela qual a Escritura diz que o Espírito é 'do Filho' está perfeitamente certa - e a Escritura não o diz pelos motivos de vosso crime violento [de alterar o Credo niceno]. A Escritura diz 'Espírito do Filho' porque o Espírito está 'no Filho'. Qual afirmação parece dar o sentido mais próximo da expressão apostólica: 'o Espírito permanece no Filho' ou 'o Espírito procede do Filho'?
O argumento de Fócio em Isaías 61 abre outra linha de pensamento. O próprio nome Cristo, Messias, significa O Ungido - ungido com o Espírito Santo. Aqui vemos aquele movimento de novo, do Espírito da parte do Pai para o Filho. Isso não reflete algo das relações eternas do Pai com o Filho? Não podemos dizer que, de certo modo, o Pai sempre, eternamente, está ungindo seu Filho com seu Espírito Santo? Isso realmente não é dizer mais do que João Damasceno e Fócio dizem, que o Espírito eternamente repousa e permanece no Filho, exceto que agora estamos descrevendo isso como "ungir". E quando o Filho tornou-se carne, esse relacionamento foi então inserido e realizado na humanidade do Filho.

- The Filioque Clause: East or West?

Sínodo de Antioquia sobre os contraceptivos

Para regular a vida da família, a Igreja aceita o uso de contraceptivos preventivos que não sejam abortivos nem prejudiciais à fertilidade. Nesse contexto, a Igreja recorda que o amor conjugal se expressa não apenas nas relações sexuais, mas no amor mútuo, respeito de um pelo outro todos os dias e na entrega de si mesmos, o que dá um sentido especial a todos os aspectos de suas vidas. Embora a Igreja incentive seus filhos a se reproduzirem e terem filhos, é necessário distinguir “controle de natalidade” e “impedimento de natalidade”. O impedimento de natalidade conduz a uma redução arbitrária da concepção, enquanto o controle de natalidade deixa a cada família a liberdade de decidir em oração e consultar seu pai espiritual ou o pároco, dependendo cada caso do estado de saúde e das circunstâncias espirituais, econômicas e sociais de cada família.~

~ Carta Pastoral do Santo Sínodo Antioquino (2019)

A liderança da Igreja Católica: Agora vs. Então - Parte II

Steven Wedgeworth


Em uma postagem anterior, discutimos o que a Igreja Católica Romana afirma sobre a fundação da igreja e as implicações dessa fundação sobre a identidade e liderança da igreja. É importante prestar atenção aos detalhes da reclamação. Roma não declara meramente que as igrejas devem ter bispos, nem diz apenas que esses bispos devem ter alguma conexão com os apóstolos originais. Roma afirma que Jesus fundou um tipo particular de instituição episcopal, concedendo a Pedro uma posição de hierarquia monoepiscopal e colocando todas as outras congregações sob sua jurisdição. Pedro conferiu sua própria autoridade e sua sucessão à Sé de Roma e, portanto, essa jurisdição episcopal em particular rege e governa todas as outras congregações. Praticamente, isso significa uma instituição hierárquica com autoridade incontestável no topo.

Essas são afirmações muito fortes e são contestadas por muitos cristãos, incluindo estudiosos e religiosos. Mesmo outras federações de igrejas que reivindicam uma linhagem antiga e herança apostólica rejeitam essas reivindicações. É razoável perguntar se essas afirmações podem ser substanciadas pelas evidências das Escrituras ou dos primeiros séculos da igreja. Muitos que aceitam essas afirmações não o fazem de fato; ao invés disso, argumentam que muitas das doutrinas de Roma estão presentes na igreja primitiva e, portanto, um benefício mais universal da dúvida é concedido. Outros simplesmente argumentam que as reivindicações de Roma são epistemológica ou politicamente necessárias para garantir algum objetivo já considerado atraente. No entanto, essas reivindicações trazem grande perigo, como vimos. Eles amarram as consciências dos homens, mas também os colocam sob outros tipos de perigo quando surgem cenários de abuso. Para realmente pedir às pessoas que acreditem que Roma é a única igreja verdadeira da qual ninguém pode sair, é necessária uma defesa ousada e completa das reivindicações fundamentais de Roma, e é totalmente irresponsável ignorar esse dever.

Portanto, agora vamos comparar essas afirmações com o que vemos na igreja primitiva.

É importante não pular a evidência real do Novo Testamento quando olhamos para a "igreja primitiva". Muitos presumem erroneamente que o Novo Testamento é silencioso ou muito obscuro para ser muito útil em debates sobre tradições contestadas posteriores, mas isso já concede certa vantagem a uma perspectiva. E, de fato, se as passagens de Mateus 16 e João 21 podem e têm sido empregadas para defender uma ideia particular do governo da igreja, então outras passagens também devem ser examinadas.

Jesus e Pedro

João 21:15-19 contém a reafirmação de Jesus sobre Pedro como apóstolo. Jesus perguntou a Pedro se ele O amava e então disse: “apascenta meus cordeiros”, “cuida das minhas ovelhas” e “apascenta as minhas ovelhas”. Isso não nos diz nada específico sobre a natureza do ministério de Pedro, nem sua relação com os outros apóstolos. Isso nos diz que Pedro está sendo restaurado ao ministério apostólico e reforçaria os ensinamentos de qualquer outra passagem anterior sobre o ministério de Pedro.

E então há Mateus 16:13-19 onde devemos ir para aprender sobre o ministério e autoridade de Pedro. Lá nós lemos:
E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem?

E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas.

Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou?

E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.

E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; e eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.
Esta é a passagem principal, e talvez a única, onde se pode estabelecer que Pedro recebeu uma primazia governante singular sobre os outros apóstolos e subsequentes igrejas cristãs. As declarações principais são: “sobre esta rocha edificarei Minha igreja ... e darei a você as chaves do reino dos céus”. O termo grego é petra e, portanto, a implicação retórica, como um grande argumento teria, é que Jesus está dizendo que Pedro é a rocha - Petros é a petra - e, portanto, Jesus construirá Sua igreja sobre Pedro. Além disso, Jesus diz que dará a Pedro “as chaves do reino dos céus”, e essas chaves permitirão a Pedro “ligar” e “desligar” no céu. Essas chaves então simbolizam a autoridade da igreja e o governo.

Há uma longa história de interpretação dessa passagem e muitas perspectivas diferentes, mesmo na igreja dos primeiros quatrocentos anos. Robert Gagnon fornece um resumo conciso dessa história. No entanto, para o bem do nosso presente argumento, vamos conceder que Jesus está nomeando Pedro uma espécie de "alicerce" a partir do qual a igreja será construída, e vamos também conceder que as chaves do reino são algum tipo de governo pastoral comum que tem verdadeira eficácia espiritual. O que ainda precisamos descobrir é se Pedro tem uma autoridade universal e singular sobre os outros apóstolos, sobre as várias igrejas fundadas por outros apóstolos e sobre os homens ordenados ao ministério por outros apóstolos. Esses assuntos simplesmente não estão presentes em Mateus 16. Jesus não os torna explícitos. Pode-se talvez argumentar que isso poderia estar implícito no que Jesus diz - que as “chaves” simbolizam o poder universal e total - mas isso não é nada óbvio.

Os Atos dos Apóstolos

O livro de Atos nos dá alguns exemplos de liderança da igreja sob a supervisão direta dos apóstolos. No capítulo de abertura, vemos Pedro presidindo os primeiros 120 discípulos (Atos 1:15). Mas, quando propõe a escolha de um substituto para Judas, propõe uma espécie de método conciliar: “E propuseram dois ... e lançaram a sorte ...” (Atos 1:26). Cada um dos 11 apóstolos tem sua própria sorte. Pedro não dita a decisão, nem há qualquer esforço feito para mostrar que ele deu a aprovação final. Em vez disso, os 11 lotes são apresentados juntos, como igualmente significativos, e um significado carismático é dado ao próprio ritual. O que parece mais importante é a retenção do número de 12 para o apostolado.

O próximo ato significativo do governo da igreja aparece em Atos 6. Lá, “sete” são escolhidos para um ofício que foi subsequentemente identificado como o ofício de diácono (embora os detalhes sejam frequentemente contestados). Atos 6:2 diz que “os doze” executaram a ação governante, enquanto “os doze convocaram a multidão dos discípulos”. Os doze então pedem à multidão para selecionar sete homens de suas próprias fileiras, de acordo com sua reputação pessoal e dons carismáticos (Atos 6:3). Depois de selecionados, os sete foram trazidos aos doze e ordenados. A leitura mais natural indicaria que os doze foram os que ordenaram, mas alguns estudiosos argumentam o contrário.

Este exemplo é útil para mostrar que os apóstolos desempenhavam uma função direta de governo sobre os assuntos ministeriais ordinários. Eles recomendaram a delegação de certas atividades, solicitaram contribuições dos leigos e então (provavelmente) realizaram a ação final da ordenação, por meio da imposição das mãos (Atos 6:6). E, no entanto, este exemplo não é monoepiscopal, com Pedro atuando como chefe. Não vemos reivindicações de primazia petrina e certamente nenhuma de imediação petrina. Em vez disso, um colégio de apóstolos ordena homens que foram selecionados pelo povo.

A próxima passagem relevante no livro de Atos é a ordenação do apóstolo Paulo. Tendo sido milagrosamente convertido por Deus na estrada para Damasco, Paulo (então chamado de Saulo) tem as mãos impostas sobre ele por um “discípulo” desconhecido de outra forma chamado Ananias (Atos 9:10,17). Isso ocorre em Damasco, e não há menção de Ananias ter uma conexão com qualquer outro apóstolo ou mesmo ser ordenado. Essa imposição de mãos restaura a visão de Paulo, mas também o enche com o Espírito Santo. Imediatamente após seu encontro com Ananias, Paulo começa a pregar (Atos 9:20).

Paulo não vai ao encontro dos outros discípulos até “depois de muitos dias” (Atos 9:23). Enquanto isso, ele continua a pregar. Na Epístola aos Gálatas, Paulo diz que três anos se passaram antes que ele se reunisse com os outros apóstolos em Jerusalém (Gálatas 1:17-18). Atos não menciona os apóstolos impondo as mãos sobre Paulo novamente, e o próprio Paulo rejeita qualquer argumento de que sua ordenação veio por meio da mediação de outros apóstolos:

Quanto àqueles que pareciam ser alguma coisa (quais tenham sido noutro tempo, não se me dá; Deus não aceita a aparência do homem), esses, digo, que pareciam ser alguma coisa, nada me comunicaram; antes, pelo contrário, quando viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão (porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão, esse operou também em mim com eficácia para com os gentios), e conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas, a graça que me havia sido dada, deram-nos as destras, em comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão; recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com diligência (Gálatas 2:6-10).

Observe que Paulo nega que qualquer coisa tenha sido “adicionada” ao seu ministério quando ele encontrou as “colunas” da igreja. Na verdade, Paulo traça um paralelo entre sua autoridade apostólica e a de Pedro: "Eles viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão (porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão, esse operou também em mim com eficácia para com os gentios)". Pedro tem um apostolado para os crentes judeus, mas Paulo recebe seu apostolado para os gentios diretamente de Deus. Isso é importante para o que se segue imediatamente em Gálatas 2, quando Paulo confrontou e corrigiu Pedro.

Retornando à história da igreja em Atos, Paulo deixa Jerusalém e retorna a Tarso, onde Barnabé o encontra mais tarde (Atos 11:25). Barnabé leva Paulo a Antioquia, onde os dois ministram juntos. A igreja em Antioquia é descrita como tendo “profetas e mestres”, e esses profetas e mestres comissionam Paulo e Barnabé para um trabalho missionário específico (Atos 13:2-3). Isso é apresentado como uma ação de grupo, embora as Escrituras deixem claro que foi conduzido por uma revelação do Senhor. Assim, vemos dois apóstolos principais (Barnabé é chamado de apóstolo em Atos 14:14, embora ele não seja um dos doze apóstolos originais), governando ao lado de um grupo de mestres e profetas.

Talvez a imagem mais importante do governo da igreja primitiva seja encontrada no Concílio de Jerusalém de Atos 15. Esse concílio foi chamado para lidar com a questão da circuncisão e foi decisivo para definir o curso do Cristianismo como distinto do Judaísmo. Mas também pode nos mostrar como a igreja apostólica organizou sua liderança e como tomou decisões de fé e moral.

Atos 15:2 diz que "eles determinaram que Paulo e Barnabé e alguns outros deles deveriam subir a Jerusalém, para os apóstolos e anciãos, sobre esta questão." Assim, os dois apóstolos de Antioquia, junto com um pequeno grupo representativo, foram a um grupo de “apóstolos e anciãos” em Jerusalém. Não há menção da singularidade ou primazia petrina aqui e, de fato, o concílio é apresentado como um colégio de apóstolos e anciãos. Pedro é um dos primeiros a falar nesta reunião (Atos 15:7), mas ele é seguido por Barnabé e Paulo (Atos 15:12). É importante ressaltar que é Tiago quem dá um “julgamento” (Atos 15:13,19). Isso se encaixa na tradição de que Tiago atuou como bispo da igreja de Jerusalém. Depois que o próprio concílio deliberou, Tiago tomou a decisão de governar: “Portanto, eu julgo que não perturbemos os gentios que se voltam para Deus ... ”. A carta escrita para relatar a decisão do concílio é atribuída aos “apóstolos, anciãos e irmãos” (Atos 15:23). Assim, pode-se argumentar que o Concílio de Jerusalém foi uma decisão do corpo como um todo, ou foi um concílio que foi decidido por sua principal autoridade episcopal, o apóstolo Tiago. A opção que não está disponível é que Pedro governou sobre os outros apóstolos e delegou sua autoridade episcopal pessoal a eles.

Imediatamente após o Concílio de Jerusalém, algo acontece que também fornece uma perspectiva útil. Paulo e Barnabé entram em uma disputa sobre João Marcos, e Barnabé leva João Marcos com ele e começa um ministério separado (Atos 15:36-39). Paulo mantém Silas (15:40), mas logo depois escolhe Timóteo como uma espécie de substituto para João Marcos (Atos 16:1-3). O que aprendemos com essa série de eventos é que Paulo não submete tais atividades a Pedro ou a qualquer conselho superior. Paulo pode até recrutar e ordenar (diz-se que Timóteo foi ordenado por Paulo em 2 Timóteo 1:6) sem consultar outras autoridades externas. Assim, um homem que nega que sua própria ordenação veio de Pedro, e que diz que seu apostolado é igual e paralelo ao de Pedro, ordena novos sucessores independentes de Pedro ou quaisquer outros dos doze.

Atos fornece algumas ocasiões mais úteis para a formação e ordenação de igrejas. No final de Atos 18, somos informados de que Apolo assumiu uma espécie de ministério improvisado, sem qualquer supervisão formal de outros apóstolos e até mesmo com conhecimento doutrinário incompleto. No entanto, ele pregou com poder e ganhou muitos convertidos em Éfeso. Áquila e Priscila ajudaram a educá-lo ainda mais (Atos 18:26) e “os irmãos” escreveram aos “discípulos” e os encorajaram a “recebê-lo” (Atos 18:27). Apolo parece ter ajudado a fundar a igreja em Éfeso, porque quando Paulo chega, ele descobre que os discípulos ali só ouviram falar do batismo de João (portanto, eles só foram ensinados por Apolo). Paulo então batiza os crentes novamente e impõe as mãos sobre eles.

De fato, quando Paulo faz menção a Apolo em 1 Coríntios, ele fala dele como uma espécie de igual, ao lado até mesmo de Pedro (1 Cor. 1:12; 3: 4-6,22; 16:12). É importante ressaltar que Paulo diz que os três nomes são igualmente irrelevantes em comparação com o conteúdo do evangelho, a transformação real do Espírito e a unidade superior da Igreja - uma unidade não encontrada "em" Pedro ou "em" Paulo (ou qualquer outro ministro), mas sim no conteúdo do evangelho pregado, uma unidade na cruz de Cristo.

Esta igreja de Éfeso cresceu, e em Atos 20 vemos que ela tem presbíteros. Atos 20:17 diz que Paulo chamou “os presbíteros da igreja”. A igreja é singular, mas os presbíteros são plurais. No v. 28, Paulo diz que o Espírito Santo fez desses presbíteros "supervisores" (episkopous) que devem “pastorear” a igreja. A palavra usada para pastor significa literalmente “alimentar ou cuidar de um rebanho de ovelhas”. Assim, a igreja de Éfeso tinha vários presbíteros que também eram bispos, encarregados do ministério pastoral. Se houver qualquer regra episcopal singular, Paulo teria sido esse bispo, e ainda quando ele partiu de Éfeso, ele não deixou nenhum sucessor singular. Em vez disso, ele deixa uma pluralidade de presbíteros/bispos que são coletivamente instruídos a agir como pastores para a igreja. O v. 30 deixa claro que esta foi a última vez que Paulo esteve presente em Éfeso.

Quando Paulo começa sua viagem final a Jerusalém, somos informados de que Filipe era "um dos sete" (Atos 21:8), uma referência a Atos 6. Existem também vários "profetas" mencionados em Atos 21, indicando que vários tipos de “ordens” únicas existiam na época. Existem os “doze” originais, os “sete” designados para servir em um nível mais local no lugar dos Doze, o Apóstolo Paulo e vários profetas - sem mencionar a pluralidade de bispos mais velhos em Éfeso. Quando Paulo chega a Jerusalém, ele vai ver Tiago, que é descrito como uma espécie de bispo ancião local presidindo um colégio de anciãos: “No dia seguinte Paulo foi conosco até Tiago, e todos os anciãos estavam presentes” (Atos 21:18). Isso continua a impressão de que Tiago ocupava o “cargo” mais alto em Jerusalém, assim como vimos em Atos 15.

Curiosamente, o livro de Atos termina com Paulo na cidade de Roma. Somos informados de que “os irmãos” estão presentes ali (Atos 28:15), mas nenhum outro nome é dado. Paulo escolhe ir aos líderes judeus e pregar para eles, mas não há menção de uma igreja ou hierarquia cristã estabelecida.

As epístolas paulinas

Na literatura paulina, há duas passagens principais que tratam do ofício da igreja. 1 Tim. 3: 1-13 menciona “um bispo” e “diáconos”. Presume-se que ambos sejam casados, e a principal diferença entre os dois ofícios parece ser que o bispo é “capaz de ensinar” (v. 2). A outra passagem principal é Tito 1:5-9, onde “anciãos” são mencionados. Tito recebe o mandamento de “designar” anciãos em cada cidade (v. 5). Esses "anciãos", no entanto, também são chamados de "bispo" no v. 7, deixando a impressão de que os termos são amplamente intercambiáveis, algo que também vimos em Atos 21. Esses bispos mais velhos operam em nível de cidade, e Tito é enviado a Creta para nomear esses oficiais em toda a ilha. Assim, isso criaria um colégio de bispos anciãos trabalhando juntos pela igreja em Creta.

Existem mais algumas passagens nos escritos de Paulo que fornecem algumas informações sobre o governo da igreja em seu tempo. Essas são em grande parte apenas referências passageiras e é difícil fazer afirmações conclusivas sobre elas. Na verdade, muitas das cartas foram escritas por Paulo e Timóteo juntos, mostrando assim como Timóteo assumiu uma espécie de papel de “sucessor”. Filipenses 1:1 é dirigido a “todos os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos, juntamente com os bispos e diáconos”. Isso confirma ainda mais a ideia de que “presbíteros” e “bispos” são cargos funcionalmente equivalentes, ambos trabalhando no ministério local. 1 Tim. 5:17 novamente menciona “presbíteros” e distingue alguns presbíteros que “governam bem” de alguns que "especialmente... trabalham na palavra e na doutrina". Assim, pode ser que uma subseção menor de “anciãos carregue o encargo principal do ministério de "palavra e doutrina". Isso poderia explicar por que algumas imagens de “bispos mais velhos” têm uma figura principal cercada por um grupo de outras pessoas, todas com o mesmo título.

Efésios 4:11 cita uma série do que parecem ser “ofícios” da igreja, dizendo: “Ele mesmo deu alguns para apóstolos, alguns para profetas, alguns para evangelistas e alguns pastores e mestres”. A ordem e o arranjo das palavras parecem indicar que “pastores e professores” existem juntos como uma classe, enquanto “apóstolos, profetas e evangelistas” existem juntos como outra classe, mas isso não é definitivo. (Em Atos 21:8, Filipe foi identificado como um “evangelista”; “Profetas” também são mencionados em Atos 21:9-10). “Profetas” também aparecerão em 1 Coríntios 14. Em uma seção Paulo dá regras de ordem sobre como a profecia deve ocorrer na adoração, e ele diz: “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Cor. 14:32). O contexto imediato também incluiu regras para interpretar e julgar a profecia - "deixe os outros julgarem" (vs. 29). Isso indica que há algum corpo de “profetas” reconhecido publicamente que foi encarregado de manter a ordem e julgar as profecias na igreja. A existência de “profetas” como um tipo de escritório da igreja local aparecerá em pelo menos uma fonte pós-apostólica e, portanto, a descrição de Paulo aqui é importante.

Paulo também menciona vários ministros pelo nome. Romanos 16 inclui muitos nomes, embora não o de Pedro. Alguns desses nomes aparecem em outros lugares do Novo Testamento. Priscila e Áquila estiveram presentes em Atos e também aparecem em 1 Coríntios 16:19 e 2 Tim. 4:19. Parece provável que alguns dos vários outros nomes possam ser pastores de algum tipo, mas Paulo não os identifica como tais. Colossenses 4:7 nomeia Tíquico como um “ministro fiel”. Marcos e Lucas também estão presentes com Paulo durante sua escrita de Colossenses (Colossenses 4:10, 14). Onésimo, Aristarco, Epafras e Demas (Colossenses 4:9, 10, 12, 14) aparecem novamente em Filemom vs. 24, e lá são chamados de “colaboradores”. Isso pode indicar que todos eles exerceram uma espécie de cargo ministerial. Filemom e Arquipo também parecem ser pastores (Filemom vs. 1-2). Alguns desses mesmos nomes aparecem em 2 Tim. 4:9-12, então faria sentido que fossem assistentes de Paulo que mais tarde viria a ocupar um cargo na igreja. Demas, no entanto, é apontado como tendo abandonado o ministério (2 Timóteo 4:9). Ainda assim, em nenhum momento Paulo identifica os ofícios desses homens com qualquer particularidade, nem presume qualquer encargo necessário para estabelecer suas credenciais ou linhagem. Não há uma estrutura eclesiástica maior a ser identificada, nem "os doze", nem "os sete". Quando Paulo justifica suas próprias credenciais ministeriais, ele apela para uma revelação divina e o verdadeiro fruto de seu ministério. Como vimos acima, em Gálatas 1 e 2, Paulo rejeita qualquer noção de que seu ministério apostólico deva ser subordinado ou mediado pelos Doze Apóstolos originais.

Hebreus até Apocalipse

Embora não seja tão completo quanto Atos ou a literatura paulina, a porção restante do Novo Testamento contém algumas evidências da organização e governo da igreja primitiva. A Epístola aos Hebreus identifica “governantes” na igreja (Hb 13:7, 17, 24). Não os nomeia com mais especificidade. Tiago menciona “professores”, mas não diz mais nada sobre a natureza do cargo (Tiago 3:1).

Pedro menciona “presbíteros” em 1 Pedro 5:1, e ele se identifica como um tal presbítero. Pedro também diz a esses “anciãos” para “pastorearem o rebanho de Deus... servindo como supervisores” (1 Pedro 5:2). A palavra traduzida como supervisor é a mesma que bispo, então Pedro está descrevendo a organização da igreja da mesma forma que Atos 21 o fez. Vários presbíteros recebem o trabalho de bispos, e estes trabalham em nível local.

Pedro também chama Marcos de “seu filho” (1 Pedro 5:13). Portanto, Marcos é uma espécie de sucessor de Pedro. Isso é paralelo ao relacionamento entre Paulo e Timóteo (Paulo chama Timóteo de seu filho em 1 Coríntios 4:17 e 1 Timóteo 1:2), e assim qualquer sucessão desses apóstolos iria razoavelmente de Pedro para Marcos e de Paulo para Timóteo. Pedro também afirma que Marcos está com ele “na Babilônia”, o que muitos tomaram como uma referência a Roma (1 Pedro 5:13). Dado o restante do uso do Novo Testamento, entretanto, um argumento também poderia ser feito de que “Babilônia” é uma acusação profética de Jerusalém ou da comunidade religiosa judaica hostil (ver Apocalipse 11:8). Se Pedro está escrevendo de Roma, entretanto, Marcos está lá com ele e atuando como seu sucessor natural.

Passando para a literatura joanina, podemos ver mais algumas pequenas informações relevantes para a liderança da igreja. João chama a si mesmo de “presbítero” no primeiro versículo de 2 João e no primeiro versículo de 3 João. 3 João vs. 9-10 parece indicar que Diótrefes estava tentando ocupar uma posição de liderança na igreja, mesmo em oposição a João, e João o repreende. 1 João 2:18-19 indica que alguns falsos mestres afirmavam ser dos apóstolos, mas eram “anticristos”. O que os marcou como anticristos, no entanto, foi o seu ensino, negando que Jesus é o messias que veio em carne (1 João 4:30, 2 João vs. 7). No Apocalipse, João escreve para sete igrejas e endereça as cartas ao "anjo da igreja". Esses "anjos" parecem ser oficiais da igreja de uma espécie.

Um resumo das evidências do Novo Testamento

O Novo Testamento oferece uma imagem um tanto diversa da liderança da igreja primitiva. Jesus elogia Pedro de alguma forma e dá a ele "as chaves do reino", mas o Livro de Atos mostra que o trabalho da igreja na ordenação, governo e disciplina era realizado por grupos, primeiro pelos "Doze" e depois por coleções de bispos mais velhos. Existem também “os Sete”, bem como vários “profetas” que ocupam algum tipo de cargo. Tiago parece ocupar uma posição de antiguidade em Jerusalém e profere o julgamento final no Concílio de Jerusalém.

Paulo é chamado e ordenado imediatamente por Deus, sem um ato de qualquer outra estrutura eclesiástica, e ele defende sua autoridade e independência com base nisso. Ele diz que Pedro tem um apostolado para os judeus e que ele tem um apostolado para os gentios (Gal. 2:8). Paulo parece identificar Timóteo como seu sucessor pessoal, e Pedro, ao que parece, nomeia Marcos como seu, embora nem Timóteo nem Marcos recebam o título de apóstolo. Em vez disso, o título comum que se desenvolve é "presbítero", que às vezes também é chamado de "supervisor" ou "bispo". Os títulos de presbítero e bispo se sobrepõem, se não são títulos idênticos, no Novo Testamento, embora haja ocasiões em que um ou mais presbíteros assumem uma regra de liderança dentro de um colégio de presbíteros. Uma segunda classe de ofício também aparece como “diáconos”. Tanto os presbíteros quanto os diáconos são escritórios da igreja local.

A imposição de mãos está presente como um meio de ordenação, embora nenhuma explicação seja dada. Nenhum dos apóstolos apela para seus rituais de ordenação ou credenciamento formal de qualquer maneira explícita, e quando Paulo é desafiado, ele rejeita esses padrões como sendo definitivos e, em vez disso, apela para uma revelação especial divina, bem como o fruto de seu próprio ministério.

Não há casos de alguém apelando para Pedro ou a Sé de Roma no Novo Testamento. Nenhuma igreja parece necessariamente ter qualquer prioridade ou autoridade sobre as outras igrejas, e não há uma estrutura episcopal maior e clara organizando o desenvolvimento de novas congregações. No único evento em que Pedro e Paulo entram em conflito direto, é Paulo quem repreende Pedro, e a história subsequente do cânon das Escrituras e da teologia cristã justificou Paulo nessa ação.

Assim, as distintas reivindicações católicas romanas sobre a fundação da Igreja não estão presentes nas escrituras do Novo Testamento. Na verdade, certos fatos que contradizem essas afirmações estão presentes, e a estrutura eclesiástica geral é bem diferente. Em vez de uma hierarquia monoepiscopal unindo toda a igreja, o Novo Testamento mostra uma coleção de igrejas regionais existentes por meio de sua conexão com "presbíteros" e "bispos" específicos, alguns dos quais eram descendentes diretos de vários apóstolos, e que possuíam mais ou menos estatura e autoridade, trabalhando juntos.

A seguir, examinaremos as evidências históricas dos séculos seguintes para ver como o material do Novo Testamento foi transmitido nas igrejas em desenvolvimento e se alguma imagem consistente pode ser discernida.

Gregory Dix sobre o "fazer em memória" eucarístico

O sentido do "fazer em memória"

Nas Escrituras, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, anamnesis e seu verbo cognato possuem o sentido de 'chamar novamente' ou 'representar' diante de Deus um evento do passado, de modo que se torne aqui e agora operativo por seus efeitos. Assim, o sacrifício de uma esposa acusada de adultério (Num. 5:15) é "uma oblação" feita "em recordação de seu pecado [diante de Deus]" (anamimnes-kousa); isto é, se ela cometeu pecado no passado, este será revelado agora pela provação, pois seu pecado foi ativamente "recordado" ou "representado" diante de Deus por seu sacrifício. Do mesmo modo, a viúva de Sarepta (1 Reis 17:18) reclama que Elias veio trazer "recordação (anamnesai) de seus pecados" e como resultado seu filho morreu. Também em Heb. 10:3-4, o autor diz que, porque "é impossível que o sangue de touros e bodes retire o pecado" (aos olhos de Deus), os sacrifícios do Antigo Testamento não eram melhores que uma "recordação (anamnesis) dos pecados" dos oferentes perante Deus. Embora nessa passagem exista alguma indicação de que a anamnesis também traz parcialmente uma referência psicológica à consciência dos próprios israelitas, é claro pela passagem como um todo que é diante de Deus que os pecados são "recordados" e "não purificados" ou "retirados". É nesse sentido ativo, portanto, de "recordação" ou "representação" diante de Deus do sacrifício de Cristo, assim tornando-o aqui e agora operativo por seus efeitos nos comunicantes, que a Eucaristia é considerada tanto pelo Novo Testamento quanto pelos autores do segundo século como a anamnesis da paixão, ou da paixão e da ressurreição combinadas. É por essa razão que Justino, Hipólito e autores posteriores falam diretamente e vividamente da Eucaristia no presente conferindo aos comunicantes os efeitos da redenção - imortalidade, vida eterna, perdão dos pecados, libertação do poder do demônio, etc. - os quais nós usualmente atribuímos mais diretamente ao sacrifício de Cristo visto como um único evento histórico no passado. Basta examinar essa linguagem pouco familiar mais de perto para reconhecermos como eles identificavam completamente o oferecimento da Eucaristia pela Igreja com o oferecimento de Si mesmo por nosso Senhor, não por modo de repetição, mas como uma "representação" (anamnesisdo mesmo oferecimento pela Igreja 'que é Seu corpo'. Como São Cipriano expõe de forma decisiva no século terceiro: a paixão é o sacrifício do Senhor, que nós oferecemos (Ep. 63:17).

A evidência nos Pais da Igreja

No ocidente, já vislumbramos a evidência romana em Clemente, Justino e Hipólito, e a testemunha seguinte é Irineu na Gália, com sua educação oriental e associações romanas. Ele falou de nosso Senhor como
instruindo Seus discípulos a oferecer a Deus as primícias de Sua própria criação, não como se Ele necessitasse delas, mas para que eles não ficassem ociosos nem ingratos; Ele tomou o pão que vem da criação (material) e deu graças, dizendo, Isto é o Meu Corpo. E o cálice semelhantemente, que é tirado das coisas criadas, como nós mesmos, Ele reconheceu como Seu próprio Sangue, e ensinou a nova oblação do Novo Testamento. A qual a Igreja, aprendendo por tradição dos apóstolos, ao redor do mundo oferece a Deus, a Ele mesmo que nos provê com nossos alimentos, as primícias de Seus próprios dons na Nova Aliança... Devemos fazer a oblação a Deus e ser encontrados agradáveis a Deus nosso criador em todas as coisas, com crença correta e fé pura, esperança firme e uma caridade ardente, oferecendo as primícias daquelas coisas que são Suas criaturas... Nós oferecemos a Ele o que é Dele, assim apropriadamente proclamando a comunhão e unidade da carne e do espírito. Pois como o pão (que vem) da terra, recebendo a invocação de Deus, não é mais pão comum mas a eucaristia - consistindo de duas realidades, uma terrena e outra celestial; assim também nossos corpos recebendo a eucaristia não são mais corruptíveis, tendo a esperança da ressurreição eterna... Ele quer que ofereçamos nosso dom no altar frequentemente e sem interrupção. Há, portanto, um altar no céu, pois para lá nossas orações e oblações são direcionadas.
Sem dúvida, Irineu considera a eucaristia como uma 'oblação' oferecida a Deus, mas é bom notar o sentido particular que ele enfatiza seu caráter sacrificial. Primariamente, a eucaristia é para ele um sacrifício de 'primícias', reconhecendo a bondade do Criador em nos prover nosso sustento, em vez de uma 'representação' do sacrifício do Calvário à maneira paulina. É verdade que Irineu não hesita em dizer que 'o cálice misturado e o pão fabricado recebem a Palavra de Deus e tornam-se a eucaristia do Corpo e do Sangue de Cristo', e outros ensinos similares. Há, também, a adição significativa das palavras 'na Nova Aliança' às 'primícias de Seus próprios dons'. Irineu é claro, também, que a morte de Cristo foi um sacrifício, do qual o sacrifício abortivo de Isaque por seu próprio pai foi uma prefiguração. Mas quando tudo é dito e feito, ele nunca une claramente essas duas ideias ou chama a eucaristia de oferecimento ou 'representação' do sacrifício de Cristo.

É concebível que os erros particulares das seitas gnósticas, os quais Irineu combatia (que ensinavam que as coisas da criação material eram radicalmente más), tem algo a ver com sua ênfase no oferecimento eucarístico das 'primícias da criação'.

(...)

Mas para Cipriano, toda a questão de como a eucaristia constitui um sacrifício está clara e completamente definida como estaria para um teólogo pós-tridentino:
'Uma vez que fazemos menção de Sua paixão em todos os nossos sacrifícios, pois a paixão é o sacrifício do Senhor que nós oferecemos, nada devemos fazer senão o que Ele fez (na última ceia)' [Ep. LXIII].
Não há qualquer razão para pensarmos que Cipriano foi o inventor desse modo de definir o sacrifício eucarístico, ou de qualquer modo intencional seu partidário. Mas ele provou ser seu maior propagador. Cipriano é o mais atrativo dos autores pré-Nicenos e, dentre os ocidentais, sempre o mais lido em tempos posteriores. Sua explicação do sacrifício tinha uma simplicidade que a recomendou à devoção popular, e esse tipo de unidade e lógica direta que sempre apelou aos teólogos ocidentais. Não é surpreedente que a doutrina do sacrifício - que podemos chamar por conveniência de 'cipriânica' - prevaleceu no ocidente, quase ao ponto da exclusão daquela linha de pensamento que era proeminente em Irineu. O ensino de Cirilo de Jerusalém posteriormente levou a um desenvolvimento similar, na linha 'cipriânica', no ensinamento oriental sobre o sacrifício eucarístico (embora os orientais dificilmente tenham alcançado a mesma precisão em seu entendimento da matéria como os ocidentais posteriores).

(...)

Há uma testemunha mais antiga que Irineu ou Cipriano para o equilíbrio original da doutrina eucarística ocidental - Justino. Ele fala da eucaristia como o 'sacrifício puro' dos cristãos, 'assim como para recordação (diante de Deus, anamnesis) de seu sustento em comida e bebida, na qual é feito também o memorial (memnetai) da paixão que o Filho de Deus sofreu por ele' [Dial. 117]. Irineu e Cipriano desenvolvem cada um metade dessa interpretação da eucaristia, não em oposição, mas em isolamento um do outro. Mas é interessante notar que a mais antiga oração eucarística ocidental, a de Hipólito - um admitido seguidor de Irineu -, já torna a doutrina 'cipriânica' o aspecto mais proeminente da matéria, uma geração antes de Cipriano escrever.

Gregory Dix, The Shape of the Liturgy

Apêndice: algumas citações dos Pais da Igreja sobre o sacrifício eucarístico

Didaquê

Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro. Aquele que está de briga com seu companheiro não poderá juntar-se a vocês antes de se ter reconciliado, para que o sacrifício que vocês oferecem não seja profanado. Este é o sacrifício do qual o Senhor disse: 'Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro, porque eu sou um grande rei, diz o Senhor, e o meu Nome é admirável entre as nações' (Didaquê, 9-10, 14)

Clemente de Roma (35-100)

Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa (Epístola aos Coríntios, 42 e 44).

Inácio de Antioquia (35-107)

Preocupai-vos em participar de uma só eucaristia. De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na unidade do seu sangueum único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de serviço. Desse modo, o que fizerdes, fazei-o segundo Deus (Epístola aos filadelfienses, 3).

Flávio Justino (100-165) 

Eu dizia, senhores, que também a oblação de flor de farinha que, conforme a tradição [Lv. 14:10], é oferecida pelos que são purificados da lepra, era figura do pão da ação de graças em relação ao qual Jesus Cristo Nosso Senhor mandou fazer em memória da paixão que ele sofreu pelos que são purificados nas almas de toda maldade dos homens, para que rendêssemos graças a Deus por ter criado o universo com todas as coisas que nele existem através do homem e, ao mesmo tempo, por nos ter libertado do mal em que nascemos, e ter destruído fatalmente os principados e as potestades, através daquele que, segundo sua vontade, nasceu passível (...).

Já então ele [Malaquias] profetiza sobre os sacrifícios a ele oferecidos em todo lugar por nós gentios, isto é, do pão da ação de graças como também do cálice da ação de graças, dizendo que nós glorificaremos o seu nome, vós, porém o profanais.

(...) Pois bem, é manifesto que também nesta profecia [de Isaías] sobre o pão se trata do pão em relação ao qual o nosso Cristo nos mandou fazer em memória de se ter feito homem pelos que crêem nele, pelos quais também se tornou passível, e se trata também do cálice em relação ao qual mandou fazer com ação de graças em memória do seu sangue... [Nós] somos a verdadeira raça sacerdotal de Deus, como atesta o próprio Deus, dizendo haver em todo lugar entre os gentios quem lhe oferecesse sacrifícios agradáveis e puros. Ora, Deus não aceita sacrifícios de ninguém, a não ser através dos seus sacerdotes.

Portanto, já de antemão Deus atesta que através deste nome lhe são fundamentalmente agradáveis todos os sacrifícios que Jesus Cristo mandou que se fizessem, a saber, na ação de graças do pão e do cálice, realizados em todos os lugares da terra pelos cristãos; ao passo que repele os sacrifícios feitos por vós, os realizados por aqueles vossos sacerdotes, dizendo: 'E vossos sacrifícios não os receberei das vossas mãos; pois do levantar ao pôr-do-sol meu nome é glorificado', diz ele, 'entre os gentios, ao passo que vós o profanais' [Ml 1:11-12]. E até agora, procurando rivalidades, dizeis que Deus não aceita os sacrifícios oferecidos em Jerusalém pelos chamados israelitas que então aí habitavam, mas por outro lado dizeis que ele teria dito que as orações feitas pelos homens daquela linhagem que se encontravam na dispersão chegavam até ele e que ele chama de sacrifícios as suas orações. Ora, que as orações e as ações de graças feitas pelos justos são os únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus também eu o afirmo. Pois somente estes também os cristãos os receberam para fazer, e isto, em comemoração do seu alimento seco e líquido, no qual eles recordam a paixão que por eles sofreu o Filho de Deus (Diálogo com o judeu Trifão, 41-117).

Hipólito de Roma (170-236)

'A sabedoria já edificou a sua casa, já lavrou as suas sete colunas. Já abateu os seus animais e misturou o seu vinho, e já preparou a sua mesa' [Prov. 9:1-2], o que denota o prometido conhecimento da Santa Trindade; também refere-se ao Seu honrado e imaculado corpo e sangue, os quais são administrados e oferecidos sacrificialmente na mesa espiritual divina, como memorial da primeira e memorável mesa da Ceia espiritual divina. E novamente: 'Já ordenou às suas criadas' [Prov. 9:3], a sabedoria - isto é, Cristo - tem feito isso por um anúncio sublime. 'Quem é simples, volte-se para cá' [Prov. 9:4], diz a sabedoria, aludindo manifestamente aos santos apóstolos, que viajaram o mundo todo, e chamaram as nações ao conhecimento Dele em verdade, com sua pregação sublime e divina. E novamente: 'Aos faltos de senso diz' - isto é, àqueles que ainda não receberam o poder do Espírito Santo - 'Vinde, comei do meu pão, e bebei do vinho que tenho misturado' [Prov. 9:5], o que significar dizer que Ele deu Sua carne divina e seu sangue honrado para nós, para comermos e bebermos para a remissão dos pecados (Fragmentos sobre os Provérbios).

Por isso, nós que nos lembramos de sua morte e Ressurreição, oferecendo-te o pão e o cálice, dando-te graças porque nos consideraste dignos de estar diante de ti e de servir-te. E te pedimos que envies o teu Espírito Santo à Oblação da santa Igreja... (Tradição Apostólica).

Cirilo de Jerusalém (313-387)

Depois de terminado o sacrifício espiritual, rito incruento, pedimos a Deus, sobre esta hóstia de propiciação, pela paz universal da Igreja, pela justa ordem do mundo, pelos imperadores, pelos nossos soldados e pelos aliados, pelos doentes, pelos aflitos, e todos nós rogamos por todos, em geral, quantos precisam de ajuda; oferecemos esta vítima... e depois recomendamos também os santos padres e bispos, e em conjunto todos os nossos defuntos, convencidos como estamos que esta será a maior ajuda para as almas, por quem se oferece a oração, enquanto está presente a Vítima santa que infunde o maior respeito...

Do mesmo modo também nós, oferecendo orações a Deus pelos defuntos, mesmo pecadores, não lhe tecemos uma coroa, mas oferecemos-lhe Cristo imolado pelos nossos pecados, procurando conciliar a clemência de Deus em nosso favor e em favor deles (Catequeses Mistagógicas).

Ambrósio de Milão (340-397)

Queres saber mediante quais palavras celestes se consagra? Escuta quais são as palavras. O sacerdote diz: 'Faze para nós com que esta oferta seja aprovada, espiritual, aceitável, porque é a figura do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. O qual, antes de sua paixão, tomou o pão em suas santas mãos, olhou para o céu, para ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, deu graças, o abençoou, o partiu, e partindo o deu a seus apóstolos e discípulos, dizendo: Tomai e comei disso todos, porque isto é o meu corpo que será partido para muitos'.


[...] O sacerdote também diz: "Celebrando, pois, a memória de sua gloriosíssima paixão, da ressurreição dos infernos e da ascensão ao céu, nós te oferecemos esta hóstia imaculada, hóstia espiritual, hóstia incruenta, este pão santo e o cálice da vida eterna, te pedimos e suplicamos para que aceites esta oferta no teu sublime altar pelas mãos dos teus anjos, assim como dignaste aceitar as ofertas do teu servo o justo Abel, o sacrifício do nosso patriarca Abraão e o que te ofereceu o sumo sacerdote Melquisedec" (Sobre os sacramentos, IV).

A liderança da Igreja Católica: Agora vs. Então - Parte I


Steven Wedgeworth

Na esteira da última rodada de escândalos de abuso sexual na Igreja Católica Romana, gostaria de convidar todos os cristãos e pensadores morais sérios a deixar essa instituição eclesiástica. Muitos membros sinceros daquela igreja confessaram que não confiam mais em seus pastores e bispos. Muitos até disseram que não têm fé na instituição. No entanto, eles não partem porque não podem partir. Em suas mentes, a Igreja Católica Romana é a igreja que Jesus fundou. É a única igreja verdadeira, e uma pessoa não pode deixar essa igreja sem deixar a própria fé cristã.

Mas e se a Igreja Católica Romana não for a igreja que Jesus fundou? E se não for a igreja que vemos no Novo Testamento, nem a Igreja Cristã que existia nos séculos 2 e 3?

Para responder a essa pergunta, compararei o que Roma dogmaticamente afirma sobre a maneira como a igreja foi fundada, e sua jurisdição hierárquica precisa, com a igreja do Novo Testamento e dos três primeiros séculos. Demonstrarei que Roma afirma que Jesus fundou um tipo particular de igreja episcopal com Pedro como cabeça singular. Todos os outros clérigos descendem por meio dele e de seus sucessores, os bispos de Roma. Na verdade, a Igreja Católica Romana afirma que o bispo de Roma tem uma liderança final, universal e imediata sobre todas as congregações. Mas não é isso que vemos na história real da igreja, nem no Novo Testamento nem nos pais pós-apostólicos. O que encontramos, na verdade, impede algumas das principais reivindicações de Roma e, portanto, demonstra que Roma cometeu um erro sobre a liderança da igreja por muitos séculos.

Muito simplesmente, se Roma está errada sobre como a Igreja Cristã foi fundada e quem a governou, então o Catolicismo Romano como tal não é o que afirma ser. Suas outras reivindicações, especialmente seus anátemas contra os dissidentes, mostram-se, portanto, injustas (e francamente divisivas e pecaminosas). E se Roma não é a única igreja verdadeira, então os cristãos individuais não devem lealdade única e inquestionável ao seu clero e não precisam se submeter às suas reivindicações hierárquicas mais amplas.

Resumindo, se Roma não é quem diz ser, os membros individuais são livres para medir a Igreja Católica Romana pelos padrões de justiça e fidelidade bíblica. Eles não precisam submeter suas consciências ao seu governo e podem frequentar outras igrejas cristãs que considerem fiéis.

Não é errado ter essa discussão agora?

Neste ponto, muitas pessoas se oporão a escrever um ensaio polêmico e apologético sobre este tópico neste momento. Dirão que é insensível e oportunista. Eles dirão que é uma distração da questão do abuso sexual. Podemos até imaginar apelos à solidariedade, para que cristãos conservadores de todas as variedades se aliem contra os elementos progressistas dentro de suas burocracias ou para que fiéis leigos de todas as religiões se unam em apelos por transparência eclesiástica e proteção legal.

A esses protestos, podemos dar uma série de respostas. Não há maneira confiável de culpar católicos progressistas ou liberais pela atual crise de abuso sexual. O próprio Papa Bento XVI é implicado pelo testemunho sensacional do arcebispo Vigano. Na verdade, como relatórios adicionais parecem indicar, quaisquer ações disciplinares contra o cardeal McCarrick foram informais e privadas. Bento XVI parece ter sido menos do que competente em sua própria administração, e sua reputação dificilmente era incontestável antes desta última rodada de acusações. O compromisso de manter as aparências, tanto por parte dos conservadores quanto dos liberais, tem sido um grande facilitador de abusos.

Além disso, há muito tempo a Igreja Católica Romana tem encoberto o abuso sexual de seus clérigos e bispos. Nosso momento atual não é tão novo assim. Como explica Paul Rahe, de Hillsdale, ele próprio católico, a crise dos abusos sexuais do catolicismo é internacional e já dura há quase um século. Já em 1985, pe. Thomas Doyle apresentou um relatório completo sobre o estado do problema e pediu respostas práticas e novos protocolos. Ele foi ignorado. Não estamos simplesmente habitando uma época imediatamente após uma revelação dolorosa. Estamos no tempo muito mais tarde do que isso, depois de décadas de dor, decepção e até desespero. Crimes paralelos foram descobertos no México, Chile, Argentina, Honduras, Irlanda, Alemanha, Austrália e muitos mais países.

Mas o mais importante é que os problemas atuais da Igreja Católica Romana estão diretamente relacionados às suas reivindicações espirituais. O clero católico romano não se envolve em abuso sexual porque é católico romano. Eles, no entanto, cobrem uns aos outros e se recusam a relatar adequadamente seu clero às autoridades civis devido à natureza do ministério católico romano. Observe bem, o catolicismo romano não é a única igreja ou rede que teve escândalos de abuso sexual. Protestantes de muitas variedades, incluindo reformados e evangélicos, também tiveram casos de abuso sexual, mesmo entre seus clérigos. No entanto, o que torna Roma diferente é que ela faz certas afirmações absolutas sobre si mesma e sua relação com o resto da sociedade. Afirma que o próprio Jesus deu ao bispo de Roma poder espiritual e temporal, e que Jesus colocou o poder espiritual sobre o poder temporal. Roma tem uma política, que remonta a Thomas Beckett, de rejeitar reivindicações civis sobre seu clero, mesmo no caso de acusações criminais. Mais do que isso, a Igreja Católica Romana exige que todos os seus leigos sejam subordinados ao clero. Na verdade, a própria graça salvadora é mediada por esse clero. Essas alegações são relevantes tanto para o motivo pelo qual Roma prefere cobrir o seu clero quanto para o motivo pelo qual os católicos individuais não sentem que têm a opção de deixar uma igreja abusiva e perigosa.

Entre outras coisas, a eclesiologia de Roma impede qualquer tentativa de total transparência ou responsabilidade. Como Massimo Faggioli assinalou, com bastante razão, tentar forçar a renúncia do papa vai contra o direito canônico. Esta não é uma nova ideologia. Já no século 12, os juristas romanos declaravam que “aquele que está em uma posição de juiz de todos, não pode ser julgado por ninguém”. Isso foi reafirmado pelo Concílio Vaticano I, que afirma: “A sentença da Sé Apostólica (sem a qual não há autoridade superior) não está sujeita a revisão por ninguém, nem pode ninguém legalmente julgar sobre ela” (Sessão 4, Capítulo 3, Ponto 8).

Roma também ensina que os leigos não devem se envolver no governo da igreja. Escrevendo em 1906, o Papa Pio X também reafirmou que os leigos não devem resistir ao governo do clero:
A Igreja é essencialmente uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade constituída por duas categorias de pessoas, os Pastores, que ocupam uma posição nos diversos graus da hierarquia, e o rebanho ou a multidão dos fiéis. Essas categorias são tão distintas que com o corpo pastoral apenas repousa o direito e a autoridade necessários para promover o fim da sociedade e dirigir todos os seus membros para esse fim; o único dever da multidão é deixar-se conduzir e, como dócil rebanho, seguir os Pastores (Vehementer Nos).
Assim, a abordagem “hierárquica”, “clerical” e “ultramontana” do governo da igreja não é uma nova corrupção do catolicismo, mas é de fato um dogma aceito. Portanto, a situação atual dentro do catolicismo romano destaca uma de suas características essenciais - os fiéis católicos romanos podem realmente praticar o que sua igreja tem pregado? Os escândalos não são exceções a uma regra, mas sim momentos extremos que testam a regra em seu cerne. O próprio poder da Igreja Católica Romana tem prioridade sobre o bem-estar temporal de seus membros, incluindo sua segurança psicológica, emocional e física.

Muitos católicos romanos piedosos e tradicionais admitiram essencialmente este ponto. Eles simplesmente não podem deixar a Igreja Católica Romana, mesmo que as piores alegações sejam todas verdadeiras. Sua salvação depende disso. Com uma mistura de confiança e desespero, eles citam retoricamente João 6: “Para onde mais podemos ir?” E de acordo com a teologia católica romana, seu ponto é válido. Nesses termos, Jesus confinou Sua igreja à jurisdição clerical do bispo de Roma, e simplesmente não há apelo além dela ou, no caso de tirania espiritual, forma de escapar dela. A fim de ganhar a salvação, eles devem “odiar sua vida” (como diria o raciocínio de uma leitura eclesiástica de João 12:25), e isso inclui submeter-se ao abuso em sua própria igreja.

Este princípio também se aplica às ordens inferiores do clero. Teoricamente, eles têm menos autoridade, mas, na prática, têm autoridade mais urgente. Os mesmos homens que são predadores sexuais ou estão encobrindo e permitindo predadores sexuais têm a tarefa de cuidar das almas. Este não é apenas um cuidado prudencial e ministerial. É também jurídico. Os sacerdotes e bispos são os executores práticos do sacramento da reconciliação, que inclui uma aplicação prudencial da disciplina e até da justiça. Ser insubordinado a eles, mesmo no caso de ameaças extremas e existenciais, é arriscar a própria salvação. Se o padre é um agressor, as vítimas também devem ir até ele para receber os sacramentos. E eles não podem presumir que seu bispo seria uma fonte útil ou simpática de apelos. Michael Brendan Dougherty expressa esse dilema precisamente quando escreve: "Quanto Deus deve nos odiar para colocar os meios de salvação nas mãos de tantos predadores?"

Não é um tiro barato usar a crise dos abusos sexuais dentro do catolicismo romano para testar suas afirmações sobre si mesmo e a salvação. Ao contrário, esta crise mostra exatamente o que está em jogo nessas reivindicações. O papado não admite nenhuma responsabilidade terrena. Mesmo se a pior dos mais recentes acusações fosse provada verdadeira, seria totalmente impróprio para um católico romano pedir a renúncia do papa. Também seria impossível para um católico fiel deixar a Igreja sem também perder a salvação. Tudo isso está necessariamente implícito nas reivindicações eclesiásticas do Catolicismo Romano. Esses são os custos de tal religião.

Mas se essas afirmações não forem verdadeiras, se Roma não for o que afirma ser, então esta é uma das maiores tragédias da história humana. Centenas de milhares de almas estão sendo mantidas em cativeiro espiritual. Eles estão sofrendo uma grave injustiça. Eles estão sendo abusados ​​continuamente. Para aqueles de nós que acreditam que as afirmações de Roma são falsas - e que acreditam que podemos demonstrar essa falsidade - a verdadeira compaixão nos obriga a falar. Devemos ser bons vizinhos. Devemos amar nossos irmãos católicos romanos como a nós mesmos. Quão covardes ou indiferentes teríamos que ser para permanecer em silêncio?

Dada a enormidade dos escândalos de abuso da Igreja Católica Romana, é justo, razoável e amoroso chamar católicos individualmente para investigar verdadeiramente as reivindicações de sua igreja. Se não for o que afirma ser, então não pode sustentar suas exigências de alto risco para os leigos. Se Roma não é a única igreja verdadeira, então exige que seu clero e seus membros mentem. Se Roma não é a única igreja verdadeira, então atualmente exige que seus membros arrisquem sua segurança espiritual e física. Devem abandoná-lo imediatamente, para seu próprio bem e para o bem de seus filhos. E se Roma não é a única igreja verdadeira, então todos os homens de boa vontade deveriam querer que essa verdade fosse conhecida.

O que Roma realmente afirma sobre a definição da Igreja

Muitas discussões sobre o catolicismo romano permitem que as reivindicações contestadas se posicionem em um nível geral. Dizem que os católicos acreditam nos padres, bispos e na sucessão apostólica. Os pais da igreja dos primeiros seiscentos anos do Cristianismo são então trazidos para apoiar esses conceitos e categorias. Mas esta já é uma abordagem errada. Veja, o catolicismo romano não afirma simplesmente que Jesus criou uma igreja governada por bispos que descendem diretamente dos apóstolos. Afirma que Jesus estabeleceu um episcopado singular por meio do apóstolo Pedro, que então deu essa jurisdição monoepiscopal ao bispo de Roma. Essa jurisdição se estende a todos os outros bispos e, de fato, a todas as igrejas particulares. A literatura dogmática católica romana deixa isso claro.

Vaticano I 

O primeiro Concílio Vaticano representa a expressão mais completa da eclesiologia católica romana. Ele contém todas as afirmações principais e considera que qualquer um que rejeite essas afirmações está sob anátema. Por exemplo, o Vaticano I afirma:
"... A sé apostólica e o pontífice romano detêm uma primazia mundial, e que o pontífice romano é o sucessor do beato Pedro, o príncipe dos apóstolos, verdadeiro vigário de Cristo, cabeça de toda a igreja e pai e mestre de todos os cristãos. A ele, no bendito Pedro, todo o poder foi dado por nosso Senhor Jesus Cristo para cuidar, governar e alimentar a igreja universal" (Sessão 4, Capítulo 3, Ponto 1).
Observe os detalhes da reivindicação. Jesus realmente deu essa regra universal a Pedro, e o pontífice romano é o sucessor de Pedro. Imediatamente antes deste parágrafo e imediatamente após ele, o Vaticano I sustenta que esta afirmação é um fato exegético e histórico, "apoiado pelo claro testemunho da sagrada Escritura, e aderindo aos decretos manifestos e explícitos tanto de nossos predecessores, os pontífices romanos, como de concílios gerais ... ”.

Certas implicações decorrem diretamente deste fato:
"Portanto, ensinamos e declaramos que, por ordenança divina, a igreja romana possui uma preeminência de poder ordinário sobre todas as outras igrejas, e que esse poder jurisdicional do pontífice romano é episcopal e imediato. Tanto o clero quanto os fiéis, de qualquer rito e dignidade, tanto individual quanto coletivamente, são obrigados a se submeter a esse poder pelo dever de subordinação hierárquica e verdadeira obediência, e isso não apenas em questões relativas à fé e à moral, mas também naquelas que dizem respeito a disciplina e o governo da igreja em todo o mundo" (Sessão 4, Capítulo 3, Ponto 2).
O Concílio é claro que essa autoridade se aplica tanto à fé quanto à moral, tanto no ensino de proclamações quanto nas decisões sobre governo e disciplina. Qualquer apelo a um concílio sobre e contra um papa é proibido (4.3.8), e qualquer pessoa que rejeitar o poder plenário absoluto do papa na fé, moral, disciplina ou governo é colocado sob um anátema (4.3.9).

O direito canônico católico atual também prescreve esse tipo de identidade eclesiástica. Diz:
Cânon 331. O bispo da Igreja Romana, em quem continua o ofício conferido pelo Senhor exclusivamente a Pedro, o primeiro dos apóstolos, e a ser transmitido aos seus sucessores, é o chefe do colégio dos bispos, o Vigário de Cristo, e o pastor da Igreja universal na terra. Em virtude de seu ofício, ele possui o poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal na Igreja, que sempre pode exercer livremente.

Cânon 333. §1. Em virtude de seu ofício, o Romano Pontífice não só possui poder sobre a Igreja universal, mas também obtém o primado do poder ordinário sobre todas as igrejas particulares e grupos delas. Além disso, esta primazia fortalece e protege o poder próprio, ordinário e imediato que os bispos possuem nas igrejas particulares confiadas aos seus cuidados.

§2. No cumprimento do cargo de pastor supremo da Igreja, o Romano Pontífice está sempre unido em comunhão com os outros bispos e com a Igreja universal. Não obstante, ele tem o direito de, de acordo com as necessidades da Igreja, determinar a forma, pessoal ou colegiada, de exercer esse ofício.

§3. Nenhum apelo ou recurso é permitido contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice.
É importante destacar alguns pontos. As afirmações feitas são históricas e factuais. Diz-se que Jesus deu esse cargo específico a Pedro, que então se tornou o primeiro bispo de Roma e dotou aquela sede episcopal com essa autoridade. O bispo de Roma tem poder total e absoluto sobre todas as igrejas particulares e, na verdade, sobre todos os cristãos. Ele não recebe essa autoridade de outros cristãos, igrejas ou clérigos. Ele não é seu representante eleito. Em vez disso, ele recebe essa autoridade diretamente de Cristo e governa imediatamente sobre todas as igrejas e cristãos. Ele pode optar por usar um colégio de bispos. Ele pode escolher não fazê-lo. E suas sentenças e decretos não têm apelação ou recurso.

Tudo isso é o que Roma proclama sobre a Igreja, e é nisso que os católicos devem acreditar se acreditam que a Igreja Católica Romana é a única igreja verdadeira, a igreja fundada por Jesus Cristo.

A história da reivindicação romana

O Vaticano I não foi a primeira vez que esse tipo de reivindicação foi feita pela Igreja Católica Romana. Já no século XI, essas idéias estavam sendo vinculadas ao papado. Dictatus Papae, muitas vezes creditado a Gregório VII, faz estas afirmações:
1. Que a igreja romana foi fundada somente por Deus.
2. Que só o pontífice romano pode, com direito, ser chamado de universal.
4. Que, num concílio, o seu legado, mesmo que de grau inferior, está acima de todos os bispos, e pode decretar sentença de depoimento contra eles.
15. Que aquele que é por ele ordenado presida outra igreja, mas não ocupe cargo subordinado; e que tal pessoa não pode receber um grau mais alto de qualquer bispo.
18. Uma sentença proferida por ele não pode ser retratada por ninguém; e ele mesmo, o único de todos, pode retratá-la.
19. Ele mesmo não pode ser julgado por ninguém.
Muitos contestam a validade e autoridade de Dictatus Papae, e por isso é importante apontar que suas afirmações são ecoadas pelos Decretais de Graciano (com a importante ressalva de que os decretos parecem permitir que um papa seja julgado em caso de heresia, embora teólogos posteriores estejam divididos sobre como isso poderia realmente funcionar. A lei canônica atual o impede: “Can. 1404. A Primeira Sé não é julgada por ninguém.”).

O Quarto Concílio de Latrão de 1215 sustentou que todas as outras igrejas estão subordinadas a Roma:
"Decretamos, com a aprovação deste sagrado sínodo universal, que depois da igreja romana, que pela disposição do Senhor tem o primado do poder ordinário sobre todas as outras igrejas, visto que é a mãe e senhora de todos os fiéis de Cristo, a igreja de Constantinopla terá o primeiro lugar, a igreja de Alexandria o segundo lugar, a igreja de Antioquia o terceiro lugar e a igreja de Jerusalém o quarto lugar, cada uma mantendo sua própria posição".
Isso foi exposto em 1302, quando a Unam Sanctam argumentou:
"Portanto, da única Igreja há um corpo e uma cabeça, não duas cabeças como um monstro; isto é, Cristo e o Vigário de Cristo, Pedro e o sucessor de Pedro, visto que o Senhor falando ao próprio Pedro disse: 'Apascenta minhas ovelhas' [Jo 21,17], ou seja, minhas ovelhas em geral, não estas, nem aquelas em particular, de onde entendemos que Ele confiou tudo a ele [Pedro]. Portanto, se os gregos ou outros disserem que não são confiados a Pedro e aos seus sucessores, devem confessar não serem ovelhas de Cristo, pois Nosso Senhor diz em João: 'há um só redil e um pastor'."
Aqui vemos uma afirmação exegética de que Jesus confiou o governo de toda a igreja a Pedro e seus sucessores em João 21:17. Isso é importante porque não permite qualquer afirmação posterior de que a Igreja Católica poderia desenvolver esse tipo de ensino. Unam Sanctam não afirma que o ensino estava vagamente presente em forma de semente, precisando ser esclarecido e aplicado de uma nova maneira. Diz que seu ensino vem diretamente de Jesus.

O Concílio de Florença de 1439 fez esta declaração:
"Também definimos que a Santa Sé Apostólica e o Pontífice Romano detém o primado sobre todo o mundo e o Pontífice Romano é o sucessor do beato Pedro, príncipe dos apóstolos, e que ele é o verdadeiro vigário de Cristo, o cabeça de toda a Igreja e o pai e mestre de todos os cristãos, e a ele foi confiado no beato Pedro o pleno poder de cuidar, governar e apascentar toda a igreja, como está contido também nos atos dos concílios ecumênicos e nos cânones sagrados."
Novamente, vemos que o bispo romano recebe ensino universal e autoridade governante sobre toda a igreja (na verdade, todo o mundo), e ele recebe essa autoridade por meio de Pedro, que a recebeu de Cristo.

O Concílio de Trento esclareceu que o clero católico romano não recebe sua autoridade dos leigos e, portanto, sua ordenação e autoridade não dependem do consentimento dos leigos:
Além disso, o sagrado e santo Sínodo ensina que, na ordenação de bispos, sacerdotes e de outras ordens, nem o consentimento, nem a vocação, nem a autoridade, seja do povo, seja de qualquer poder civil ou magistrado, seja exigida em tal sentido que sem isso, a ordenação é inválida (23ª Sessão, Capítulo 4)
E também:
CÂNON VI. – Se alguém disser que, na Igreja Católica não há uma hierarquia instituída por ordenação divina, consistindo de bispos, padres e ministros; que ele seja anátema.
CÂNON VII. – Se alguém disser, que os bispos não são superiores aos sacerdotes; ou que eles não têm o poder de confirmar e ordenar; ou, que o poder que possuem é comum a eles e aos sacerdotes; ou, que as ordens, conferidas por eles, sem o consentimento, ou vocação do povo, ou do poder secular, são inválidas; ou, que aqueles que não foram ordenados corretamente, nem enviados, pelo poder eclesiástico e canônico, mas vêm de outro lugar, são ministros legítimos da palavra e dos sacramentos; que ele seja anátema.
Mais uma vez, afirma-se que a hierarquia da Igreja Católica veio por ordenação divina. Os bispos são considerados superiores aos sacerdotes, e a validade de qualquer ordenação não depende do consentimento dos leigos, mas do poder eclesiástico superior.

Assim, a definição completa do governo da Igreja feita pelo Concílio Vaticano I já foi feita de várias maneiras entre os séculos XI e XVI. É claramente um dogma católico romano. Afirma que o governo hierárquico da igreja é monoepiscopal, descendo de Jesus a Pedro, ao bispo de Roma e depois a todas as outras igrejas. Este governo é universal e absoluto, e o bispo de Roma ensina e governa todas as igrejas cristãs imediatamente. Nenhum julgamento pode ser feito sobre ele e nenhum recurso pode ser feito além dele.

Mas como essas afirmações se comparam à realidade dos primeiros séculos da Igreja Cristã? Essas afirmações podem ser corroboradas pelas Escrituras ou pela história? Os fatos da história mostram um quadro contrário?

Vamos dedicar nossa próxima parte a essa questão.