Diálogo sobre a "Sagrada Família"

O diálogo abaixo ocorreu em uma rede social, discutindo temas sobre a religião cristã. Reproduzo, pela importância do conteúdo, com pequenas adaptações.
 

Não eram uma família. Todos os ícones, toda a tradição ortodoxa é testemunha disso. Essa imagem [acima] vai contra tudo que a Igreja ensina sobre as relações entre essas três pessoas. Maria é a Arca, Cristo é o Logos e São José o protetor da Arca e seu conteúdo.

Os ícones que vão dos ancestrais de Cristo até sua família estendida de avós, bisavós, tios e primos é que devem permear nosso conceito de "Sagrada Família".





Os ícones que melhor demonstram as relações entre Maria, José e Cristo são os da "Fuga para o Egito". Maria, entronada no burrico (como Cristo mesmo o faria anos depois na sua entrada triunfal), José afastado e São Tiago puxando o burrico. O lugar natural de Cristo é no colo da Teotókos e nos ícones em que Ele está nos ombros de São José (simbolizando o apoio que S. José deu à Sua infância), nosso Redentor estende-se para querer voltar para o colo de Sua Santíssima Mãe, precisamente por não ser natural que Ele se assente em outro lugar.

- Nao entendi bem por que não eram uma família. Pode explicar melhor?

O papel que tinham em relação um ao outro, no caso de José, não era de marido e pai stricto-sensu. José era como um sacerdote. Claro que ele considerava a condição humana dela e a tratava como gente. Mas nesse ponto ele era mais como um pai dela.

José já estava na terceira idade quando noivou com a jovem Maria que devia estar ali entre 14 ou 15 anos. José já era viúvo. Ele não casou com ela para ser marido, mas para protegê-la da sociedade num primeiro momento, e, depois, quando entendeu a missão dela e o Filho que Ela teria, protegê-la nos primeiros anos dessa missão.

Isso é representado nos ícones ortodoxos (não essas imagens romanas em estilo bizantino feitas modernamente) pelo fato de que José está sempre longe de Maria. Nunca há essa intimidade de ficar juntinho que vemos nas imagens [latinas] de "sagrada família".

Maria não queria casar, mas viver devotada exclusivamente a Deus. Em termos eclesiásticos, ela queria a vida como freira, mas essa possibilidade nem existia naquela época. Ela tinha que estar com o pai, com um parente ou com um marido ou seria uma pária na sociedade. Como atender esse desejo então? Casando-a com um homem idoso e justo que não a forçaria a consumar o casamento, primeiro por compreender e admirar seu desejo, em segundo lugar porque a vida conjugal dele como homem já estava resolvida, inclusive com filhos grandes e terceiro porque já tinha idade avançada e sabedoria e não tinha interesse ou tentação em uma jovenzinha.

Casá-la com um velho viúvo era exatamente uma forma dela manter-se virgem, exclusivamente devotada a Deus, e cumprir a formalidade social dela ser casada. Uma vez que José morresse, ela seria oficialmente uma viúva, e ninguém a incomodaria.

Essa tradição oral só foi registrada por escrito em livros apócrifos tardios que a usaram para tentar ganhar crédito com o povo. Assim, a Igreja rejeitou os livros e preservou o que a tradição oral ensinava incluindo no calendário litúrgico.

São José sendo representado como um homem jovem e como exemplo de marido e pai é coisa que só aparece na época das navegações, na Ibéria Ocidental, já cismática, como devoção criada para incitar fidelidade matrimonial nos marinheiros. Começou de forma discreta antes, mas a devoção a essa "Sagrada Família" só ganha força mesmo nas Navegações.

O problema que se cria é: se José não é um bondoso avô que protege Maria com a ajuda de seus filhos Tiago e Judas, inclusive aceitando o desprezo da sociedade por noivar uma menina, se ele é jovem, nunca casado e forte, como é que ela permanece virgem? Aí você tem que criar essa coisa do casamento "josefino", onde as pessoas casam mas não consumam, criando mais uma neura sexual no Ocidente.

Colocar José e Maria como marido e mulher gera todo tipo de problema psicológico, social e espiritual. Porque na realidade, mesmo a intimidade de ficar juntinho como maridinho e mulher nessas imagens, já é uma agressão horrível à Santíssima Maria. Ela é a Nova Arca. Ninguém encosta na Arca da Aliança ou morre. José era um sábio, um tzadic. Quando ele entendeu que Maria seria um tipo de nova arca, ele entendeu bem que não era pra ficar de intimidade ou chamego com ela.

- Muito interessante. O problema é que as imagens no catolicismo são um canal para todo tipo de imaginação e inovação. Sempre foram. Recentemente circularam uma imagens de "José bombadão" em algumas igrejas e muito católico conservador estava achando o máximo... Acho que muitos católicos imaginam que José não foi viúvo, mas virgem.

 
Sim. Por isso precisam dizer que os "irmãos de Cristo" eram na verdade primos. Não eram. Eram filhos de José do primeiro casamento [Cf. S. Epifânio de Salamina, Panarion, 58, 7, também S. Gregório de Nissa e S. Hilário de Poitiers].

E imagine o nó que dá no imaginário e subsconsciente das pessoas achar que o casamento exemplar é um no qual os esposos são virgens e nunca se tocam. Se você trata sua esposa como a Virgem Maria, intocável, dá neura, adultério...

Você vê que é com esse tipo de coisa que surge na Idade Média o romantismo, o amor platônico dos cavaleiros, que adoram suas amadas de longe. Estão tratando esposas como se fossem a Virgem Maria: intocadas em relação virginal. Tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento alertam enfaticamente que o sexo é tão necessário entre os esposos que chega a ser um dever [1 Coríntios 7:5], e que se uma parte adulterar por causa da tentação que a falta de sexo provoca, o parceiro será considerado parcialmente responsável pelo pecado.

Isso também cria esse vício burguês da "mulher pra casar" e "mulher pra transar". Se você tem que tratar a esposa como a Virgem Maria, a paixão sexual, que em si mesma não é má, vai se acumulando, e assim como um faminto come até lixo, a pessoa acaba se satisfazendo com o que há de mais baixo.

O início da promiscuidade ocidental está inteira nessa questão de os esposos verem o sexo como sujo no casamento, levando primeiro a promiscuidade dos homens procurando amantes e prostitutas e isso sendo visto como aceitável porque os homens diziam que eram desejos naturais e incompatíveis com "a mãe dos meus filhos" e que precisavam ser satisfeitos.

Vejam como o diabo é astuto. É verdade que os desejos sexuais salutares (sem doideira e "fantasias", por favor), precisam mesmo ser satisfeitos. Os dos homens e os das mulheres. E o lugar disso é entre adultos, de sexo oposto, casados. Se você bloqueia essa via através de um desvio de entendimento da relação do casal, a represa rompe de algum lado. Só que quando rompe é questão de tempo para que todas as sujeiras se espalhem. Começou com licença sexual masculina e hoje é esse estado de coisas que vemos.

Só que a origem desse entendimento equivocado da relação entre esposos é a contaminação do imaginário com um "exemplo" de casal que não é um casal e cuja relação que havia entre eles não pode e não deve tentar ser reproduzida.

Cria aliás outro desvio: o da família nuclear, papai, mamãe e filhos como sendo "a família".

O modelo bíblico é outro, o exposto nos ícones: a família, inclusive a família sagrada é a família estendida, que inclui seus avós, tios, tias, primas, bisavós, irmãos, e até ancestrais. Essa é a família que a Igreja nos dá como exemplo. Essa é a família padrão: a família estendida. O "núcleo" familiar sozinho é fraco e por isso a família vem sendo destruída. Nunca esse núcleo familiar vai conseguir resistir. Apostar nele é já perder. Quem tem que ajudar na criação dos filhos não é a creche ou os amigos: são os avós mesmo, os tios, tias, os irmãos e primos mais velhos. É por isso que as crianças não seguem a educação dos pais. Não é suficiente mesmo. Ela vai seguir o que a comunidade diz, e essa comunidade deve ser a família toda. É essa família estendida ausente que ela subsitui pela televisão, pelas más influências. O professor materialista não toma o lugar do pai. Toma o lugar dos tios, dos demais adultos da família.

As pessoas dizem que é impossível trabalhar e criar filhos sozinhos e por isso tem que deixar na creche. Essa impossiblidade não é moderna. Sempre existiu. A creche não supre "pais ausentes". Isso é mentira. Nenhum pai ou mãe tem condição de ser 'tudo' para qualquer criança. A creche toma o lugar dos avós, isso sim. A escola toma o lugar dos tios e primos. Não é de modo nenhum coincidência que as crianças chamam as professoras de "tias". Isso é um grito de socorro praticamente, pois era pra ser a tia ou tio mesmo tomando conta.

E nessa família, temos os ícones da Concepção da Teotókos e de João Batista. Em ambos vemos os pais da criança se beijando, que é uma forma modesta e santa de indicar precisamente os meios normais de concepção. Numa família sagrada, a relação sexual entre o pai e a mãe não macula ou diminui a santidade.
 
Imagine os pais se moldando sobre Maria e José... Quem vai conseguir criar um filho que é um homem-Deus? Mas se você tem a família sagrada real como referência, que gerou os dois seres humanos mais santos da Criação, Maria e João Batista, você tem chances reais de criar filhos santos.

Se você se mira na relação deles, tem expectativa de que amar sua esposa é protegê-la, mas tocar nela é meio sujo, fica a pressão interna para fazer "coisas sujas" com "mulheres sujas". Seu marido, se deseja te tocar, está pecando e agindo de forma imprópria. E se o seu filho não é perfeito é porque fracassou.

O casamento sem sexo é permitido na Igreja, mas em casos muito específicos: pessoas idosas não pecam se não têm relações. Alguns casais, raríssimos, encontram vocações monásticas tardias e se os dois concordam, podem viver sem relações. Mas se apenas um quer, não deve submeter o outro a isso. E nunca, nunca, por achar que o sexo dentro casamento é sujo.

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