Um brevíssimo resumo da história do primado de Roma

 


A história do primado de Roma na Igreja é complexa e traz algumas ambiguidades.

Imediatamente após a era apostólica, temos o exemplo da carta de S. Clemente (bispo de Roma) à Igreja de Corinto, intervindo com linguagem de autoridade. É algo bastante significativo, mas não aparece ainda uma teoria ou fundamento para o primado. Nessa mesma época, segundo relata Eusébio, o bispo de Alexandria também escreveu dando "direções" em matéria disciplinar para igrejas fora do Egito. Não significa ainda um exercício de jurisdição.

No mesmo período, S. Inácio de Antioquia louva a Igreja de Roma como "aquela que preside na caridade". É um testemunho claro de alguma espécie de primado em Roma, mas este não aparece ainda como jurisdicional, nem fica evidente o fundamento que sustentaria esse primado (se era a fundação por S. Pedro ou a posição política de Roma).

Ainda no século II, houve uma controvérsia envolvendo a celebração da Páscoa. O papa S. Vítor quis excomungar as igrejas da Ásia que celebravam a Páscoa em data diferente. Mas a reação de S. Polícrates foi de desobedecer à ordem, dizendo: "Não me assusto fácil com palavras terríveis, pois os que são maiores que eu disseram: Devemos obedecer a Deus ao invés dos homens..." (relatado por Eusébio em sua História Eclesiástica). No fim das contas, segundo Eusébio, o papa foi "repreendido" por Sto. Irineu e outros bispos que consideraram que era um erro excomungar aquelas comunidades. E aquelas comunidades, de fato, não foram separadas da união.

É significativo que Vítor assumiu o papel de intervir e tentar excomungar as igrejas que tinham essa prática diferente, mas também é ainda mais notável que suas ordens foram desobedecidas e, no final, as igrejas da Ásia tenham permanecido na unidade da Igreja. Se havia alguma alegação da natureza jurisdicional do primado - o que não aparece claramente -, ela certamente não foi reconhecida por todos, nem pela maioria.

É digno de nota que as divergências na celebração da Páscoa só foram solucionadas definitivamente no concílio de Niceia, que uniformizou a prática. Ou seja, foi necessária uma decisão em comum pelos bispos. Isso mostra como a Igreja realmente era governada.

No século III, houve uma controvérsia que envolveu mais diretamente a autoridade de Roma: a questão do rebatismo de convertidos que haviam sido batizados por hereges ou cismáticos. S. Cipriano de Cartago testemunhou que a Igreja de Roma era "a cátedra de Pedro, a Igreja principal, de onde se origina a unidade sacerdotal", uma afirmação bastante significativa do importante lugar de Roma entre as igrejas. Por outro lado, o próprio Cipriano demonstrou ter um entendimento não-jurisdicional desse primado, recusando obediência às ordens do papa S. Estevão sobre o assunto. Isso é reconhecido pelo Pe. William Jurgens (católico romano), na sua coletânea The Faith of the Early Fathers.

S. Firmiliano tomou o lado de Cipriano na controvérsia, escrevendo como se o papa estivesse já em cisma. Ele denunciou como inúteis as tentativas do papa de "alegar a autoridade dos apóstolos" e a "sucessão de Pedro" em seu favor. Firmiliano é um representante da tradição que prevaleceu na Igreja Ortodoxa, mas sua carta também indica que já naquele tempo os papas alegavam algum tipo de sucessão petrina como fonte de sua autoridade.

Assim como ocorreu com a controvérsia da Páscoa, a questão do rebatismo só foi solucionada definitivamente pelos concílios (e não pela decisão monocrática do bispo de Roma!). A posição de Cipriano sobre o rebatismo foi, de maneira geral, derrotada.

No século IV, o concílio de Niceia não estabeleceu nada de explícito sobre o primado, mas havia um reconhecimento implícito de uma ordem de precedência entre as igrejas, que era a seguinte: Roma, Alexandria e Antioquia. Posteriormente, com os concílios de Constantinopla e Calcedônia, essa ordem foi alterada para: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Foi a chamada "pentarquia", o governo das cinco igrejas principais.

Foi no século IV também que vemos o papa S. Dâmaso - ao menos se a parte do Decretum Gelasianum atribuída a ele é realmente autêntica - explicitar formalmente o motivo de seu primado: é que Roma era a "Sé de Pedro" e tinha recebido esse primado diretamente de Cristo e não de qualquer concílio. Para Dâmaso, as igrejas de Alexandria e Antioquia também eram "Sés de Pedro", mas subordinadas à de Roma.

Depois de Dâmaso, outros papas ensinaram o primado papal com ainda mais ênfase em sua origem divina e natureza jurisdicional. No século V, abundam testemunhos de bispos de Roma ensinando que "não há apelação" de suas decisões, que "todas as igrejas, ainda que nos lugares mais distantes" devem-lhe obediência, etc. Foi também nessa época que viveu S. Leão, bispo de Roma e um dos mais notáveis Padres da Igreja, cujo entendimento do primado é jurisdicional e aduz uma origem divina. Depois dele, S. Gelásio também ensinou o mesmo. Esses papas são ainda hoje celebrados como santos na Igreja Ortodoxa; mas isso não significa, evidentemente, que suas posições sobre o assunto sejam recebidas.

Na mesma época, entretanto, os orientais (particularmente a Igreja de Constantinopla) insistiram em um entendimento do primado como um arranjo baseado no poder temporal. Isso aparece nos cânones dos concílios de Constantinopla e Calcedônia que atribuem à Igreja de Constantinopla o "segundo lugar" após Roma, e "iguais privilégios", sob a alegação de que "é a nova Roma" (ou seja, a nova capital do Império Romano). A Igreja de Roma jamais aceitou essa interpretação do primado, mas tampouco os bispos orientais a retiraram.

A partir dessa época, estava instalada uma divergência na interpretação do governo da Igreja que, em última análise, levaria ao cisma definitivo muitos séculos depois.

Temos nessa época exemplos notáveis de resistência à jurisdição de Roma, como no concílio de Cartago, no século V, que rejeitou a aplicação dos cânones de Sardica (alegados por Roma para receber apelações de membros das demais igrejas em questões disciplinares). Ou, ainda, no caso de S. Basílio que tomou o lado de S. Melécio, bispo de Antioquia não reconhecido por Roma (que reconhecia S. Paulino). É difícil entender esses e outros eventos à luz das teorias papais medievais (ou mesmo as que S. Leão e os papas defendiam já naquela época).

Entretanto, a posição ortodoxa também traz ambiguidades, como quando vemos a concordância dos orientais do sexto concílio ecumênico com a Carta de S. Agatão (que explicitava como nunca antes o primado romano, sua origem divina e infalibilidade). Essa carta foi recebida oficialmente e sem ressalvas, embora o concílio tenha simultaneamente condenado um papa anterior já falecido, Honório, pela heresia monotelita. Isso ilustra a complexidade da questão e os católicos podem alegar que, naquele concílio, foi reconhecido oficialmente a origem divina e a preservação da Sé Romana. No entanto, isso é um erro. É a forma como os orientais interpretavam aquelas "exaltações" da Sé de Roma que diferia dos ocidentais. Para o Oriente, essas prerrogativas e garantias não eram exclusivas nem incondicionais.

Parece que os orientais estavam dispostos a tolerar as alegações de um primado de origem divina por Roma, desde que Roma estivesse de seu lado nas questões de fé e desde que algum grau de independência fosse garantida às suas igrejas (inclusive com a liberdade de criticar Roma, como se vê no concílio Quinissexto no século VII). Quando sentiram que isso não estava mais acontecendo (com a inserção do filioque no Credo), os orientais definitivamente rejeitaram as alegações papais de autoridade.

A atitude oriental pode ser resumida na frase do quinto concílio ecumênico dirigida ao papa Vigílio: "Se sua santidade está disposta a se encontrar conosco e com os santíssimos patriarcas, e os bispos mais religiosos [isto é, concordando conosco]... nós vamos te reconhecer como nosso Cabeça e Primaz". Há um "se" condicional bastante significativo nessa frase.

Algumas décadas antes de Honório, temos o curioso caso do papa S. Gregório. Ele escreveu contra o título de "bispo universal" - que posteriormente foi usado pelos papas - dizendo que era sinal de orgulho, que nenhum bispo poderia se colocar acima dos demais, etc. Em algumas de suas cartas, transparece um entendimento não jurisdicional do primado de Roma. Em outras, porém, ele afirma que a Igreja de Roma é "colocada acima de todas", e isso "por ordem de Deus". Ele também repete que a Igreja de Constantinopla estava "sujeita" a Roma, algo impensável para um ortodoxo hoje. É até difícil encerrar suas afirmações em uma síntese coerente, por isso mesmo S. Gregório talvez seja o representante perfeito da Igreja do primeiro milênio nesse assunto: reconhecia o primado de Roma e até algumas consequências jurisdicionais (princípio que prevaleceu e foi absurdamente exagerado no Ocidente), mas limitando-o por uma forte expressão da necessidade de comunhão e consenso entre as igrejas (princípio que prevaleceu no Oriente).

É impossível ignorar que o entendimento do primado de Roma foi influenciado grandemente por uma sucessão de fraudes documentais, como as Falsas Decretais e a Doação de Constantino. Isso é um sinal claro de como as coisas saíram do controle no Ocidente.

No fim das contas, é difícil avaliar a história da Igreja e entender cada controvérsia, cada documento e cada afirmação de Padres da Igreja ou de concílios. Os dois entendimentos tem algum grau de razoabilidade. O entendimento católico romano é basicamente: Cristo deu a Pedro as chaves do reino do céus, como lemos no Evangelho, e um primado petrino foi sempre reconhecido; Roma deteve também o primado e desde tempos remotos alegou sua origem petrina. Dentro dessa lógica, as dificuldades de alguns Padres e concílios nos primeiros séculos é explicada pelo desenvolvimento da doutrina, ou seja: o primado estava lá, mas somos obrigados a reconhecer que nem todas as suas implicações e prerrogativas foram entendidas por todos desde o início.

Do lado ortodoxo, afirma-se que todos os bispos são sucessores de S. Pedro, que sua autoridade é de certo modo difusa em todo o episcopado. A ênfase ortodoxa no consenso e concordância encaixa-se plenamente nas ênfases dos Evangelhos.

A apocatástase em S. Máximo Confessor

Andreas Andreopoulos

Temos de compreender que embora a ideia da restauração de tudo faça parte da tradição espiritual oriental (mesmo que como uma hipótese), a Igreja nunca poderia aceitá-la como uma doutrina porque, pelo menos, o seu aparente determinismo pode levar à apatia espiritual. A teoria da apocatástase custou extraoficialmente a S. Gregório de Nissa por muitos séculos o reconhecimento como um teólogo da categoria de Basílio, Gregório Nazianzeno e João Crisóstomo, e foi uma das razões pelas quais Orígenes foi anatematizado. No entanto, em alguns aspectos, também pode ser encontrado na teologia de Máximo, o Confessor, um Padre da Igreja que tem sido frequentemente considerado a medida da ortodoxia em questões doutrinárias e o ápice da teologia ortodoxa.

As ideias de Máximo podem ser ligadas ao conceito de apocatástase de três maneiras diferentes. Primeiro, ele escreveu algumas passagens que dizem respeito explicitamente à apocatástase. Em segundo lugar, algumas questões examinadas nos seus escritos podem estar relacionadas com a apocatástase, e esta associação foi feita por certos estudiosos, mas Máximo recusa-se a discuti-las em detalhe, na expressão apofática que tomou emprestada do pseudo-Dionísio, "honrando a verdade por silêncio". Terceiro, todo o sistema teológico de salvação cósmica de Máximo e os seus pontos de vista sobre o que exatamente é restaurado no tipo de apocatástase reconhecido pela Igreja, podem dar-nos uma boa visão dos seus pontos de vista sobre a possibilidade de uma restauração final de tudo.

Máximo, em Questiones et Dubia 19, comentando a noção de apocatástase encontrada em Gregório de Nissa, escreve que a Igreja conhece ou reconhece três tipos de restauração: O primeiro significado aplica-se à restauração do indivíduo através da virtude; neste caso, restauração significa o retorno à condição primordial de bondade do homem. O segundo significado aplica-se à restauração de toda a natureza do homem durante a ressurreição dos corpos: a condição ontológica de incorruptibilidade e imortalidade paradisíaca é restaurada. A terceira, e aqui Máximo refere-se especificamente a Gregório de Nissa, aplica-se à restauração dos poderes da alma ao estado em que foram criados, antes de serem alterados pelo pecado. Este tipo de restauração apresenta um ponto interessante para nós: até que ponto Máximo partilhava da visão de Gregório (e de Orígenes) de restauração final de tudo como uma certeza escatológica?

Em primeiro lugar, Máximo parece comparar a restauração da alma à ressurreição do corpo: isso significaria que este tipo de restauração se aplica a todos e não apenas àqueles que progrediram suficientemente no curso da virtude. É então uma restauração ontológica, algo como uma consequência da ressurreição do corpo. Segundo, a restauração das almas parece sugerir a aniquilação do mal, porque os efeitos do pecado são curados. Isto será conseguido pela expulsão do mal das almas no decorrer dos tempos. Finalmente, todas as almas restauradas conhecerão a Deus e verão que ele é anaitios tês hamartias, não responsável pela existência do pecado, o que equivale a dizer que conhecerão a verdadeira natureza do bem e do mal. Os poderes “pervertidos” da alma eliminarão então as memórias e os efeitos do mal e, de uma forma semelhante ao pensamento de Gregório de Nissa, isso envolve punição e purificação. Máximo deixa a questão aí: seu relato de restauração chega a afirmar que toda alma terá conhecimento de “coisas boas” (agatha – provavelmente as energias de Deus), mas não necessariamente participação nelas. É por esta razão que às vezes se pensa que ele não sugere a inevitabilidade da restauração de tudo. Aparentemente, o passo após o conhecimento das energias de Deus é deixado ao livre arbítrio das criaturas de Deus. A salvação de todos não é uma necessidade ontológica, embora pareça ser fortemente sugerida como a consequência racional da restauração dos poderes da alma. Isto parece ser corroborado pelos escritos de Máximo sobre a transformação da vontade gnómica do homem como resultado da restauração:

[A transformação da vontade gnômica do homem acontecerá] por causa da mudança e renovação geral que ocorrerá no futuro, no fim dos tempos, por meio de Deus, nosso Salvador: uma renovação universal de toda a raça humana, natural, mas pela graça (Exposição no Salmo 59, PG 90, 857 A4-15).

Este ponto merece um exame mais atento e voltaremos a ele. Comentaristas modernos de Máximo como Brian Daley e Polycarp Sherwood localizaram além da passagem onde Máximo escreve diretamente sobre a apocatástase três outras passagens das Questiones ad Thalassium que muito provavelmente implicam a crença de Máximo na restauração final e perdão de todos. Dois desses comentários referem-se às duas árvores do Jardim do Éden, tema ligado à apocatástase desde Orígenes, e o terceiro à vitória de Cristo sobre o mal através da sua crucificação. Nessas passagens Máximo afirma que existe uma “explicação melhor e mais secreta, que está guardada na mente dos místicos, mas nós, também, honraremos pelo silêncio”.

Os comentadores modernos vêem este silêncio honroso como um apoio implícito à ideia de apocatástase, que permaneceu silenciosa principalmente por razões pastorais. No entanto, Máximo nunca dá um apoio claro à ideia e, com exceção dos escritos citados acima, ele nunca a aborda extensamente. Sherwood também notou a ausência de qualquer crítica extensa sobre ele, em contraste com outras ideias origenistas que deram a Máximo a linguagem e a oportunidade de desenvolver o seu sistema. É verdade, por outro lado, que há muitas passagens na obra de Máximo que discutem a situação após o Juízo Final e falam do castigo eterno para aqueles que “usaram livremente o logos de serem contrários à natureza”.

Os estudos modernos minaram o pensamento de Máximo em busca de apoio direto ou mesmo implícito ao conceito de apocatástase com bastante sucesso, mas talvez tenham negligenciado um aspecto que parece nos levar mais longe na compreensão de Máximo sobre as últimas coisas. Como mencionamos anteriormente, o terceiro tipo de restauração conhecido pela Igreja, segundo Máximo, aquele que ele relacionou com Gregório de Nissa, tem a ver com a restauração dos poderes da alma antes da queda, e é comum a todas as pessoas, assim como a ressurreição do corpo. Vimos também que na passagem da Expositio no Salmo 59, Máximo nomeia a vontade como pelo menos um dos poderes da alma que será restaurado. Isso significa que a vontade gnômica (a vontade deliberativa específica da natureza decaída) será transformada em vontade natural? Se assim for, e esse parece ser o caso mais provável, esta é a afirmação mais ousada em apoio à apocatástase que podemos encontrar nos escritos de Máximo. Como será possível não nos arrependermos e implorarmos o perdão de Deus da forma mais profunda e sincera, uma vez que a nossa vontade foi restaurada à vontade natural que está sujeita à vontade de Deus? O relato explícito de Máximo termina no momento em que todo ser humano tem conhecimento (epignose) de Deus, mesmo que nem todos pudessem participar de suas energias. Esta condição, no entanto, será imposta a todos e tem pouco a ver com a luta espiritual em direção a Deus. Ora, como compreender a restauração da vontade natural no ser humano, com tudo o que isso acarreta sobre as paixões e a alma? É possível que as almas humanas, angélicas e até mesmo demoníacas, no momento de sua restauração corporal e psíquica, se arrependam, sejam perdoadas e aceitas no reino de Deus, uma vez que abandonaram sua vontade deliberativa e gnômica, e deveriam ser capazes de ver a diferença entre o bem e o mal, ou o retorno ficará restrito àqueles que se arrependeram durante a vida na terra? Esta é a grande questão. Máximo, porém, está falando de um conhecimento claro de Deus, um conhecimento desencarnado, objetivo, que não é necessariamente acompanhado de um “movimento da alma”, algo que não só não pode ser forçado, mas que exige a restauração das virtudes, provavelmente necessário para a salvação.

Quais são os problemas que tal compreensão da teologia de Máximo acarretaria? Em primeiro lugar, se a restauração ontológica do corpo e da alma levasse ao perdão tão facilmente, talvez automaticamente, não há sentido em tentar fazer o bem nesta ou na próxima vida, algo apontado pela maioria dos Padres que escreveram sobre as últimas coisas. Não haveria julgamento, apenas um perdão geral para todos. Em segundo lugar, se o livre arbítrio, gnómico ou natural, for preservado após o Segundo julgamento, existe o perigo de uma segunda queda, à moda origenista, iniciando um novo ciclo de acontecimentos. Máximo, bastante enfaticamente, modificou a cosmologia origenista, corrigindo a tríade origenista de devir, repouso, movimento, em devir, movimento, repouso, indicando precisamente que a situação final tem que ser um equilíbrio cósmico, uma conclusão estável. Em Ambigua 65 ele escreve sobre o ogdoad, o oitavo dia ou a era por vir, que será o "dia melhor e sem fim", que vem depois que "as coisas em movimento pararam", e ele faz a distinção entre o destino dos justos e o destino dos ímpios. É possível então que a restauração da vontade natural não seja suficiente para garantir que não haverá uma segunda queda. Não é nenhuma surpresa que o discurso sobre a apocatástase esteja tradicionalmente ligado à queda original no Jardim do Éden, e os Padres da Igreja viram o pecado original não como uma queda ontológica, mas como uma doença que, no entanto, terminará numa condição melhor – e portanto mais estável – do que o início.

Como isso pode ser comprometido com a restauração de todos? Por um lado Máximo prevê a restauração da vontade natural e fala do fogo purificador da Segunda Vinda, o que implica o fim da purificação, mas por outro lado enfatiza o descanso final. Talvez a resposta possa ser encontrada num comentário das Questiones ad Thalassium 22, onde Máximo faz uma distinção entre a era presente, a "era da carne", que se caracteriza pelo fazer, e a era do Espírito que se caracterizará pelo passar por algo. Isto sugere que o descanso final não será necessariamente um descanso estático, mas que algum tipo de atividade é concebível. Além disso, não é especificado se a atividade dessa era é limitada apenas aos justos; a analogia com a era do fazer sugere o contrário. É possível então que, com a misteriosa frase "aeikinetos stasis" (descanso em constante movimento) que aparece em seus escritos, Máximo tenha imaginado um descanso semelhante à unificação da alma com Deus, conforme descrito por Gregório de Nissa, onde a alma se move infinitamente em direção a Deus, sem nunca poder chegar ao fim do infinito, mas experimentando e participando cada vez mais de suas energias. O “sofrimento” das almas pecadoras poderia então ser traduzido na contrição e no arrependimento que nunca tiveram na vida, o que talvez pudesse mesmo então aproximá-las de Deus, enquanto os justos avançavam em sua feliz participação do divino. Algo assim seria consistente com a possibilidade de uma restauração final de tudo e com a visão de Máximo sobre o resto. Este repouso ativo deveria ser entendido como uma condição imutável apesar do movimento ou sofrimento das almas, algo que satisfizesse a sua posição no final da tríade cosmológica maximiana como conclusão. Significaria também que não haverá uma diferença ontológica entre os justos e os ímpios, como não existe agora.

A escatologia é um dos aspectos mais precários do pensamento teológico, porque tenta explicar coisas que ainda não aconteceram, e mesmo quando o fazem, a nossa linguagem e compreensão podem ser demasiado limitadas para compreendê-las. A apofática “honra pelo silêncio” nos escritos de Máximo parece mais correta do que qualquer tratado sobre o assunto. A restauração de todos, porém, uma possibilidade válida segundo a Igreja, embora não seja uma doutrina, tem um lugar especial na esperança dos santos que oram pela redenção dos seus inimigos, e expressa a nossa esperança na caridade de Deus. Possivelmente, o honroso silêncio expressa esta esperança, que apesar do perigo do determinismo, torna-se quase uma certeza sob esta luz: Se pelo menos um ser humano fosse capaz de perdoar e orar pela salvação de todo o cosmos, a providência de Deus não encontraria uma maneira de fazer isso acontecer?

São Paísios e as orações pelos mortos




É possível, ancião, que os mortos (além dos santos) que ainda não entraram em julgamento orem?

Eles recuperam a consciência e procuram ajuda, mas não conseguem se ajudar. Todos aqueles que estão no Hades por apenas uma ofensa, perguntariam se Cristo poderia dar-lhes apenas cinco minutos para se arrependerem. Nós, que estamos vivos, ainda temos tempo para arrependimento, mas os infelizes que repousaram não podem melhorar sua condição, então esperam nossa ajuda. Portanto, nosso dever é ajudá-los com nossa oração.

Meus pensamentos me dizem que apenas dez entre cem mortos estão em estado demoníaco e, onde estão, amaldiçoam a Deus, como os demônios. Eles não pedem ajuda, nem querem ajuda. O que Deus faria com eles de outra forma? Como uma criança que se distancia do pai, que depois de esbanjar sua fortuna passa a amaldiçoar o pai. O que o pai pode fazer? Outros que já morreram, se têm um pouco de philotimo, sentem sua culpa, se arrependem e sofrem por seus pecados, pedem ajuda e são ajudados positivamente com as orações dos fiéis.

Assim, Deus lhes dá uma chance, mesmo agora, enquanto aguardam o julgamento, de encontrar ajuda antes que a Segunda Vinda aconteça. E, como nesta vida terrena, aquele que é amigo do rei pode intervir junto ao rei e ajudar em favor de alguém que aguarda julgamento, assim também ocorre com aquele que é amigo de Deus, com sua oração ajuda os mortos a passar de uma prisão para outra melhor; de uma cela para outra melhor. Ele pode até movê-los para um quarto ou apartamento.

Assim como aliviamos os prisioneiros, trazendo-lhes bebidas e outras coisas, também aliviamos os mortos, com orações e esmolas que fazemos em nome de suas almas. Orações e memoriais daqueles que ainda estão vivos em nome dos falecidos é a última oportunidade que o Senhor dá para ajudar os falecidos, até o Juízo Final. Após o julgamento, não será mais possível ajudá-los.

Deus quer ajudar os repousados, porque dói pela salvação deles, mas não o faz, porque tem nobreza. Ele não quer dar o direito ao diabo de dizer: "Por que você o salvou, embora ele não tenha trabalhado?" Quando oramos pelos descansados, damos a Deus o direito de intervir. Deus se comove mais quando oramos pelos repousados do que pelos vivos.

É por isso que nossa Igreja tem kollyva e memoriais. Os memoriais são os melhores advogados das almas dos falecidos. Eles têm a capacidade de remover as almas até do inferno. Assim também você deve, em cada Divina Liturgia, ler memoriais e ter kollyva para o repouso. O trigo tem um significado: é semeado na corrupção e ressuscitado na incorrupção, ou seja, simboliza a morte e a ressurreição da humanidade, como dizem as Escrituras.

Ancião, os que morreram recentemente precisam mais de oração?

Quando eles condenam alguém à prisão, não é verdade que no começo é mais difícil para eles? Temos que orar pelos repousados que não agradaram a Deus em vida, para que Deus faça algo por eles. Principalmente quando sabemos que alguém foi endurecido - porque poderíamos pensar que era endurecido, mas na realidade não foi - e viveu uma vida pecaminosa, então temos que rezar muito - com Divinas Liturgias. Quarenta liturgias devem ser servidas consecutivamente por suas almas, esmolas devem ser dadas aos pobres para a salvação de suas almas, para que os pobres orem por eles dizendo: "Que seus ossos sejam santificados", para que Deus tenha misericórdia deles. Assim, tudo o que eles não fizeram, faremos por eles. Enquanto isso, uma pessoa que teve bondade, mesmo que sua vida não fosse boa, pode ser muito ajudada com uma pequena oração.

Conheço acontecimentos que testemunham o quanto os repousados são ajudados pelas orações de pessoas espirituais. Alguém uma vez veio à minha cabana e me disse em lágrimas: "Ancião, eu não orei em nome de um certo homem tranqüilo que era conhecido por mim, e ele apareceu em meus sonhos. Ele me disse que fazia vinte dias e eu não o ajudei, mas agora ele sofre porque eu o esqueci. De fato, por vinte dias eu havia esquecido devido às várias preocupações da vida, e nem rezei por mim mesmo".

Quando alguém morre e nos pedem para orar por ele, é bom, Ancião, rezar um cordão de oração completo em seu nome por quarenta dias?

Se você rezar o cordão de oração completo por eles, ore ao mesmo tempo por todos os que repousam. Por que o trem inteiro deveria ir ao seu destino para apenas um passageiro, quando cabem muitos outros? Quantos infelizes mortos precisam e procuram ajuda, mas não há quem reze por eles! As pessoas às vezes só fazem serviços fúnebres para alguém que era parente ou muito próximo. Fazendo assim não ajudam nem os seus, porque a sua oração não agrada tanto a Deus. Como eles fizeram tantas comemorações para o próximo, que também façam comemorações para todos os que são estranhos.

Ancião, os mortos que não têm quem reze por eles, são ajudados por aqueles que geralmente rezam pelos falecidos?

Claro que são ajudados. Quando rezo por todos os repousados, vejo meus pais em meus sonhos, porque eles estão descansando de minhas orações. Cada vez que tenho uma Divina Liturgia, faço um memorial geral para todos os repousados. Se às vezes eu não orar pelos falecidos, então os falecidos que são conhecidos por mim aparecem diante de mim. Um parente meu, morto na guerra, vi-o à minha frente depois da Divina Liturgia, durante a memória, porque não tinha o seu nome escrito com os outros que tinham repousado, pois foi comemorado durante o Preparação dos dons com aqueles que caíram heroicamente. Vocês também, na Santa Preparação, não comemoram apenas os nomes dos enfermos, mas também os nomes dos mortos, porque os mortos têm maior necessidade.

Após a morte, as pessoas continuam a manter os poderes de sua consciência e podem continuar a se comunicar com Deus. Não quero dizer que a alma vai rezar a Deus pedindo isto ou aquilo, ou este ou aquele favor. Quando digo orar, quero dizer a energia que une as pessoas a Deus.

Com esse tipo de oração, os mortos podem se comunicar com toda a humanidade, da mesma forma que nos comunicamos e rezamos pelas almas dos mortos. É por isso que temos memoriais. É a forma que usamos para nos comunicarmos, pela graça do Espírito Santo, com aqueles que já partiram para a grande viagem.

A morte não nos separa!

Uma Trindade aparentemente heterodoxa, mas muito ortodoxa


Do blog Three Hierarchies

Se qualquer outra pessoa dissesse isso, alguém poderia pensar que era herético. Mas é o padre Thomas Hopko, e faz muito sentido a partir da linguagem bíblica, então achei que vale a pena considerar e ponderar, como uma alternativa ao nosso usual estilo latino "Deus o Pai", "Deus o Filho", "Deus o Espírito Santo" (As notas adicionadas são de minha autoria):

Estritamente falando, de acordo com a teologia ortodoxa - novamente como eu pessoalmente entendo e ensino -, Deus não deve ser concebido como "um Deus em três pessoas" ou como "três pessoas em uma substância divina", se isso for entendido como significando que o único Deus é expresso em três formas pessoais, de modo que é um e o mesmo Deus que é entendido como sendo o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estritamente - e eu diria, biblicamente, liturgicamente e credalmente - falando, o único, verdadeiro e vivo Deus não é Pai, Filho e Espírito Santo. Ele é o único Deus e Pai que tem em si eternamente e, pode-se dizer, como um "elemento" de seu próprio ser e natureza, seu Filho unigênito, também chamado de sua divina Palavra e Imagem, que - sendo outra  pessoa ou hipóstase do que quem Deus é - está encarnado como o homem Jesus, o Cristo de Israel e o Salvador do mundo. Este único Deus e Pai também tem dentro de si o seu único Espírito Santo, que procede somente dele e repousa eternamente em seu Filho e Palavra, ungindo-o em sua humanidade encarnada para ser o Rei messiânico, e por meio dele, habitando e deificando pessoalmente aqueles que pertencem a ele e a seu Pai.* A visão é tal que há três pessoas divinas distintas ou hipóstases que são confessadas, como no Credo Niceno, como sendo o "um só Deus, o Pai todo-poderoso" e o "um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, o unigênito... de uma só essência com o Pai" e "o Espírito Santo, o Senhor, o Doador da vida, que procede do Pai". É a este Deus que a Igreja Ortodoxa se dirige desta maneira na sua liturgia eucarística:

Pois Tu és Deus. . . Tu e Teu Filho unigênito e Teu Espírito Santo. . .

Por todas estas coisas damos graças a Ti, e ao Teu Filho unigênito, e ao Teu Espírito Santo. . .

Santo és Tu e Todo-Santo, Tu e Teu Filho unigênito e Teu Espírito Santo.

O divino "Tu" da adoração ortodoxa é o único Deus e Pai.** Seu Filho também é um "Tu", assim como seu Espírito Santo. E os três são divinos. Este é o ensinamento bíblico, resumido no Credo e celebrado na liturgia. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas ou hipóstases igualmente e identicamente divinas. Eles são de "uma essência" ou "natureza". Não há superioridade metafísica de nenhuma das pessoas sobre a outra, nem subordinação ontológica. No entanto, o único Deus e Pai é a fonte de seu Filho e Espírito. E o Filho e o Espírito não são apenas "do Pai" ontologicamente (por meio de "geração" e "processão"), mas são pessoalmente obedientes a ele em seu ser e atividade divinos. Eles fazem a sua vontade, realizam o seu trabalho, completam as suas ações, revelam a sua pessoa, comunicam a sua natureza, trazem-no para a criação e levam-lhe as criaturas. Isso não significa que eles sejam menos "divinos" (ou menos "Deus", para falar assim) do que o Pai. E isso certamente não os diminui ou degrada de maneira alguma. Pelo contrário. É para sua glória, honra e adoração eterna que eles são, desde toda a eternidade, o próprio Filho, Imagem e Palavra de Deus e seu próprio Espírito Santo.

De seu "Women and the Priesthood: Reflections on the Debate -- 1983" em Women and the Priesthood (SVS Press, 1999), pp. 238-240.

Agradeço também a Bill Tighe por disponibilizar isso para mim!

*Assim, a fórmula trinitária usual em Paulo é: Deus Pai, o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo, como em 2 Cor. 13:14. Despojado em seus elementos mais básicos, é Deus, Senhor e Espírito como em Efésios 4:4-6. Em 1 Pedro 1:2 temos Deus o Pai, o Espírito e Jesus Cristo.

**"E esta é a vida eterna, que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3). A propósito, este é um texto-prova favorito para os muçulmanos provarem que os próprios Evangelhos negam a divindade de Cristo. É bom saber que eles não teriam tração com o Pe. Hopko neste ponto.

Justificação pela fé




Seraphim Hamilton

Recentemente, um amigo me perguntou se eu conhecia algum bom recurso que contrastasse o protestantismo clássico com o entendimento ortodoxo tradicional da justificação. Como não consegui pensar em nada dedicado a esse propósito, estou escrevendo este artigo. Por causa da diversidade teológica no protestantismo, não posso pretender capturar toda a sutileza que pode estar presente em tradições particulares. Em vez disso, estou apresentando a doutrina como geralmente é articulada pelos evangélicos.

No evangelicalismo, a justificação somente pela fé é entendida como mais do que simplesmente “somente pela fé”. Isso é essencial, porque a diferença mais profunda entre a visão evangélica e a visão tradicional é o conteúdo da justificação, não apenas seu instrumento. Assim, a primeira pergunta que se deve fazer não é como alguém é justificado, mas o que a justificação realmente é. Para a maioria dos evangélicos, a justificação é entendida como um veredicto puramente forense pronunciado no momento da confiança somente em Cristo e baseado na dupla imputação de pecado e obediência. Nesta visão, as obras de Cristo durante Seu período na Terra são legalmente contadas como se pertencessem ao crente. Quando Deus julga a humanidade, então, Ele não julga o crente com base em seus próprios atos, mas com base nos atos que Cristo realizou durante Sua vida na Terra. Da mesma forma, os pecados da humanidade (ou dos eleitos, dependendo se é calvinista ou não) foram imputados a Cristo na cruz. Na cruz, Deus tratou Cristo como se Ele tivesse cometido todos os pecados cometidos na história da humanidade - passado, presente e futuro. Tendo declarado legalmente que Cristo era culpado, Deus desviou Seu rosto de Cristo e O executou. Para alguns evangélicos, a função da ressurreição é principalmente provar que Deus aceitou o sacrifício de Cristo. Nada disso deve ser interpretado como implicando que os cristãos não devem fazer boas obras. Em vez disso, no momento da justificação, o Espírito Santo regenera o coração do crente e garante que o cristão regenerado produzirá novas obras conforme a vontade de Deus. Isso se chama santificação. Em muitas articulações da doutrina, se um cristão não muda seu padrão de vida, ele nunca foi regenerado ou convertido e, portanto, nunca teve fé verdadeira. A busca pela fé “verdadeira” costuma ser um ponto de ansiedade entre os jovens evangélicos, porque eles observam que suas vidas muitas vezes não estão de acordo com os mandamentos de Cristo e passam a acreditar que nunca tiveram fé.

Para os ortodoxos, ao contrário, a justificação é entendida como fundamentada na transformação ontológica da pessoa humana pela união com Cristo. Para os cristãos ortodoxos, a pena do pecado é a morte. Isso foi tanto uma penalidade de Deus quanto a simples consequência natural da separação de Deus. A única fonte de vida é o Espírito Santo e, ao separar-se do Espírito Santo, a condição de Adão se transformou em desintegração. A intenção de Satanás era simplesmente erradicar a raça humana da existência. Para resolver este problema, o Filho Eterno, em cuja Imagem fomos feitos, assumiu uma natureza humana. Ao unir a natureza humana com Sua própria divindade, Ele a glorificou e possibilitou a verdadeira participação em Deus. Cristo livremente tomou a penalidade de nosso pecado - a morte. A morte de Cristo na Cruz é Sua condenação e, nesse sentido, podemos falar de expiação substitutiva. No entanto, porque Cristo é a própria vida, ao morrer, Ele encheu a morte de vida e a fez voltar, sendo ressuscitado dentre os mortos em um corpo glorificado e transfigurado. Porque Cristo participou da natureza humana, Ele comunicou Sua glória a ela, assegurando assim a ressurreição dos mortos. Para aqueles cuja vontade está em conformidade com a vontade de Deus, eles serão ressuscitados em completa unidade, dispostos de acordo com sua natureza ressurreta. Para aqueles cujas vontades se voltam contra Deus, eles serão ressuscitados na condenação, permanentemente separados de sua própria natureza ressurreta. Nas Escrituras, o cerne do conceito de “morte” é uma separação, e essa separação permanente é, portanto, mencionada como uma morte eterna.

Então, como uma pessoa é justificada? Em contraste com o evangelicalismo, que considera a fé o instrumento pelo qual as obras obedientes de Cristo são contadas como se fossem do crente, para os ortodoxos, é a própria fé que justifica pelo que a fé é. A fé é a qualidade única da relação de um pai com seu filho. O filho não é empregado do pai como se pudesse obrigar o pai a pagar-lhe um salário. Em vez disso, ele é amado por seu pai, e o pai dá presentes livremente a seu filho. Com fé, confiamos que Deus tem o nosso bem no coração e cumprirá Suas promessas para nós, dando-nos o Espírito Santo e elevando-nos em glória. Como diz Hebreus, a fé é o que justifica porque, para fazer agradar a Deus, é preciso “crer que ele existe e que recompensa os que o buscam”. Uma recompensa não é algo que um pai deve a seu filho - mas também não está desconectada do que o filho faz. Se Johnny limpasse seu quarto, era isso que ele deveria fazer de qualquer maneira. Mas seu pai pode levá-lo para jantar como recompensa. É um presente que é verdadeiramente um presente, mesmo quando ele o faz em resposta aos atos de seu filho. A fé, de fato, foi o que caracterizou a vida de Cristo, o Filho Eterno. Paulo fala da “fidelidade do Messias”. Cristo viveu como um Filho obediente do Pai. Ele se consagrou totalmente a Deus, uma consagração que foi consumada ao entregar sua própria vida a Deus na cruz. Através de tudo isso, Cristo confiou absolutamente que Deus traria vida da morte - assim como Abraão fez com seu próprio corpo envelhecido e com a oferta de seu filho prometido. Assim, a fé de Cristo alcançou seu objetivo designado com Sua autoconsagração a Deus. Foi a fé que deu origem ao dom de si mesmo de Cristo, mesmo sendo a fé distinta do dom de si. A recompensa de Deus a Cristo foi a ressurreição dos mortos e a herança do mundo. Os judeus e romanos declararam Cristo culpado na cruz, mas Deus declarou Cristo justo precisamente na transformação de Seu corpo e por meio dela. É por essa razão que São Paulo diz que Jesus foi “justificado pelo Espírito” em 2 Timóteo 3:16.

Portanto, somos declarados justos porque compartilhamos da vida de Cristo. Ele foi justificado por Sua ressurreição dentre os mortos, e nós somos justificados por nossa participação em Sua morte e ressurreição pelo Espírito Santo. É o Espírito Santo que nos capacita a fazer qualquer boa ação. Nossas vontades cooperam com a vontade de Deus e de Cristo por meio da animação do Espírito Santo, e é essa cooperação que leva à união com Cristo em Sua morte - e, portanto, Sua ressurreição e justificação. Portanto, não é muito correto dizer que somos justificados pela graça por meio da fé e das obras. Em vez disso, somos justificados pela graça por meio da fé por meio das obras. Assim, não distinguimos estritamente entre justificação e santificação, mas as entendemos como dois ângulos do mesmo processo, ou, como diz São Paulo em 1 Coríntios 6:11: “Fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados em nome de nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus”.

Simplificando: somos salvos em um relacionamento com Deus. Esse relacionamento é caracterizado pela fé da qual procedem as obras. Para fazer uma analogia, o que cria uma amizade? Se eu for à casa de um cara e cortar a grama dele todos os dias, mas nunca falar com ele, eu “trabalhei” para ele, mas nunca seremos amigos. As obras que facilitam uma amizade são obras que naturalmente conduzem e aprofundam a amizade. Eu falo com meu amigo, saio com meu amigo, amo meu amigo e confio em meu amigo. É o mesmo com Deus. Não trabalhamos para Ele como empregados e depois esperamos algum tipo de pagamento. Em vez disso, nossa confiança Nele deve produzir obras que aprofundem nosso relacionamento com Ele. E os pecados mortais? O que são eles? Pecados mortais são pecados que cortam nosso relacionamento com Deus. Compare a amizade. Se eu aborreço meu amigo falando demais, isso é um “pecado venial”. Não vai acabar com o relacionamento. Mas se eu dormir com a esposa do meu amigo, isso é um “pecado mortal”. Fundamentalmente rompe o relacionamento. Ao contrário dos homens, no entanto, Deus perdoa infinitamente e está sempre preparado para restaurar o relacionamento se nos arrependermos - porque arrependimento significa voltar atrás.

É aqui que entra o perdão. Cristo, morrendo, mas sendo ressuscitado, cortou fundamentalmente a conexão inevitável entre pecado e morte. O pecado leva à morte, sim, mas a morte pode ser seguida pela ressurreição. Como tal, Deus perdoa nossos pecados e continua a trabalhar conosco. Os pecados não levam inevitavelmente à desintegração e ao rompimento de nosso relacionamento com nosso Pai.

Qual é a relação precisa, então, entre fé e obras? Tiago se refere às obras como o “fruto” da fé, e isso é absolutamente verdade. Como diz São Paulo, “tudo o que não procede da fé é pecado”. O ponto crítico que devemos entender é que fé sem obras ainda é fé. Tiago diz que a fé e as obras são como o corpo e o espírito. O corpo sem o espírito ainda é um corpo, mas morto. Da mesma forma, a fé sem obras ainda é fé, mas é incapaz de alcançar seu objetivo. Enquanto muitos evangélicos, percebendo que sua fé não tem obras, tentam produzir um tipo diferente de fé, a resposta apropriada do cristão é usar a fé para produzir obras. O objetivo adequado e natural da fé são as obras, mas alcançar esse objetivo requer cooperação ativa.

Imagine que você teve que levantar um peso. O peso é a salvação. A fé é o músculo que levanta o peso, e o Espírito Santo é a energia calórica que energiza o músculo e lhe dá força. A salvação é quando, por meio da energia do Espírito, alguém exercita a fé para levantar o peso - e esse processo é chamado de boas obras.

Por isso, São Paulo diz que não é a circuncisão nem a incircuncisão que conta, mas “a fé que opera pelo amor” (Gálatas 5:6) e porque é a união com Cristo: “Eu vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. Assim, as obras são fruto da fé, mas não o fruto automático.

Espero que isso tenha sido útil para entender a doutrina ortodoxa da justificação (que eu acho que também se aplica amplamente à doutrina católica) e seus contrastes com a visão protestante evangélica comum.

Roger Olson sobre arminianismo e calvinismo



Trecho retirado de Teologia Arminiana: Mitos e Realidades, de Roger Olson.

Ainda que a exegese bíblica sozinha não possa provar o calvinismo [monergismo] e nem o arminianismo [sinergismo], a exegese biblicamente correta reforça cada sistema de teologia. A Escritura é o material que fornece o padrão (gestalt) que forma a perspectiva (blik) que controla a interpretação de passagens individuais. Isto explica porque as pessoas são calvinistas ou arminianas quando falta uma prova exegética clara e inequívoca para cada sistema. Ambos Os sistemas veem Deus como identificado por toda a Escritura (visão sintética) de certa maneira.

Outra questão que complica a escolha entre o calvinismo e o arminianismo é que ambos os sistemas contêm problemas muito difíceis, se não insuperáveis. Os dois se esforçam muito para explicar grandes porções da Escritura; os dois precisam admitir mistérios que beiram as contradições dentro de seus sistemas. Edwin Palmer expressou mais fortemente do que a maioria dos calvinistas um problema em seu sistema de crença. Deus, ele admitiu, preordena tudo e, portanto, preordena até mesmo o pecado e o mal, no entanto, os humanos unicamente são culpados por fazer aquilo que não podem evitar. "Ele [o calvinista] percebe que o que ele advoga é ridículo... O calvinista livremente admite que sua posição seja ilógica, ridícula, insensata e tola." E, todavia, como a maioria dos calvinistas, Palmer alegou que "esta questão secreta pertence ao Senhor nosso Deus e que devemos deixar as coisas como estão. Não devemos investigar o conselho secreto de Deus".

Muitos calvinistas sentir-se-iam constrangidos com a admissão de Palmer acerca do mistério incorporado à crença calvinista. Ela é um pouco extrema, principalmente para os calvinistas que se importam com a lógica. Mas quase todos os calvinistas concordam que há pontos, tais como este, onde o calvinismo se depara com o mistério e que não pode dar uma solução racionalmente satisfatória. Os arminianos circunspectos, similarmente, reconhecem as dificuldades de lógica e problemas dentro de seu próprio sistema de crença. Quem pode explicar como a livre agência é a habilidade de fazer diferentemente do que alguém, de fato, faz? O livre-arbítrio não é um problema no calvinismo, pois ou ele é negado ou é explicado de tal maneira que é exaurido de todo o seu mistério. Mas todos os arminianos clássicos acreditam em um livre-arbítrio libertário, que é uma escolha autodeterminante; ele é incompatível com a determinação de qualquer tipo. Isto parece equivaler a uma crença em um efeito sem causa - a livre escolha da pessoa de ser ou fazer algo sem antecedente. Buridan, um filósofo cínico medieval, debochou de tal livre-arbítrio, sugerindo que uma mula que o possuísse iria morrer de fome ainda que duas bacias cheias de comida fossem colocadas na frente dela, pois nada a inclinaria a comer de uma bacia ou da outra! Os arminianos não são persuadidos por tais argumentos, eles sabem que a mula faminta escolheria livremente comer de uma bacia ou de outra. Mas deixando os sofismas de lado, os arminianos sabem que sua crença na liberdade libertária é um mistério (não uma contradição).

A questão aqui é que ambos os lados (e talvez todos os sistemas teológicos importantes) envolvem mistério, e ao tornar seus sistemas teológicos perfeitamente inteligíveis, o mistério é um problema. Ironicamente, ambos os lados tendem a apontar a fraqueza do outro ao apelar para o mistério sem admitir seu próprio mistério. Cada lado aponta para o pequeno cisco no olho do outro ao passo que ignora o cisco do mesmo tamanho (trave?) no seu olho! Assim, parece que as pessoas não são calvinistas ou arminianas porque um lado conseguiu provar estar correto, mas porque estas pessoas acham um conjunto de mistérios (ou problemas) mais fácil de se viver do que com o outro. Claro, os partidários de ambos os grupos apontam para passagens bíblicas de suporte e experiências (tal como ser tomado por Deus à parte de uma consciência de escolha). Mas, no final, nenhum lado pode completamente derrotar o outro ou conclusivamente provar seu próprio sistema. O filósofo Jerry Walls magistralmente enfatiza isso:
Notem que tanto os calvinistas quanto os teólogos do livre-arbítrio [Arminianos] chegam, por fim, a um ponto onde explicações adicionais são impossíveis. Ambos chegam ao limite da escolha inexplicável. O teólogo do livre-arbítrio não pode explicar plenamente porque alguns escolhem Cristo ao passo que outros não. O calvinista não consegue nos dizer por que ou sobre qual base Deus escolhe alguns para a salvação e ignora outros.
Ambos, então, enfrentam dificuldades insuperáveis ao explicar certas características de seus sistemas e devem admitir isso. Contudo, os dois sistemas permanecem dentro da cristandade protestante com igual sinceridade em relação à Escritura, igual bravura exegética, igual apelo histórico e igual comprometimento à ortodoxia cristã fundamental.

Então, qual é a solução? Por que ser um calvinista ou um arminiano? No fundo alguns cristãos são calvinistas porque quando leem a Bíblia (e talvez examinem sua própria experiência) eles veem Deus como todo-poderoso, supremamente glorioso, absolutamente soberano e como a realidade totalmente determinante. Isto é o "blik” deles, a visão sintética que guia a hermenêutica de passagens individuais. O grande teólogo puritano Jonathan Edwards era obcecado com esta visão de Deus, e ela guiava toda a sua teologia. Outros cristãos são arminianos porque quando leem a Bíblia (e talvez examinem sua própria experiência) eles veem Deus como supremamente bom, amável, misericordioso, compassível e o Pai benevolente de toda a criação, que deseja o melhor para todos. Esta visão de Deus guiou a teologia do grande avivalista João Wesley, que foi contemporâneo de Edwards. Claro, ambos os lados reconhecem algumas verdades na perspectiva do outro; os calvinistas reconhecem Deus como amável e misericordioso (principalmente em relação aos eleitos), e os arminianos reconhecem Deus como todo-poderoso e soberano. Ambos acreditam que Deus é supremamente grande e bom. Mas um lado começa com a grandeza de Deus e condiciona a bondade de Deus à luz da grandeza; o outro lado começa com a bondade de Deus e condiciona a grandeza de Deus à luz da bondade. Cada lado tem o seu "blik", que determina largamente como interpretam a Escritura. O teólogo arminiano Fritz Guy expressa o "blik" determinante arminiano sem rodeios: "No caráter de Deus o amor é mais fundamental que o controle". Esta perspectiva básica acerca de Deus é ecoada em toda a literatura arminiana. Ao escrever sobre a crença calvinista na reprovação incondicional (que Deus ignora alguns e escolhe outros para a salvação incondicionalmente), João Wesley foi extremamente honesto: "O que quer que a Escritura prove, ela jamais pode provar isso". Perceba que Wesley não disse isso por estar encantado por alguma norma extrabíblica que tem mais importância que a própria Bíblia. Antes, ele era guiado por uma visão imposta pela própria Escritura que impossibilita certas interpretações do texto.

A distinção entre adoração e veneração no 7º Concílio ecumênico


Trecho da Carta do Concílio de Nicéia II (787) ao Imperador Romano:

[Nós decretamos] que essas imagens devem ser reverenciadas [προσκυνεῖν, proskynein], isto é, reverências devem ser oferecidas a elas. A razão para usar a palavra é que ela tem um significado duplo. Pois κυνεῖν na antiga língua grega significa saudar e beijar. E a preposição προς dá a ela a ideia adicional de forte desejo pelo sujeito; como por exemplo, temos φέρω e προσφέρω [oferecer], κυρῶ e προσκυρῶ [submeter], e também temos κυνέω e προσκυνέω [venerar, cultuar, curvar-se diante, reverenciar, etc]. Esta última palavra implica reverência e forte afeto; porque aquele que ama, ele também reverencia (προσκυνεῖ) e o que ele reverencia também muito ama, como testemunha o costume cotidiano, que observamos para com aqueles que amamos, e no qual ambas as idéias são praticamente ilustradas quando dois amigos se encontram. A palavra não é apenas usada por nós, mas também a encontramos registrada nas Escrituras Divinas pelos antigos. Pois está escrito nas histórias dos reis: 'E Davi se levantou e se prostrou sobre seu rosto e fez reverência a (προσεκυνήσε, proskunese) Jônatas três vezes e o beijou' [1 Samuel 20:41].

(...)

Temos também o exemplo do divino apóstolo Paulo, conforme relata Lucas nos Atos dos Apóstolos: 'Quando chegamos a Jerusalém, os irmãos nos receberam com alegria e, no dia seguinte, Paulo foi conosco a Tiago e a todos os presbíteros estavam presentes. E quando ele os saudou (ἀσπασάμενος, aspasamenos), ele declarou particularmente o que Deus havia feito entre os gentios por seu ministério' [Atos 21:17-19]. Pela saudação aqui mencionada, o apóstolo evidentemente pretendia prestar aquela reverência de honra (τιμητικὴν προσκύνησιν, timetiken proskunesin) que mostramos um ao outro, e da qual ele fala quando diz a respeito de Jacó, que ele 'reverenciava (προσεκύνησεν, prosekunesen) o topo de seu cajado' [Hebreus 11:21, Gênesis 47:31]. Com esses exemplos concorda o que Gregório, chamado o Teólogo, diz: 'Honre Belém e reverencie (προσκυνήσον, proskuneson) a manjedoura'.

Agora, quem daqueles que entendem corretamente e sinceramente as Escrituras Divinas, alguma vez supôs que esses exemplos que citamos falam da adoração em espírito (τῆς ἐν πνεύματι λατρείας, tē̃s en pneúmati latreías)? [Certamente ninguém jamais pensou assim] exceto talvez algumas pessoas totalmente desprovidas de sentido e ignorantes de todo o conhecimento das Escrituras e do ensino dos Padres. Certamente Jacó não adorou (ἐλατρείσεν, elatreísen) o topo de seu cajado e certamente Gregório o Teólogo não nos convida a adorar (λατρεύειν, latreúein) a manjedoura. De jeito nenhum.

Novamente, ao oferecer saudações à Cruz vivificante, cantamos juntos: 'Nós reverenciamos (προσκινῶμεν, proskinō̃men) Tua cruz, ó Senhor, e também reverenciamos (προσκινῶμεν) a lança que abriu o lado vivificante de Tua bondade'. Isso é claramente apenas uma saudação, e é assim chamado, e seu caráter é evidenciado por tocarmos as coisas mencionadas com nossos lábios. Concedemos que a palavra προσκύνησις (proskúnēsis) é freqüentemente encontrada nas Divinas Escrituras e nos escritos de nossos eruditos e santos Padres para a adoração em espírito (ἐπὶ της ἐν πνεύματι λατρείας, epì tēs en pneúmati latreías), pois, sendo uma palavra de muitos significados, pode ser usada para expressar esse tipo de reverência que é serviço [de adoração]. Como também existe a veneração da honra, do amor e do medo. É neste sentido que veneramos a vossa gloriosa e nobre majestade [do Imperador]. Assim também há outra veneração que vem apenas do medo, assim Jacó venerou Esaú [Gênesis 33:3]. Depois, há a veneração da gratidão, como Abraão reverenciava os filhos de Hete [Gênesis 23:7, 'Abraão levantou-se e se inclinou diante (prosekúnēsen) do povo daquela terra'], pelo campo que recebeu deles como local de sepultura para Sara, sua esposa. E, finalmente, aqueles que procuram obter algum dom, veneram aqueles que estão acima deles, como Jacó venerou o Faraó. Portanto, porque este termo tem tantos significados, as Divinas Escrituras nos ensinam: 'ao Senhor teu Deus adorarás (προσκυνήσεις, proskunḗseis), e somente a Ele servirás (λατρεύσεις, latreúseis)' [Lucas 4:8], dizendo simplesmente que a proskúnēsin deve ser dada a Deus, mas não acrescenta a palavra 'somente' [a Deus], pois proskúnēsin, sendo uma palavra de amplo significado, é um termo ambíguo; mas continua dizendo que se deve servir [propriamente adorar] apenas a Ele, pois somente a Deus prestamos latria