Jerônimo sobre o primado papal

Laurent Cleenewerck


S. Jerônimo é universalmente reconhecido como um grande mestre e um homem de santidade radical, sempre lembrado por sua tradução da Vulgata Latina. Embora Jerônimo sempre tenha se considerado um membro fiel da Igreja de Roma, ele deixou a capital com suas distrações e viajou à Palestina para tornar-se monge e estudar hebraico. Lá, encontrou as Igrejas orientais em estado de enorme caos e divisão. Em suas próprias palavras ao papa Dâmaso:
Uma vez que o Oriente, sacudido como está por rixas de longa data subsistindo entre seus povos, está parte por parte rasgando a veste perfeita de Cristo tecida de alto a baixo; já que as raposas estão a destruir a vinha do Senhor; e uma vez que entre as cisternas rotas, que não retém água, é difícil descobrir a fonte selada e o jardim fechado; penso que é meu dever consultar a cátedra de Pedro, e voltar-me para a Igreja cuja fé foi louvada por Paulo.
Em nosso estudo histórico observamos os efeitos catastróficos da controvérsia ariana no Oriente. O contraste entre a estabilidade de Roma e a confusão que envolvia as Igrejas orientais era evidente: com exceção da possível falha do papa Libério, Roma permaneceu forte em defesa da fé ortodoxa. Diante de bispos concorrentes em Antioquia e outros lugares, Jerônimo percebia que a segurança de estar na Igreja devia ser encontrada em sua Igreja de Roma, a qual ele chama de "cátedra de Pedro" em um sentido especial:
Apelo por alimento espiritual na Igreja que me concedeu a vestimenta de Cristo [...] O solo frutífero de Roma, quando recebe a pura semente do Senhor, dá frutos cem por um [...]. Minhas palavras são dirigidas ao sucessor do pescador, ao discípulo da cruz. Assim como não sigo nenhum líder além de Cristo, também não estou em comunhão com ninguém senão Vossa Santidade, isto é, com a cátedra de Pedro. Pois essa é, eu sei, a pedra sobre a qual a Igreja é construída! Essa é a casa onde unicamente o Cordeiro Pascal pode ser legitimamente consumido, é a arca de Noé [...]. Nada sei de Vitalis; eu rejeito Melécio; não tenho nada a ver com Paulino. Aquele que não ajunta, espalha; aquele que não é de Cristo, é do Anticristo (Epístola a Dâmaso, 15).
Se Jerônimo sabia que a expressão "cátedra de Pedro" era legítima para todos os bispos, ele também sabia que era impossível saber quem ocupava a cátedra de Pedro em Antioquia ("Eu rejeito Melécio; não tenho nada a ver com Paulino"). No entanto, não havia essa dúvida com o bispo de Roma: ele estava certamente sentando na cátedra de Pedro de modo esplêndido e seguro.

Embora Jerônimo não tenha dito nada a respeito da jurisdição papal, ele claramente sabia para onde voltar-se quando as outras Igrejas estavam devoradas por cisma e confusão. Jerônimo considerou Dâmaso o sucessor de S. Pedro em um sentido único, o pilar da verdadeira comunhão e ortodoxia. Assim, ele implorou a ele como seu bispo: "diga-me com quem devo comunicar na Síria".

Jerônimo recebeu de Roma a informação de que Paulino era o bispo de Antioquia defendido por Dâmaso e em comunhão com ele, e foi até mesmo ordenado por ele ao presbiterado. Ele eventualmente retornou a Roma e serviu como secretário do papa Dâmaso, apenas para desapontar-se ao não sucedê-lo no pontificado. Ele retirou-se de Roma e foi para Belém trabalhar no que se tornaria a Vulgata Latina.

Olhando para o resto de sua vida e de seus escritos não há muito que se possa achar em favor da visão do Vaticano I do papado, exceto sua afirmativa factual de que "nenhuma heresia jamais teve origem lá [em Roma]" (Giles, p 159). Na verdade, as visões de Jerônimo tornaram-se pouco simpáticas a Roma de muitas maneiras.

A teoria de Jerônimo sobre o episcopado é que este surgiu por escolha eclesiástica, não por ordem divina. Assim, presbíteros eram pensados como inferiores aos bispos apenas funcionalmente, mas não de acordo com uma ordem divina. Jerônimo aplicou essa lógica aos bispos também:
Não devemos crer que a cidade de Roma seja uma igreja diferente do resto do mundo. Gália, Britânia, África, Pérsia, o Oriente, Índia, todas as nações bárbaras, adoram Jesus Cristo, e observam uma e mesma regra da verdade. Se alguém está buscando autoridade, o mundo é maior que uma cidade. Onde quer que haja um bispo, esteja ele em Roma ou em Eugubium, em Constantinopla ou em Régio, em Alexandria ou em Tanis, ele tem a mesma autoridade, o mesmo mérito, porque ele tem o mesmo sacerdócio (Epístola 146).
Em seus últimos dias, Jerônimo não parece ter concordado com qualquer tipo de jurisdição universal para o bispo de Roma. Ele louvou Polícrates por sua oposição a Victor de Roma (Giles, p. 157. "Eu [Jerônimo] cito este para mostrar um pequeno exemplo de gênio e autoridade desse homem") e lembrou seus leitores que o papa Libério havia concordado com "a doutrina herética e falsa" (Giles, p 151). Em certo sentido, ele sempre permaneceu um filho fiel da Igreja de Roma, e no entanto, sua teologia e eclesiologia o colocam - como muitos outros Padres - em uma categoria própria.