Bossuet sobre a doutrina luterana da justificação

 

8. A fé especial de Lutero, e a certeza da justificação. Mas o mistério dessa fé justificadora tinha algo de muito singular. Não consistia em crer em geral no Salvador, seus mistérios e suas promessas; mas em crer com total segurança, cada um em seu coração, que todos os nossos pecados estão perdoados. "Somos justificados", disse Lutero sem cessar, "desde o momento em que cremos com certeza que assim somos". A certeza que ele requeria não era apenas certeza moral, a qual, fundada em motivos razoáveis, exclui perturbação e angústia; mas uma certeza absoluta e infalível, pela qual o pecador deve crer-se justificado com a mesma fé com que crê que Cristo veio ao mundo.

Sem essa certeza não haveria justificação para os fiéis; pois eles não poderiam clamar a Deus nem confiar nele somente, enquanto tivessem a menor dúvida, não meramente da Bondade Divina em geral, mas da bondade particular pela qual Deus imputa a cada um de nós a justiça de Jesus Cristo; e isso ele chamou de fé especial.

9. De acordo com Lutero, o homem é assegurado de sua justificação, sem estar assegurado de seu arrependimento. Aqui uma nova dificuldade surgiu, se, para estar assegurado de sua justificação, seria necessário, ao mesmo tempo, que o homem esteja satisfeito com a sinceridade de seu arrependimento. Isso imediatamento ocorreu a todos; uma vez que Deus prometeu justificar apenas o arrependido, se estamos certos de nossa justificação, parece necessário que estejamos também da sinceridade de nosso arrependimento. Mas Lutero rejeitou essa última certeza; longe de estar certo de seu arrependimento, o homem "não pode sequer estar certo", disse ele, "de não estar cometendo muitos pecados mortais em suas melhores ações, em razão do vício oculto da vanglória ou amor próprio" (Luther, T. i. Prop. 1518. Prop. 48).

Lutero foi ainda além; pois ele havia inventado essa distinção entre as obras de Deus e as do homem, de modo "que as obras do homem, por mais belas em aparência, podem parecer boas, mas são graves pecados; por outro lado, as obras de Deus, por mais deformadas em aparência, podem parecer más, porém são dotados de mérito eterno" (Prop. Heidls. 1518. Prop. 3, 4, 7, 11.). Enganado por essa antítese e por seu jogo de palavras, Lutero imaginou que tinha descoberto a verdadeira diferença entre as obras do homem e as de Deus; não refletindo que as obras boas dos homens são também obras de Deus, o qual, por sua graça, as produz em nós, o que, segundo o próprio Lutero, deveria conferi-las um mérito eterno; mas isso era o que ele tinha resolvido evitar - ao contrário, concluindo "que todas as obras do justo seriam pecados mortais se ele não estivesse temeroso de assim serem; nem seria possível evitar a presunção, ou ter uma verdadeira esperança, se, em toda ação realizada, eles não temessem a condenação" (Ibid.).

O arrependimento, sem dúvida, é incompatível com pecados mortais; pois estar realmente arrependido de alguns pecados, mas não de todos, ou lamentar os pecados enquanto os comete, é impossível. Se, portanto, em todas as nossas ações, nunca estamos certos de não cair em pecados graves - se, ao contrário, devemos temer constantemente cair em tais pecados, consequentemente nunca podemos estar certos de nosso arrependimento; e se pudéssemos estar certos disso, não precisaríamos, como Lutero prescreve, temer a condenação, a menos que cressemos que Deus, contrário à sua promessa, poderia condenar ao inferno o coração contrito. Se, por causa de sua falta de disposição, da qual ele não está certo, o pecador duvide de sua justificação, Lutero confirmava que ele não estaria seguro de sua boa disposição, nem poderia ele saber, por exemplo, se está realmente contrito, verdadeiramente arrependido e afligido por seus pecados; entretanto, ele não estaria menos assegurado de sua completa justificação, porque isso não dependeria de nenhuma boa disposição de sua parte. Nesse assunto o novo Doutor declara ao pecador: "Creia firmemente que tu estás absolvido, e assim tu estarás, qualquer que seja sua contrição" (Serm. de Indulg. v. i. p. 52). Isso equivale a dizer, quer esteja arrependido ou não, tu não precisas preocupar-te. Tudo consiste, disse ele continuamente, "em crer, sem hesitação, que tu estás absolvido", daí ele concluiu que, se o padre batizou ou absolveu por brincadeira, é matéria sem consequência (Prop. 1518. Ibid. Serm. De Indulg.); porque nos sacramentos só uma coisa era de se temer, qual seja, não crer com força suficiente que todos os teus crimes foram-te perdoados, uma vez que chegaste a crer assim.

10. A inconsistência dessa doutrina. Os católicos perceberam que essa doutrina opera sob uma grave dificuldade, porque o crente, sendo obrigado à certeza de sua própria justificação, mas não de seu arrependimento, consequentemente teria de crer que é possível estar justificado diante de Deus, ainda que sem arrependimento, o que abriria as portas à impenitência.

Verdade seja dita, entretanto (pois nada deve ser escondido), que Lutero não excluía da justificação um sincero arrependimento, ou seja, horror pelo pecado, e a vontade de fazer o bem, em resumo, a conversão do coração, e julgava absurda, assim como nós, a ideia de ser justificado sem contrição ou arrependimento. Entre ele e os católicos, nesse ponto, parecia não haver diferença, a menos que os católicos chamassem esses atos de disposições do pecador para a justificação, pois Lutero considerava mais correto chamá-los de condições necessárias. Mas essa distinção sutil, no fundo, não removia a dificuldade: pois esses atos são essenciais para a remissão do pecado, sejam chamados como quiser, seja condição, ou disposição, ou preparação necessária; a questão ainda permanece. Como Lutero pode dizer que o pecador deve crer com certeza que está absolvido, seja sua contrição como for, isto é, seja seu arrependimento como for; como se estar arrependido, ou não, fosse coisa indiferente à remissão dos pecados. (...)

15. A contradição da doutrina de Lutero. (...) Os católicos observaram também que as respostas dadas nessa matéria eram manifestamente contraditórias. Lutero havia adotado a seguinte proposição: "Nenhum homem pode responder ao sacerdote que está contrito, isto é, arrependido" (Assert. art. Damnat. ad. art. 14. T. ii.). Como a proposição parece muito estranha, ele cita essas passagens para apoiá-la: "Em nada me sinto culpado; mas nem por isso me considero justificado" (1 Cor IV, 4). Davi diz: "Quem pode entender os seus erros?" (Sl XVIII, 12). São Paulo diz, "Não é aprovado quem a si mesmo se louva, mas, sim, aquele a quem o Senhor louva" (2 Cor X, 18). Desses textos Lutero conclui que nenhum pecador está qualificado para responder ao sacerdote, "Eu estou verdadeiramente arrependido", e entendendo isso rigorosamente, como uma certeza absoluta, ele estava certo. De acordo com ele, portanto, o homem não está absolutamente assegurado de seu arrependimento. De acordo com ele, por outro lado, ele está absolutamente assegurado de que seus pecados foram perdoados; ele estava absolutamente certo, portanto, de que o perdão é independente do arrependimento. Os católicos esforçaram-se em vão para entender essas novidades: eis aqui um prodígio, dizem eles, em doutrina e moral, nem pode a Igreja suportar esse escândalo.