Gregory Dix sobre o "fazer em memória" eucarístico

O sentido do "fazer em memória"

Nas Escrituras, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, anamnesis e seu verbo cognato possuem o sentido de 'chamar novamente' ou 'representar' diante de Deus um evento do passado, de modo que se torne aqui e agora operativo por seus efeitos. Assim, o sacrifício de uma esposa acusada de adultério (Num. 5:15) é "uma oblação" feita "em recordação de seu pecado [diante de Deus]" (anamimnes-kousa); isto é, se ela cometeu pecado no passado, este será revelado agora pela provação, pois seu pecado foi ativamente "recordado" ou "representado" diante de Deus por seu sacrifício. Do mesmo modo, a viúva de Sarepta (1 Reis 17:18) reclama que Elias veio trazer "recordação (anamnesai) de seus pecados" e como resultado seu filho morreu. Também em Heb. 10:3-4, o autor diz que, porque "é impossível que o sangue de touros e bodes retire o pecado" (aos olhos de Deus), os sacrifícios do Antigo Testamento não eram melhores que uma "recordação (anamnesis) dos pecados" dos oferentes perante Deus. Embora nessa passagem exista alguma indicação de que a anamnesis também traz parcialmente uma referência psicológica à consciência dos próprios israelitas, é claro pela passagem como um todo que é diante de Deus que os pecados são "recordados" e "não purificados" ou "retirados". É nesse sentido ativo, portanto, de "recordação" ou "representação" diante de Deus do sacrifício de Cristo, assim tornando-o aqui e agora operativo por seus efeitos nos comunicantes, que a Eucaristia é considerada tanto pelo Novo Testamento quanto pelos autores do segundo século como a anamnesis da paixão, ou da paixão e da ressurreição combinadas. É por essa razão que Justino, Hipólito e autores posteriores falam diretamente e vividamente da Eucaristia no presente conferindo aos comunicantes os efeitos da redenção - imortalidade, vida eterna, perdão dos pecados, libertação do poder do demônio, etc. - os quais nós usualmente atribuímos mais diretamente ao sacrifício de Cristo visto como um único evento histórico no passado. Basta examinar essa linguagem pouco familiar mais de perto para reconhecermos como eles identificavam completamente o oferecimento da Eucaristia pela Igreja com o oferecimento de Si mesmo por nosso Senhor, não por modo de repetição, mas como uma "representação" (anamnesisdo mesmo oferecimento pela Igreja 'que é Seu corpo'. Como São Cipriano expõe de forma decisiva no século terceiro: a paixão é o sacrifício do Senhor, que nós oferecemos (Ep. 63:17).

A evidência nos Pais da Igreja

No ocidente, já vislumbramos a evidência romana em Clemente, Justino e Hipólito, e a testemunha seguinte é Irineu na Gália, com sua educação oriental e associações romanas. Ele falou de nosso Senhor como
instruindo Seus discípulos a oferecer a Deus as primícias de Sua própria criação, não como se Ele necessitasse delas, mas para que eles não ficassem ociosos nem ingratos; Ele tomou o pão que vem da criação (material) e deu graças, dizendo, Isto é o Meu Corpo. E o cálice semelhantemente, que é tirado das coisas criadas, como nós mesmos, Ele reconheceu como Seu próprio Sangue, e ensinou a nova oblação do Novo Testamento. A qual a Igreja, aprendendo por tradição dos apóstolos, ao redor do mundo oferece a Deus, a Ele mesmo que nos provê com nossos alimentos, as primícias de Seus próprios dons na Nova Aliança... Devemos fazer a oblação a Deus e ser encontrados agradáveis a Deus nosso criador em todas as coisas, com crença correta e fé pura, esperança firme e uma caridade ardente, oferecendo as primícias daquelas coisas que são Suas criaturas... Nós oferecemos a Ele o que é Dele, assim apropriadamente proclamando a comunhão e unidade da carne e do espírito. Pois como o pão (que vem) da terra, recebendo a invocação de Deus, não é mais pão comum mas a eucaristia - consistindo de duas realidades, uma terrena e outra celestial; assim também nossos corpos recebendo a eucaristia não são mais corruptíveis, tendo a esperança da ressurreição eterna... Ele quer que ofereçamos nosso dom no altar frequentemente e sem interrupção. Há, portanto, um altar no céu, pois para lá nossas orações e oblações são direcionadas.
Sem dúvida, Irineu considera a eucaristia como uma 'oblação' oferecida a Deus, mas é bom notar o sentido particular que ele enfatiza seu caráter sacrificial. Primariamente, a eucaristia é para ele um sacrifício de 'primícias', reconhecendo a bondade do Criador em nos prover nosso sustento, em vez de uma 'representação' do sacrifício do Calvário à maneira paulina. É verdade que Irineu não hesita em dizer que 'o cálice misturado e o pão fabricado recebem a Palavra de Deus e tornam-se a eucaristia do Corpo e do Sangue de Cristo', e outros ensinos similares. Há, também, a adição significativa das palavras 'na Nova Aliança' às 'primícias de Seus próprios dons'. Irineu é claro, também, que a morte de Cristo foi um sacrifício, do qual o sacrifício abortivo de Isaque por seu próprio pai foi uma prefiguração. Mas quando tudo é dito e feito, ele nunca une claramente essas duas ideias ou chama a eucaristia de oferecimento ou 'representação' do sacrifício de Cristo.

É concebível que os erros particulares das seitas gnósticas, os quais Irineu combatia (que ensinavam que as coisas da criação material eram radicalmente más), tem algo a ver com sua ênfase no oferecimento eucarístico das 'primícias da criação'.

(...)

Mas para Cipriano, toda a questão de como a eucaristia constitui um sacrifício está clara e completamente definida como estaria para um teólogo pós-tridentino:
'Uma vez que fazemos menção de Sua paixão em todos os nossos sacrifícios, pois a paixão é o sacrifício do Senhor que nós oferecemos, nada devemos fazer senão o que Ele fez (na última ceia)' [Ep. LXIII].
Não há qualquer razão para pensarmos que Cipriano foi o inventor desse modo de definir o sacrifício eucarístico, ou de qualquer modo intencional seu partidário. Mas ele provou ser seu maior propagador. Cipriano é o mais atrativo dos autores pré-Nicenos e, dentre os ocidentais, sempre o mais lido em tempos posteriores. Sua explicação do sacrifício tinha uma simplicidade que a recomendou à devoção popular, e esse tipo de unidade e lógica direta que sempre apelou aos teólogos ocidentais. Não é surpreedente que a doutrina do sacrifício - que podemos chamar por conveniência de 'cipriânica' - prevaleceu no ocidente, quase ao ponto da exclusão daquela linha de pensamento que era proeminente em Irineu. O ensino de Cirilo de Jerusalém posteriormente levou a um desenvolvimento similar, na linha 'cipriânica', no ensinamento oriental sobre o sacrifício eucarístico (embora os orientais dificilmente tenham alcançado a mesma precisão em seu entendimento da matéria como os ocidentais posteriores).

(...)

Há uma testemunha mais antiga que Irineu ou Cipriano para o equilíbrio original da doutrina eucarística ocidental - Justino. Ele fala da eucaristia como o 'sacrifício puro' dos cristãos, 'assim como para recordação (diante de Deus, anamnesis) de seu sustento em comida e bebida, na qual é feito também o memorial (memnetai) da paixão que o Filho de Deus sofreu por ele' [Dial. 117]. Irineu e Cipriano desenvolvem cada um metade dessa interpretação da eucaristia, não em oposição, mas em isolamento um do outro. Mas é interessante notar que a mais antiga oração eucarística ocidental, a de Hipólito - um admitido seguidor de Irineu -, já torna a doutrina 'cipriânica' o aspecto mais proeminente da matéria, uma geração antes de Cipriano escrever.

Gregory Dix, The Shape of the Liturgy

Apêndice: algumas citações dos Pais da Igreja sobre o sacrifício eucarístico

Didaquê

Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro. Aquele que está de briga com seu companheiro não poderá juntar-se a vocês antes de se ter reconciliado, para que o sacrifício que vocês oferecem não seja profanado. Este é o sacrifício do qual o Senhor disse: 'Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro, porque eu sou um grande rei, diz o Senhor, e o meu Nome é admirável entre as nações' (Didaquê, 9-10, 14)

Clemente de Roma (35-100)

Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa (Epístola aos Coríntios, 42 e 44).

Inácio de Antioquia (35-107)

Preocupai-vos em participar de uma só eucaristia. De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na unidade do seu sangueum único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de serviço. Desse modo, o que fizerdes, fazei-o segundo Deus (Epístola aos filadelfienses, 3).

Flávio Justino (100-165) 

Eu dizia, senhores, que também a oblação de flor de farinha que, conforme a tradição [Lv. 14:10], é oferecida pelos que são purificados da lepra, era figura do pão da ação de graças em relação ao qual Jesus Cristo Nosso Senhor mandou fazer em memória da paixão que ele sofreu pelos que são purificados nas almas de toda maldade dos homens, para que rendêssemos graças a Deus por ter criado o universo com todas as coisas que nele existem através do homem e, ao mesmo tempo, por nos ter libertado do mal em que nascemos, e ter destruído fatalmente os principados e as potestades, através daquele que, segundo sua vontade, nasceu passível (...).

Já então ele [Malaquias] profetiza sobre os sacrifícios a ele oferecidos em todo lugar por nós gentios, isto é, do pão da ação de graças como também do cálice da ação de graças, dizendo que nós glorificaremos o seu nome, vós, porém o profanais.

(...) Pois bem, é manifesto que também nesta profecia [de Isaías] sobre o pão se trata do pão em relação ao qual o nosso Cristo nos mandou fazer em memória de se ter feito homem pelos que crêem nele, pelos quais também se tornou passível, e se trata também do cálice em relação ao qual mandou fazer com ação de graças em memória do seu sangue... [Nós] somos a verdadeira raça sacerdotal de Deus, como atesta o próprio Deus, dizendo haver em todo lugar entre os gentios quem lhe oferecesse sacrifícios agradáveis e puros. Ora, Deus não aceita sacrifícios de ninguém, a não ser através dos seus sacerdotes.

Portanto, já de antemão Deus atesta que através deste nome lhe são fundamentalmente agradáveis todos os sacrifícios que Jesus Cristo mandou que se fizessem, a saber, na ação de graças do pão e do cálice, realizados em todos os lugares da terra pelos cristãos; ao passo que repele os sacrifícios feitos por vós, os realizados por aqueles vossos sacerdotes, dizendo: 'E vossos sacrifícios não os receberei das vossas mãos; pois do levantar ao pôr-do-sol meu nome é glorificado', diz ele, 'entre os gentios, ao passo que vós o profanais' [Ml 1:11-12]. E até agora, procurando rivalidades, dizeis que Deus não aceita os sacrifícios oferecidos em Jerusalém pelos chamados israelitas que então aí habitavam, mas por outro lado dizeis que ele teria dito que as orações feitas pelos homens daquela linhagem que se encontravam na dispersão chegavam até ele e que ele chama de sacrifícios as suas orações. Ora, que as orações e as ações de graças feitas pelos justos são os únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus também eu o afirmo. Pois somente estes também os cristãos os receberam para fazer, e isto, em comemoração do seu alimento seco e líquido, no qual eles recordam a paixão que por eles sofreu o Filho de Deus (Diálogo com o judeu Trifão, 41-117).

Hipólito de Roma (170-236)

'A sabedoria já edificou a sua casa, já lavrou as suas sete colunas. Já abateu os seus animais e misturou o seu vinho, e já preparou a sua mesa' [Prov. 9:1-2], o que denota o prometido conhecimento da Santa Trindade; também refere-se ao Seu honrado e imaculado corpo e sangue, os quais são administrados e oferecidos sacrificialmente na mesa espiritual divina, como memorial da primeira e memorável mesa da Ceia espiritual divina. E novamente: 'Já ordenou às suas criadas' [Prov. 9:3], a sabedoria - isto é, Cristo - tem feito isso por um anúncio sublime. 'Quem é simples, volte-se para cá' [Prov. 9:4], diz a sabedoria, aludindo manifestamente aos santos apóstolos, que viajaram o mundo todo, e chamaram as nações ao conhecimento Dele em verdade, com sua pregação sublime e divina. E novamente: 'Aos faltos de senso diz' - isto é, àqueles que ainda não receberam o poder do Espírito Santo - 'Vinde, comei do meu pão, e bebei do vinho que tenho misturado' [Prov. 9:5], o que significar dizer que Ele deu Sua carne divina e seu sangue honrado para nós, para comermos e bebermos para a remissão dos pecados (Fragmentos sobre os Provérbios).

Por isso, nós que nos lembramos de sua morte e Ressurreição, oferecendo-te o pão e o cálice, dando-te graças porque nos consideraste dignos de estar diante de ti e de servir-te. E te pedimos que envies o teu Espírito Santo à Oblação da santa Igreja... (Tradição Apostólica).

Cirilo de Jerusalém (313-387)

Depois de terminado o sacrifício espiritual, rito incruento, pedimos a Deus, sobre esta hóstia de propiciação, pela paz universal da Igreja, pela justa ordem do mundo, pelos imperadores, pelos nossos soldados e pelos aliados, pelos doentes, pelos aflitos, e todos nós rogamos por todos, em geral, quantos precisam de ajuda; oferecemos esta vítima... e depois recomendamos também os santos padres e bispos, e em conjunto todos os nossos defuntos, convencidos como estamos que esta será a maior ajuda para as almas, por quem se oferece a oração, enquanto está presente a Vítima santa que infunde o maior respeito...

Do mesmo modo também nós, oferecendo orações a Deus pelos defuntos, mesmo pecadores, não lhe tecemos uma coroa, mas oferecemos-lhe Cristo imolado pelos nossos pecados, procurando conciliar a clemência de Deus em nosso favor e em favor deles (Catequeses Mistagógicas).

Ambrósio de Milão (340-397)

Queres saber mediante quais palavras celestes se consagra? Escuta quais são as palavras. O sacerdote diz: 'Faze para nós com que esta oferta seja aprovada, espiritual, aceitável, porque é a figura do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. O qual, antes de sua paixão, tomou o pão em suas santas mãos, olhou para o céu, para ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, deu graças, o abençoou, o partiu, e partindo o deu a seus apóstolos e discípulos, dizendo: Tomai e comei disso todos, porque isto é o meu corpo que será partido para muitos'.


[...] O sacerdote também diz: "Celebrando, pois, a memória de sua gloriosíssima paixão, da ressurreição dos infernos e da ascensão ao céu, nós te oferecemos esta hóstia imaculada, hóstia espiritual, hóstia incruenta, este pão santo e o cálice da vida eterna, te pedimos e suplicamos para que aceites esta oferta no teu sublime altar pelas mãos dos teus anjos, assim como dignaste aceitar as ofertas do teu servo o justo Abel, o sacrifício do nosso patriarca Abraão e o que te ofereceu o sumo sacerdote Melquisedec" (Sobre os sacramentos, IV).