Sobre a infalibilidade papal



Do ponto de vista da Igreja, esta nova fase do erro apresenta o seguinte aspecto: O conhecimento das verdades divinas atribuídas ao Bispo de Roma não depende da sua perfeição moral (testemunha Borgia e tantos outros)... Esse conhecimento, portanto, tem um caráter totalmente oracular.

Nenhum fato na Igreja pode ser entendido exceto por analogia com fatos semelhantes certificados pelas Escrituras. No Novo Testamento, as profissões de fé se apresentam em duas formas. Primeiro, existem profissões de fé que, sendo voluntárias e triunfantes, por assim dizer, são revelações concedidas à santidade e ao amor; tais são as profissões de Simeão, Natanael, São Pedro e, finalmente, a mais completa de todas, a de São Tomé.

Depois, há as profissões de fé involuntárias, resultado do medo e do ódio: essas são as profissões dos possuídos. Não conhecemos nenhuma profissão de fé que resulte da indiferença. Aparentemente, o suposto privilégio do Bispo de Roma não o eleva à primeira categoria (visto que independe de sua perfeição moral); em vez disso, isso o coloca na segunda categoria. Ou seja, esse privilégio o torna mais próximo dos possuídos do que dos apóstolos. Uma triste degeneração da humanidade se fosse verdade!

(Aleksei S. Khomiakov, Algumas observações de um cristão ortodoxo sobre as comunhões ocidentais, por ocasião de uma carta publicada pelo arcebispo de Paris, 1855)

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Em 1850, um padre católico, Father Stephen Keenan, criou um catecismo na Irlanda que circulou bastante nos Estados Unidos também. Esse catecismo, chamado Keenan's Catechism, tinha um imprimatur dos Bispos da Escócia e da Irlanda. Era grandemente respeitado em muitos círculos católicos e considerado um catecismo conservador e voltado contra o protestantismo.

Eis uma das questões:
Q: Must not Catholics believe the pope in himself to be infallible? 
A: This is a Protestant invention; it is no article of the Catholic faith; no decision of his can oblige, under pain of heresy, unless it be received and enforced by the teaching body; that is, by the bishops of the Church.
[Tradução:
Q. Não devem os católicos crer que o próprio papa é infalível?
R. Isso é uma invenção protestante; não é nenhum artigo da fé católica; nenhuma decisão dele pode obrigar, sob pena de heresia, a menos que seja recebida e confirmada pelo corpo docente, isto é, pelos bispos da Igreja.]
Algumas décadas depois a infalibilidade papal tornou-se artigo de fé da Igreja Romana. Foi determinado no Concílio Vaticano I que as “declarações [ex cathedra] do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis”. O catecismo de Keenan foi então "corrigido".

Antes disso, outras manifestações do alto clero da Igreja Romana na Inglaterra e na Irlanda também indicavam a rejeição da infalibilidade papal. Um exemplo é a Declaração dos Arcebispos e Bispos da Igreja Católica Romana na Irlanda, assinada por dezenas de Arcebispos e Bispos em 25 de janeiro de 1824, que dispõe, sob juramento:
que não é um artigo da fé católica, nem é exigido deles que creiam, que o Papa é infalível.
Naquela época, a doutrina da infalibilidade era comumente atribuída "aos italianos" e rejeitada por católicos do norte da Europa.

Ou seja, o dogma foi proclamado sem um consenso claro da Igreja Romana, e isso considerando apenas o período imediato do século XIX. É um exemplo de como os dogmas são "produzidos" em Roma. Por isso C. S. Lewis dizia que não poderia estar em comunhão com Roma: "porque aceitar sua Igreja significa, não aceitar um certo corpo de doutrinas, mas aceitar antecipadamente qualquer doutrina que sua Igreja venha a produzir" (Christian Reunion and Other Essays, editado por Walter Hooper).