Oração pelos mortos e Purgatório: diferenças entre ortodoxos e católicos

 
Metropolita Macário de Moscou (1816-1882), Teologia Dogmática Ortodoxa, Vol. 2 (1857).

A doutrina da Igreja Romana sobre o Purgatório tem alguma semelhança com a doutrina da Igreja Ortodoxa sobre a possibilidade de alguns pecadores serem libertados das amarras do Hades [Inferno] pelas orações dos vivos, embora também tenha alguma diferença. Para julgar corretamente entre um e outro, deve-se entender o ensino conforme estabelecido pelos próprios teólogos romanos.

Primeiro, eles distinguem na doutrina do Purgatório duas partes: a 'parte essencial', ou o que foi decretado e ensinado por sua Igreja como dogma, e o opcional, ou seja, o que não foi fixado por sua Igreja e é objeto de opiniões [controversas] teológicas. A primeira parte refere-se apenas a dois pontos:

a) Há um purgatório, isto é, um lugar ou estado de expiação (status expiationis) em que as almas daqueles que morreram sem ter recebido a absolvição por faltas leves, ou mesmo depois de obter a absolvição de seus pecados, mas sem suportar nesta vida os castigos temporais pelos pecados, sofrem tormentos para satisfazer a justiça divina, até que sejam purificados por esses tormentos e se tornem dignos da felicidade eterna.

b) As almas dos que estão no Purgatório precisam muito de oração para ajudá-los, assim como esmolas [oferecidas em favor delas], e principalmente do Sacrifício incruento [isto é, o Sacrifício da Missa].

No que respeita ao ensino não-essencial [opcional], este refere-se à solução das seguintes questões:

a) O Purgatório é um lugar específico ou não, e em caso afirmativo, onde fica? Os sofrimentos das almas no fogo do purgatório são reais ou metafóricos [espirituais]?
b) Quanto tempo as almas ficam no purgatório? Como eles são ajudados pelas orações da Igreja?
 
Segundo, focando nossos pensamentos sobre a parte essencial da doutrina romana sobre o Purgatório, encontramos alguma semelhança com a da Igreja Ortodoxa sobre as orações pelos mortos, e ao mesmo tempo algumas diferenças:
 
Semelhanças - Há semelhança na ideia fundamental. De fato, a Igreja Ortodoxa ensina, como a de Roma: (a) Que as almas de alguns dos mortos, ou seja, daqueles que morreram na fé e no arrependimento, mas sem ter tido tempo para trazer em vida frutos dignos de arrependimento [Mateus 3:8], e, portanto, não conseguiram receber de Deus o perdão completo de seus pecados e serem [perfeitamente] purificados, sofrem tormentos até que sejam julgados dignos de perdão e purificados; e (b) Que em tais casos as almas dos defuntos são beneficiadas pelas orações em favor delas pelos irmãos em Cristo que ainda estão vivos, suas obras de caridade e especialmente pela oferta do Sacrifício incruento [eucarístico].
 
Diferenças - As diferenças, em particular, são: (a) De acordo com a doutrina da Igreja Ortodoxa, as almas dos mortos acima mencionadas estão sofrendo porque, embora tenham se arrependido antes da morte, não tiveram tempo de produzir frutos dignos de arrependimento, e portanto, merecer o perdão completo de Deus de seus pecados e, assim, ser realmente purificados e superar as consequências naturais do pecado, [que é a] punição; considerando que, de acordo com a doutrina da Igreja de Roma, as almas dos mortos sofrem no Purgatório, estritamente porque não sofreram aqui abaixo o castigo temporal necessário para os pecados em satisfação da justiça divina; e (b) Segundo a doutrina ortodoxa, essas almas são purificadas dos pecados e merecem o perdão de Deus, não por si mesmas e pelo seu próprio sofrimento, mas pelas orações da Igreja e pelo poder do Sacrifício incruento [eucarístico]; com essas mesmas orações não só beneficiando as almas que sofrem, mas mitigando sua posição, libertando-as do tormento, enquanto que, segundo a doutrina da Igreja Romana, é por seu mesmo sofrimento que as almas são purificadas no Purgatório e, assim, a justiça divina é satisfeita, e as orações da Igreja servem apenas para dar-lhes algum alívio nessa condição.
 
Além disso, embora as diferenças entre a doutrina romana do Purgatório e a doutrina ortodoxa de oração pelos mortos sejam sobre esses detalhes, elas são importantes e não podemos aceitar as diferenças. Pois nessas diferenças encontramos tanto coisas falsas [no ensino romano] quanto uma inversão do dogma fundamental:
 
1º Erro [Que é necessário satisfazer a justiça divina por todo pecado já perdoado, através de penas temporais] - A primeira ideia é falsa, como já vimos, isto é, que um pecador que se arrepende antes de morrer deve ainda trazer uma espécie de satisfação à justiça divina por seus pecados sofrendo algum castigo temporal para esse fim, e que no Purgatório ele faz isso, por falta de poder sofrer aqui embaixo. A satisfação completa à justiça divina, a mesma satisfação superabundante, foi apresentada de uma vez por todas, em favor de todos os pecadores, por meio de Jesus Cristo Nosso Salvador, que tomou sobre si os pecados do mundo e todo o castigo pelo pecado; e, para obter o perdão completo de Deus e a libertação de todo castigo do pecado, os pecadores devem apropriar-se dos méritos do Redentor, ou seja, crer nEle, arrepender-se verdadeiramente de seus pecados, produzir frutos dignos de arrependimento, ou seja, boas ações. Consequentemente, se há pecadores que, tendo-se arrependido antes de morrer, têm, apesar disso, tormentos a suportar após a morte, é apenas porque não tiveram tempo para apropriar-se plenamente dos méritos do Salvador, seja por causa da fraqueza de sua fé Nele ou por efeito da falha de seu arrependimento, e principalmente porque não deram frutos dignos de arrependimento, e não foram realmente purificados do pecado, como ensina a Igreja Ortodoxa.
 
2º Erro [Que as almas podem ser purificadas através de seus próprios sofrimentos expiatórios] - Não é menos um equívoco que os pecadores seriam purificados no Purgatório e satisfariam a justiça divina por seus próprios tormentos. Em qualquer sentido que o fogo do Purgatório seja entendido, literalmente ou em sentido figurado, em nenhum desses sentidos podemos atribuir isso a Deus. Se for atribuído um significado literal ao fogo, então, o fogo por sua própria natureza é incapaz de purificar uma alma que é uma essência espiritual simples e imaterial. Se for atribuído um significado figurativo, ou seja, o fogo é um tormento interior da alma devido à consciência de seus pecados passados ​​e à profunda contrição por eles, então, nesse caso, isso não pode purificar a alma na vida além da sepultura, porque na vida após a morte não há mais lugar para arrependimento, nem para mérito ou qualquer autocorreção pessoal como os católicos romanos acreditam. E enquanto a alma permanecer no pecado, não purificada e renovada, até então, seja o que for que tenha que suportar, ela não pode de modo algum satisfazer por seu próprio sofrimento a justiça divina e superar [através desses sofrimentos] essas consequências inevitáveis ​​do pecado.
 
3º Erro [Que as orações da Igreja são essencialmente dispensáveis, servindo apenas para aliviar os sofrimentos do Purgatório] - Se as almas de alguns dos mortos sofrem no Purgatório, e mesmo os pecadores arrependidos devem necessariamente sofrer uma punição temporal pelo pecado em satisfação à justiça divina, e, se as almas que sofrem no Purgatório são verdadeiramente purificadas e cumprem sua obrigação para com a justiça divina [através desses sofrimentos], então, a pergunta é: “Qual é o sentido das orações e da intercessão geral da Igreja em seu favor?”. As almas do Purgatório necessariamente têm que sofrer até que tenham cumprido a satisfação desejada e tenham sido purificadas pelo sofrimento; agora, se as orações da Igreja apenas enfraquecem e aliviam esse sofrimento, em vez de encurtar o período de tempo que as almas devem passar no Purgatório, elas (as orações) o prolongam e, portanto, são menos úteis do que prejudiciais. Isso não derruba, é claro, a ideia fundamental do dogma das orações pelos mortos?
 
Terceiro, se voltarmos agora a nossa atenção para a parte não-essencial da doutrina romana sobre o Purgatório, sendo opiniões teológicas, verificamos que difere muito mais da doutrina da Igreja Ortodoxa sobre a oração pelos mortos, embora em questões de pouca importância julgando pelo seu significado íntimo. Mencionemos os dois mais notáveis:
 
4º Erro [Que há um lugar intermediário entre céu e inferno] - A Igreja Ortodoxa ensina que não há classe intermediária após a morte entre aqueles que são salvos e vão para o céu, e aqueles que são condenados e vão para o Hades; não há um lugar intermediário específico para onde vão as almas que fizeram penitência antes da morte e estão sujeitas às orações da Igreja; todas essas almas vão para o Hades, onde só podem ser libertadas pelas orações. A maioria dos teólogos romanos considera o Purgatório como um lugar intermediário especial entre o céu e o inferno, às vezes colocado nas proximidades deste último, no interior da terra, às vezes próximo ao primeiro, às vezes no ar. Há outros, porém, que veem no Purgatório não um lugar à parte, mas um estado particular de almas, e reconhecem que as almas neste estado podem sofrer seu castigo temporal e purificar-se mesmo onde estão contidas os condenadas [outras almas] ao castigo eterno (ou seja, no inferno); assim, podem ser encontrados na mesma prisão presos condenados à prisão temporária e presos condenados para sempre.
 
5º Erro [Que há um fogo purgatorial] - A Igreja Ortodoxa rejeita veementemente o ensino de um fogo purgatorial, no verdadeiro sentido da palavra, que purificaria a alma. Um grande número de teólogos romanos considera este fogo como real e material (sendo esta a crença quase universal dos leigos da confissão romana), e para angariar provas de seu ensinamento eles tentam coletar das Sagradas Escrituras e do escritos dos antigos Doutores da Igreja referências que parecem tratar de tal fogo. Outros, no entanto, entendem o fogo do Purgatório em sentido figurado, para tormento espiritual, e, portanto, citam em seus tratados sobre o assunto evidências semelhantes da palavra de Deus ou dos escritos dos Padres, acrescentando que os próprios antigos doutores eram de opiniões variadas sobre o fogo. Seria, portanto, supérfluo até mesmo refutar as provas apresentadas. Nota-se finalmente que, em geral, sua Igreja não determinou precisamente o que é o fogo do Purgatório, se é material ou não, e, portanto, não pertence à fé entendê-lo de uma maneira ou de outra [dogmaticamente].

Não discutiremos outras opiniões sobre o Purgatório, por exemplo, quanto tempo uma alma permanece, e se todas elas sofrem o mesmo espaço de tempo pelas mesmas penas; quais penalidades elas enfrentam; se são mais rigorosas que as da vida presente e mais leves que as do inferno; se as almas do purgatório rezam por si mesmas e por nós que ainda estamos neste mundo; se se entregam à prática das boas obras, etc, etc. Todas essas opiniões têm pouco valor mesmo para os teólogos de Roma e poucos se empenharam seriamente em respondê-las.

***

Breve síntese [não pertence ao texto do Metropolita Macário]
 
A Igreja Ortodoxa crê que:

1) Há pessoas que morreram com fé e arrependimento, mas que são "detidas no Hades" (a expressão é de S. Basílio), seja porque "não tiveram tempo de produzir frutos de arrependimento", seja porque cometeram "faltas leves" e, assim, ainda não receberam pleno perdão e purificação de seus pecados.

2) A Igreja ora e oferece sacrifícios por essas almas, implorando a misericórdia de Deus em favor delas. É essa intercessão que traz-lhes a libertação, perdão, purificação e plena entrada no paraíso, não o pagamento de débitos de expiação ("penas temporais").

Já o sistema romano ensina  que as orações da Igreja servem mais para aliviar o sofrimento das almas que ainda devem pagar penas temporais. É o pagamento dessas penas, pelo sofrimento expiatório (no fogo do Purgatório), que as liberta. Daí a existência de indulgências, que consistem na aplicação de méritos para cobrir (pagar) esses débitos de penas temporais. Não há indulgências na Igreja Ortodoxa.

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